Quarta, 3 de dezembro de 2014
do site Esquerda.Net
As ações do Banco não se
resumem a uma sucessão de erros ou de maus atos. Pelo contrário, fazem
parte de uma visão coerente, teórica e conceptual, que se ensina
doutamente na maioria das universidades, sustentada por centenas de
livros de economia do desenvolvimento. Por Eric Toussaint.
2 de Dezembro
O Banco Mundial considera que os países em desenvolvimento (PED)1
devem recorrer ao endividamento externo e atrair investimento
estrangeiro para progredirem. Esse endividamento serve principalmente
para comprar equipamento e bens de consumo aos países mais
industrializados. Os factos demonstram, dia após dia, há décadas, que
isso não funciona. Os modelos que influenciaram o Banco Mundial implicam
logicamente uma forte dependência dos PED das entradas de capital
externo, principalmente sob a forma de empréstimos, na ilusão de
atingirem um nível de desenvolvimento autossustentado. Os empréstimos
são considerados pelos fornecedores de fundos públicos (governos dos
países mais industrializados e BM em particular) como um poderoso meio
de influenciar os países endividados. Portanto, as ações do Banco não se
resumem a uma sucessão de erros ou de maus atos. Pelo contrário, fazem
parte de uma visão coerente, teórica e conceptual, que se ensina
doutamente na maioria das universidades, sustentada por centenas de
livros de economia do desenvolvimento. O Banco produz uma verdadeira
ideologia do desenvolvimento. Quando os factos desmentem a teoria, o
Banco não questiona a teoria. Pelo contrário, tenta deformar a realidade
para continuar a proteger o dogma.
Ao longo dos dez primeiros anos de
existência, o BM produziu muito pouca reflexão sobre o tipo de política
económica a apoiar nos países em desenvolvimento. Diversas razões
explicam isso: 1) o assunto não faz parte das prioridades do BM. Em
1957, a maioria dos empréstimos do BM (52,7%) ainda é concedida aos
países industrializados;2
2) a matriz teórica dos economistas e dirigentes do BM é de inspiração
neoclássica. Ora, a teoria neoclássica não concede um lugar específico
aos PED;3
3) o BM só desenvolveu um instrumento específico para conceder
empréstimos com baixas taxas de juro aos países em desenvolvimento em
1960 (criação da Associação Internacional de Desenvolvimento (AID) – ver
cap. 3).
O BM faz pouco, mas isso não o impede de criticar os outros. Foi
assim que, em 1949, o Banco criticou um relatório da Comissão das Nações
Unidas para o emprego e a economia, que defendia o investimento público
na indústria pesada dos PED. O BM declarou que os poderes públicos dos
PED têm muito a fazer no que diz respeito à construção de boas
infraestruturas e que devem deixar a responsabilidade da indústria
pesada para a iniciativa privada local e estrangeira.4
Segundo os historiadores do BM, Mason e Asher, a orientação do Banco
parte do princípio que os setores público e privado devem exercer
funções diferentes. O setor público deve assegurar o desenvolvimento
planificado de infraestruturas adequadas: ferrovias, estradas, centrais
elétricas, instalações portuárias e meios de comunicação em geral. Ao
setor privado compete a agricultura, a indústria, o comércio e os
serviços pessoais e financeiros, porque em todos esses domínios
pressupõe-se que a iniciativa privada tem melhor desempenho do que o
setor público.5
Na verdade, deve ser concedido ao setor privado tudo o que é suscetível
de produzir lucro. Em contrapartida, as infraestruturas ficam a cargo
do setor público, porque se trata de socializar os custos com o objetivo
de ajudar a iniciativa privada. Em suma, o Banco Mundial recomenda a
privatização dos benefícios e também a socialização dos custos daquilo
que não é diretamente rentável.
Uma visão do mundo conservadora e etnocêntrica
A visão do BM está marcada por diferentes preconceitos conservadores.
Nos relatórios e discursos dos quinze primeiros anos de existência, o
BM faz referência regularmente às regiões atrasadas e subdesenvolvidas,
configurando todo um programa. Sobre as causas do subdesenvolvimento, o
banco adota uma visão etnocêntrica. Pode-se ler no oitavo relatório
anual do BM que: “Existem muitas e complexas razões para certas
regiões do mundo não serem mais desenvolvidas. Diversas culturas, por
exemplo, têm dado pouco valor ao desenvolvimento material e, de facto,
algumas consideram-no incompatível com os objetivos mais desejáveis para
a sociedade e para o indivíduo”. 6
A ausência de desejo ou de vontade de progresso material e de
modernização da sociedade é apresentada como uma das causas do atraso. O
profundo respeito dos hindus pela vacas torna-se uma chave para
compreender o atraso da Índia. Sobre a África, Eugene Black, presidente
do BM, declara em 1961: “Apenas hoje a maior parte dos 200 milhões de africanos começa a participar na sociedade mundial”.7
A maneira de ver reacionária do Banco Mundial não desapareceu
totalmente ao longo tempo. O Banco escreve o seguinte no Relatório sobre
o desenvolvimento mundial, em 1987: “Nos ‘Princípios de Economia
Política’ (1848), John Stuart Mill evoca as vantagens resultantes do
‘comércio exterior’. Embora, após mais de um século, essas observações
permaneçam tão válidas como em 1848”. Ao falar das vantagens indiretas do comércio, Mill declara: “… um
povo pode estar num estado letárgico, indolente, inculto, tendo todas
as aspirações satisfeitas, mesmo em sonhos, e pode não aplicar todas as
suas forças produtivas por lhe faltar um objeto de desejo. A aventura do
comércio externo, fazendo-o conhecer novos objetos ou suscitando a
tentação de adquirir objetos que antes pensava não poder possuir...,
encoraja aqueles, que se satisfaziam com pouco conforto e trabalho, a
trabalharem mais duramente para satisfazerem os seus novos desejos e até
mesmo a economizarem e a acumularem capital…”.8
O regresso vigoroso dos neoconservadores, com a chegada da
administração de G. W. Bush (2001-2008), aprofundou esse caráter
profundamente materialista e reacionário. A nomeação de Paul Wolfowitz,
um dos principais neocons, para a presidência do Banco, em 2005,
cimentou essa orientação.
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O que é marcante nos documentos do Banco Mundial e na literatura em
voga, em matéria de desenvolvimento, entre os anos cinquenta e os anos
setenta, é o papel desempenhado pelo planeamento do crescimento e do
desenvolvimento (tanto nas economias industrializadas como nos PED). Até
finais do anos setenta, a presença do planeamento remete para diversos
pontos: 1) a vontade de planear (planismo) surgiu no decorrer da longa
depressão dos anos trinta, como resposta ao caos provocado pelo laisser-faire;
2) era necessário organizar a reconstrução da Europa e do Japão; 3)
trata-se do período dos “trinta gloriosos”, caracterizado por um
crescimento económico sustentado, que necessitava ser dirigido e
planeado; 4) o sucesso propagado ou presumido da planificação soviética
exercia incontestavelmente um poder de atração real, inclusive sobre os
inimigos declarados do dito “bloco comunista”. A planificação é um tema
que foi completamente esvaziado a partir do início dos anos oitenta, com
o regresso vigoroso da ideologia e das políticas neoliberais.
Uma outra preocupação muito presente, e que também foi afastada a
partir dos anos oitenta, foi a opção tomada por uma série de países da
América Latina de recorrerem à substituição de importações e a
possibilidade (considerada perigosa pela maioria dos dirigentes dos
países mais industrializados) de outros países recém independentes
adotarem o mesmo rumo.
Vejamos diversas contribuições de economistas que influenciaram o Banco.
O modelo HOS (Heckscher – Ohlin – Samuelson)
A teoria das vantagens comparativas de Ricardo foi reforçada, nos
anos trinta, pela análise dos economistas suecos Heckscher e Ohlin, à
qual se somou mais tarde a de Samuelson (a síntese realizada por este
último é conhecida como modelo HOS). O modelo HOS aborda “a dotação de
fatores de produção” (esses fatores são o trabalho, a terra e o capital )
e considera que todos os países têm interesse em se especializarem na
produção e exportação de bens que utilizam mais intensamente o fator de
produção, que dispõem mais abundantemente – que também é o fator com o
preço mais baixo. Graças ao comércio livre, ocorrerá uma igualização da
remuneração dos fatores de todos os países que realizem esse comércio
livre entre si (o fator mais abundante – exportado - torna-se raro e,
portanto, encarece; o fator raro – importado – aumenta e, portanto, o
preço diminui). A especialização estabelecerá uma afetação ótima de
fatores num mercado mundial homogéneo. Nessa perspetiva, a tentativa de
integração máxima no mercado mundial seria uma aposta vitoriosa para
todas as economias, constituindo um jogo de soma positiva para todos os
parceiros comerciais. Diversas pesquisas efetuadas posteriormente,
principalmente por Paul Krugman,9 para verificar a pertinência do modelo HOS, demonstraram que essa teoria não se confirmava na realidade.
As cinco etapas do crescimento económico segundo Walt W. Rostow
Em 1960, Walt W. Rostow10 define cinco etapas de desenvolvimento, no livro Les étapes de la croissance économique, un manifeste non-communiste.11
Para Rostow, todas as sociedades podem ser classificadas de acordo com
uma dessas cinco categorias e devem seguir esse itinerário.
A primeira etapa é a sociedade tradicional, caracterizada pela
predominância de atividade agrícola. O progresso técnico é nulo, quase
não há crescimento do produto e as mentalidades não buscam a mudança.
Em seguida, a etapa prévia ao arranque vê desenvolverem-se as trocas e
as técnicas, a evolução das mentalidades que rompem com o fatalismo e
um aumento significativo da taxa de poupança. Na verdade, é a evolução
das sociedades europeias entre o século XV e o início do século XVIII.
A terceira etapa é a da descolagem (take-off), etapa
crucial, que corresponde a um salto qualitativo, com o aumento
significativo da taxas de poupança, de investimento e a passagem a um
crescimento cumulativo. De notar que, segundo W.W. Rostow, a Argentina tinha já alcançado a fase de descolagem antes de 1914.
A quarta etapa é designada “marcha para a maturidade”: o progresso
técnico impõe-se em todas as atividades e a produção diversifica-se.
Por fim, a era do consumo de massas coincide com a quinta etapa.12
Segundo Walt W. Rostow, na fase de descolagem, a entrada de capital
(sob a forma de investimento estrangeiro ou de créditos) é
indispensável.
O modelo de Rostow caracteriza-se por um esquema caricato. O autor
apresenta a fase de desenvolvimento alcançada pelos Estados Unidos, após
a Guerra Mundial, como sendo, ao mesmo tempo, uma etapa a ser alcançada
e um modelo a ser reproduzido. Do mesmo modo, considera a forma de
descolagem de Inglaterra, onde a revolução agrícola e industrial se
sucederam, como um modelo a ser reproduzido noutros locais. Isso
significa não levar em consideração a história concreta vivida pelos
outros países. Nada prova que todos os países devam passar pelas cinco
etapas.
Insuficiência de poupança e a necessidade de recorrer ao financiamento externo
Segundo a abordagem neoclássica, a poupança antecede o investimento e
é insuficiente nos PED. Assim a insuficiência de poupança é um fator
explicativo fundamental dos limites de desenvolvimento. A entrada de
financiamento externo é necessária. Paul Samuelson, na revista Economic,13
baseia-se na história de endividamento dos Estados Unidos, nos séculos
XIX e XX, para determinar quatro etapas que conduzem à prosperidade:
nação endividada jovem (da guerra revolucionária de 1776 à guerra civil
de 1865); nação endividada madura (de 1873 a 1914); nação jovem credora
(da Primeira Guerra Mundial à Segunda); nação credora madura (anos
sessenta). Samuelson e os seus discípulos aplicaram o modelo dos Estados
Unidos, de finais do século XVII até à Segunda Guerra Mundial, a uma
centena de países que constituíam o terceiro mundo no pós-guerra, como
se a experiência dos Estados Unidos fosse pura e simplesmente imitável
nesses países.14
No que diz respeito à necessidade de possuir recursos através da
entrada de capitais estrangeiros (sob a forma de empréstimos e
investimentos estrangeiros), um dos associados de Walt W. Rostow, Paul
Rosenstein-Rodan, emprega a seguinte fórmula: “os capitais
estrangeiros reforçarão o capital nacional, isto é, serão inteiramente
investidos; o investimento acarretará um aumento de produção. A função
principal da entrada de capitais estrangeiros é de permitir que a
formação de capital nacional atinja uma taxa que poderá ser mantida sem
ajuda externa suplementar”. 15
Essa afirmação contradiz a realidade: não é verdade que os capitais
estrangeiros reforcem a formação do capital nacional e que sejam
integralmente investidos. Uma grande parte dos capitais estrangeiros
deixam rapidamente o país para o qual se dirigiram temporariamente (fuga
de capitais, remessa de lucros).
Outro erro fundamental, Paul Rosenstein-Rodan, diretor adjunto (“assistant director”)
do departamento económico do Banco entre 1946 e 1952, faz previsões
sobre a data em que uma série de países alcançará um crescimento
sustentado. Segundo Paul Rosenstein-Rodan, a Colômbia deve chegar a essa
fase em 1965, a Jugoslávia em 1966, a Argentina e o México entre 1965 e
1975, a Índia no início dos anos setenta, o Paquistão três ou quatro
anos após a Índia, as Filipinas após 1975. Trivialidades!
Note-se que essa definição de crescimento autossustentado é
comummente utilizada pelo Banco Mundial. Eis a definição dada, em 1964,
por Dragoslav Avramović, na época diretor do departamento económico: “Define-se
crescimento autossustentado como aquele que implica uma taxa de
crescimento do rendimento de 5% ao ano, financiada pela poupança interna
e também por capitais estrangeiros”. 16
O planeamento do desenvolvimento, visto pelo Banco Mundial e pelo
establishment universitário dos Estados Unidos, conduz a uma farsa
pseudocientífica, baseada em equações matemáticas que pretendem dar
legitimidade e credibilidade à vontade de fazer com que os PED dependam
do recurso ao financiamento externo. Eis um exemplo formulado, de forma
séria, por Max Millikan e Walt Whitman Rostow em 1957 : “Se a taxa
inicial de investimento doméstico de um país representa 5% do rendimento
nacional, se os capitais estrangeiros atingem uma taxa constante
equivalente a um terço do nível inicial de investimento doméstico, se
25% de todo o rendimento suplementar é poupado e reinvestido, se o rácio
capital/produto for igual a 3 e se a taxa de juro da dívida externa e
os dividendos repatriados forem equivalentes a 6% ao ano, o país poderá
dispensar o endividamento externo líquido após catorze anos e poderá
manter uma taxa de crescimento de 3% com base nos seus recursos
próprios”17... Mais trivialidades!
O modelo de duplo défice de Chenery e Strout
Em meados dos anos sessenta, o economista Hollis Chenery, que será mais tarde economista chefe e vice-presidente do BM,18 elabora com o seu colega Alan Strout um novo modelo chamado “modelo de duplo défice”.19
Chenery e Strout pressupõem duas restrições: insuficiência de poupança
interna inicialmente e, num segundo momento, insuficiência de divisas.
Charles Oman e Ganeshan Wignarja resumem o modelo de Chenery – Strout da
seguinte maneira: “20”.21
Uma resposta simples é proposta para resolver esse duplo défice: pedir
empréstimos em divisas ou dotar-se de divisas aumentando as exportações.
O modelo Chenery – Strout é extremamente matematizado, como era moda
na época. Isso tinha vantagens para os seus defensores porque dava
credibilidade e uma aparência de rigor científico a uma política que
visava principalmente, por um lado, incitar os PED a recorrerem
massivamente a empréstimos externos e ao investimento estrangeiro e, por
outro lado, fazer com que o desenvolvimento dos PED dependesse das
exportações. Diversas críticas foram feitas ao modelo naquela época.
Citaremos apenas a de Keith Griffin e de Jean Luc Enos, que afirmam que o
recurso a capitais externos limitará a poupança local: “enquanto o
custo da ajuda (por exemplo, a taxa de juro dos empréstimos externos)
for inferior ao crescimento marginal do capital e da produção, um país
terá interesse em pedir empréstimos tanto quanto possível e em
substituir a poupança doméstica pelos empréstimos estrangeiros. Por
outras palavras, havendo um objetivo a atingir em termos de taxa de
crescimento num país em desenvolvimento, a ajuda externa permitirá maior
consumo e limitará a poupança doméstica à diferença entre o
investimento pretendido e a disponibilidade de ajuda externa. Portanto,
os fundamentos dos modelos do tipo Chenery-Strout são insuficientes na
medida em que se pretende encontrar, em teoria, uma relação inversa
entre a ajuda externa e a poupança doméstica”. 22
A intenção de levar os PED a recorrerem à ajuda externa como forma de os influenciar
A política de ajuda bilateral e a política adotada pelo Banco Mundial
estão diretamente relacionadas com os objetivos políticos dos Estados
Unidos em termos de relações externas.
Para Hollis Chenery : “O objetivo principal da ajuda externa,
assim como de outros instrumentos de política externa, é o de produzir, à
escala mundial, um ambiente político e económico em que os Estados
Unidos possam tentar cumprir o melhor possível os seus próprios
objetivos sociais”. 23
Num livro intitulado Les Nations émergentes: leur croissance et les Etats-Unis, Max Millikan24
e Donald Blackmer, colegas de Walt W. Rostow, descrevem claramente
certos objetivos da política externa dos Estados Unidos em 1961: “É
do interesse dos Estados Unidos ver surgir, durante a fase de transição,
nações dotadas de determinadas características. Em primeiro lugar,
devem ser capazes de manter a sua independência, em especial face ao
poder hostil ou potencialmente hostil dos Estados Unidos. (…) Em quarto
lugar, devem aceitar o princípio de uma sociedade aberta, cujos membros
sejam convidados a trocar ideias, mercadorias, valores e experiências
com o resto do mundo; isso implica que os seus governos devem estar
dispostos a comprometerem-se com dispositivos de controlo social,
político e económico necessários ao funcionamento de uma comunidade
internacional independente”25 e, é claro, sob a liderança dos Estados Unidos.
Mais à frente neste livro, indica-se explicitamente de que maneira a
ajuda é utilizada como alavanca para orientar a política dos países
ajudados: “Para que a assistência financeira possa ser alavancada ao
máximo, no sentido de persuadir os países subdesenvolvidos a seguirem
uma linha compatível com os interesses dos Estados Unidos e do mundo
livre, os montantes oferecidos devem ser suficientemente significativos e
as condições suficientemente flexíveis para persuadirem os países
recetores de que o jogo vale a pena. Isso significa que devemos investir
recursos, substancialmente mais significativos que outrora, nos nossos
programas de desenvolvimento económico”. 26
Veremos mais adiante que o volume de empréstimos concedido aos PED
aumentou, ao longo dos anos sessenta e setenta, na sequência de uma
política deliberada dos Estados Unidos, de outros governos de países
mais industrializados e das instituições de Bretton Woods, destinadas a
influenciar a política conduzida no Sul.
Privilegiar as exportações
Chenery e Strout afirmam numa das suas principais contribuições que o
recurso à substituição de importações constituía um meio admissível,
que visava reduzir o défice em divisas.27
Em seguida abandonaram essa posição, quando a manutenção da política de
substituição de importações, levada a cabo por alguns PED, se tornou
alvo das principais críticas feitas pelo BM, FMI, OCDE e pelos governos
dos principais países industrializados.
É, por isso, que outros trabalhos de economistas diretamente
associados ao BM se dedicam a medir as taxas efetivas de proteção e os
desvios que estas provocam em termos de utilização dos recursos
produtivos e de rentabilidade dos investimentos. Esses economistas
defendem uma reorientação das estratégias em prol das exportações, o
abandono das tarifas protecionistas e, de forma geral, uma política mais
fundamentada nos mecanismos de mercado para a fixação de preços. Bela
Balassa, Jagdish Bhagwati e Anne Krueger28
sistematizam essa abordagem e as suas análises marcarão a evolução das
instituições internacionais e constituirão a base teórica das medidas de
abertura comercial preconizadas durante as décadas de oitenta e
noventa. Anne Krueger29. escreve : “Um
regime que promove as exportações pode libertar a economia do país do
jugo do subemprego Keynesiano porque, ao contrário do regime de
substituição de importações, pode dispor de uma procura efetiva,
virtualmente infinita, dos seus produtos nos mercados internacionais e,
portanto, pode aproximar-se sempre do pleno emprego, desde que não haja
uma recessão mundial. Uma economia pequena orientada para a exportação
será capaz de vender qualquer quantidade de bens que produza; por outras
palavras, a capacidade de oferta do país será a única restrição”. 30 Mais uma vez areia para os olhos.
Trickle-Down ou efeito cascata
Quais são as consequências da conduta do BM? É preciso favorecer a
qualquer custo o crescimento para que no final os pobres saiam
favorecidos. Toda a política que trave o crescimento em nome da
redistribuição de riqueza (mesmo que parcial) ou em nome do ambiente
reduz o efeito cascata e acarreta prejuízos para os pobres. A atitude
dos dirigentes do BM é orientada na prática por essa metáfora, quaisquer
que sejam os argumentos mais sofisticados, que determinados
especialistas possam contrapor. Além disso, os historiadores do BM
consagram uma dezena de páginas a discussões sobre o trickle down31 e reconhecem que “essa
crença justifica esforços persistentes para convencer os devedores
sobre as vantagens da disciplina, do sacrifício e da confiança no
mercado, portanto, sobre a necessidade de manter a diretriz contra a
tentação política”. 32
Afirmam que essa crença caiu progressivamente em desgraça a partir de
1970, sob os ataques de uma quantidade impressionante de investigações
sobre os Estados Unidos e sobre os PED.33 No entanto, frisam que na prática isso não mudou grande coisa,34 até porque, a partir de 1982, o trickle down regressou em força ao BM.35 Evidentemente, a questão do trickle down é inseparável das desigualdades que abordamos já de seguida.
A questão das desigualdades na distribuição de rendimentos
A partir de 1973, a questão das desigualdades na repartição de
rendimentos nos PED, entendida como elemento que influencia a
possibilidade de desenvolvimento, começa a ser estudada pelo BM. A
equipa económica dirigida por Hollis Chenery empresta ao tema uma
energia considerável. O livro mais importante do BM a esse respeito foi
coordenado pelo próprio Chenery, intitula-se Redistribuição e Crescimento36
e surge em 1974. Chenery está consciente que o tipo de crescimento
induzido pela política de empréstimos do Banco gera aumento das
desigualdades. A preocupação do BM foi comunicada em diversas ocasiões
de maneira bastante clara por McNamara: se não reduzirmos as
desigualdades, se não diminuirmos a pobreza, assistiremos a explosões
sociais frequentes, que prejudicarão os interesses do mundo livre, cuja
liderança é assegurada pelos Estados Unidos.
Chenery não partilhava o ponto de vista de Simon Kuznets, no decorrer dos anos cinquenta. Segundo Kuznets,37
após uma fase necessária de aumento das desigualdades na altura do
arranque económico, as desigualdades seriam absorvidas num segundo
momento. A necessidade de ver crescer as desigualdades estava muito
arraigada no Banco. Prova disso são as palavras do presidente do BM,
Eugene Black, em abril de 1961: “as desigualdades de rendimento
resultam necessariamente do crescimento económico, que proporciona às
pessoas escaparem a uma vida de pobreza”. 38 No entanto, os estudos empíricos realizados pelo BM na época desmentiram as afirmações de Kuznets.39
Contudo, após a partida de Chenery, em 1982, e a sua substituição por
Anne Krueger, o BM abandona completamente a preocupação em relação ao
aumento ou manutenção das desigualdades, de tal maneira que Krueger
decide não publicar mais dados sobre o assunto no Relatório mundial sobre desenvolvimento no mundo.
Anne Krueger (veremos mais adiante) não hesita em chamar a si a curva
de Kuznets, fazendo do aumento das desigualdades uma condição para o
arranque do crescimento, dado que a poupança dos ricos é suscetível de
alimentar investimentos. Foi preciso esperar pela chegada de François
Bourguignon ao cargo de economista chefe, em 2003, para assistirmos ao
ressurgimento do interesse do Banco pela questão. Em 2006, o relatório
do Banco Mundial sobre o desenvolvimento no mundo, intitulado Equidade e desenvolvimento,
retoma a questão das desigualdades, entendida como freio ao
desenvolvimento. A estratégia utilizada é considerada, na melhor das
hipóteses, bom marketing por J. Wolfensohn (presidente do BM entre 1996 e
2005) e pelo seu sucessor Paul Wolfowitz.
Artigo de Éric Toussaint publicado em cadtm.org.Tradução Maria da Liberdade
1
O vocabulário para designar os países a quem o BM reservava os seus
empréstimos destinados ao desenvolvimento evoluiu ao longo do tempo:
inicialmente utilizava-se a expressão “regiões atrasadas”, depois
passou-se a “países subdesenvolvidos” para se chegar a “país em
desenvolvimento”, entre os quais alguns são denominados “países
emergentes”.
2
O período durante o qual o Banco teve uma visão sólida acerca da
natureza do processo de desenvolvimento, mas pouco fez para a pôr em
prática, estendeu-se até quase aos anos cinquenta e coincidiu com uma
fase em que os empréstimos do Banco (em que a maioria destes
empréstimos) se destinava ainda aos países desenvolvidos (em 1957, 52,7%
do financiamento do BM ia ainda para esses países” Nicholas Stern e
Francisco Ferreira. 1997. “The World Bank as 'intellectual actor'” in
Kapur, Devesh, Lewis, John P., Webb, Richard. 1997. The World Bank, Its
First Half Century, Volume 2, p. 533.
3
O BM faz pouco, mas isso não o impede de criticar os outros. Foi assim
que, em 1949, o Banco criticou um relatório da Comissão das Nações
Unidas para o emprego e a economia, que defendia o investimento público
na indústria pesada dos PED. [[O BM declarou que os poderes públicos dos
PED têm muito a fazer no que diz respeito à construção de boas
infraestruturas e que devem deixar a responsabilidade da indústria
pesada para a iniciativa privada local e estrangeira.“Os instrumentos de
análise neoclássica aplicam-se, de maneira geral, sem especificidade às
questões colocadas pelo subdesenvolvimento. O subdesenvolvimento ou o
bloqueio do desenvolvimento não é objeto de uma análise sistemática na
teoria neoclássica” Azoulay, Gerard. 2002. Les théories du
développement, Presses Universitaires de Rennes, p.38.
4
STERN Nicholas e FERREIRA Francisco. 1997. “The World Bank as
'intellectual actor'” in Kapur, Devesh, Lewis, John P., Webb, Richard.
1997. The World Bank, Its First Half Century, Volume 2, p.533.
5
Mason , Edward S. e Asher, Robert E. 1973. The World Bank since Bretton
Woods, The Brookings Institution, Washington, D.C., pp.458-459.
6 World Bank (IBRD). 1953. 8th annual report 1952-1953, Washington DC, p. 9.
7 Eugene Black, “Tale of Two Continents”,
Ferdinand Phinizy Lectures, delivered at the University of Georgia,
April 12 and 1, 1961 in Kapur, Devesh, Lewis, John P., Webb, Richard.
1997. The World Bank, Its First Half Century, Volume 1, p. 145. Eugene
Black presidiu ao BM de 1949 a 1962.
8 Banco mundial. 1986. Rapport sur le développement dans le monde 1987, Washington DC, p. 4.
9
A constatação em relação à predominância de trocas entre economias com
dotações de fatores semelhantes (trocas de produtos similares entre as
economias mais industrializadas) é analisada na obra de E. Helpman e P.
Krugman dos anos oitenta.
10
Walt. W. Rostow é um economista influente. Foi também um conselheiro
político de primeiro plano, tendo sido conselheiro de Robert McNamara,
durante a Guerra do Vietname. Encontram-se na internet algumas notas que
enviou a McNamara, que focam a estratégia político-militar a ser
seguida em relação aos norte-vietnamitas e aos seus aliados em 1964. Uma
nota intitulada “dispositivo e sinais políticos”, datada de 16 de
novembro de 1964, é particularmente interessante porque denota um
domínio bastante apurado da arte da guerra e da negociação (www.mtholyoke.edu/acad/intre... ).
É importante salientar, assinalando mais uma vez, os interesses políticos da intervenção do FMI e do Banco Mundial nos países da periferia. Deve-se, portanto, ter em conta a economia, nomeadamente, em termos de motivação (alavanca) política.
É importante salientar, assinalando mais uma vez, os interesses políticos da intervenção do FMI e do Banco Mundial nos países da periferia. Deve-se, portanto, ter em conta a economia, nomeadamente, em termos de motivação (alavanca) política.
11 Rostow, Walt W. 1960. Les Etapes de la croissance économique : un manifeste non communiste, Le Seuil, Paris, 1970
12
Os Estados Unidos tinham definitivamente atingido a fase do consumo de
massas, logo após a Segunda Guerra Mundial, seguidos, em 1959, pela
Europa Ocidental e pelo Japão. Quanto à URSS, está tecnicamente
preparada para alcançar a mesma fase, mas deverá passar por um
ajustamento preliminar.
13 Samuelson, Paul. 1980. Economics, 11ª edição, McGraw Hill, New York, pp. 617-618.
14 Payer, Cheryl. 1991. Lent and Lost. Foreign Credit and Third World Development, Zed Books, London, pp.33-34.
15
Rosenstein-Rodan, Paul. (1961). ‘International Aid for Underdeveloped
Countries’, Review of Economics and Statistics, Vol.43, p.107.
16 Avramović, Dragoslav et al. 1964. Economic Growth and External Debt, Johns Hopkins Press for the IBRD, Baltimore, p.193.
17 Millikan, Max e Rostow, Walt Whitman. 1957. A proposal : Keys to An Effective Foreign Policy, Harper, New York, p.158
18
Hollis Chenery tornou-se, em 1970, conselheiro do presidente do Banco
Mundial, Robert McNamara. De seguida, em 1972, o lugar de
vice-presidente ligado ao de economista-chefe foi criado para Hollis
Chenery por Robert McNamara. Posteriormente, tornou-se tradição. Chenery
exerceu funções como economista-chefe e vice-presidente do Banco
Mundial, de 1972 a 1982. Chenery é, até hoje, o economista que
permaneceu mais tempo no cargo de economista-chefe. Os antecessores e
sucessores ficaram no lugar entre três e seis anos, dependendo do caso.
Fonte: STERN Nicholas e FERREIRA Francisco. 1997. “The World Bank as
'intellectual actor’” in Kapur, Devesh, Lewis, John P., Webb, Richard.
1997. The World Bank, Its First Half Century, Volume 2, p.538.
19 CHENERY Hollis B. e STROUT Alan. 1966. “Foreign Assistance and Economic Development”, American Economic Review, n°56, pp.680-733.
20
Na essência as hipóteses do modelo de duplo défice são: embora nas
primeiras fases de crescimento industrial uma poupança insuficiente
possa constituir a principal restrição à taxa de formação de capital
doméstico, quando a industrialização estiver já em pleno andamento, a
restrição principal pode não ser já a poupança doméstica, mas sim a
disponibilização das divisas necessárias para a importação de bens de
equipamento, de bens intermediários e até mesmo de matérias-primas
utilizadas como inputs industriais. Desse modo, o défice em divisas pode
suplantar o défice de poupança como principal entrave ao
desenvolvimento.
21 OMAN Charles e WIGNARJA Ganeshan. 1991. The Postwar Evolution of Development Thinking, OCDE, citado por Treillet, Stéphanie. 2002. L’Économie du développement, Nathan, Paris, p.53.
22 GRIFFIN, Keith B. e ENOS, Jean Luc. 1970. ‘Foreign Assistance: Objectives and consequences’, Economic Development and Cultural Change, n°18, pp.319-20.
23
H. B. Chenery. 1964. ‘Objectives and criteria of Foreign Assistance’,
in The United States and the Developing Economies, ed. G. Ranis, W.W.
Norton, New York, p.81.
24
Max Millikan, que foi membro do Office of Strategic Services (OSS) e
depois da Central Intelligence Agency (CIA), que lhe sucedeu, foi
diretor do CENIS (Center for International Affairs at the Massachusetts
Institute for Technology), diretamente ligado ao Departamento de Estado.
25
Max MILLIKAN e Donald BLACKMER, ed. 1961. The Emerging Nations: Their
Growth and United States Policy, Little, Brown and Company, Boston, pp.
x-xi.
26 Idem, pp.118-119.
27
CHENERY Hollis B. e STROUT Alan. 1966. “Foreign Assistance and Economic
Development”, American Economic Review, n°56, pp.682, 697-700.
28 Bela BALASSA. 1971. Development Strategies in Some Developing Countries: A Comparative Study, John Hopkins University Press for the World Bank, Baltimore; Jagdish BHAGWATI. 1978. Anatomy and Consequences of Exchange Control Regime, Ballinger for the National Bureau of Economic Research, Cambridge; Anne KRUEGER. 1978. Foreign Trade Regimes and Economic Development: Liberalization Attempts and Consequences, National Bureau of Economic Research, New York.
29
Anne Krueger tornou-se economista-chefe e vice-presidente do Banco
Mundial, em 1982, (quando Chenery foi demitido pelo presidente Ronald
Reagan, que fez entrar no BM apoiantes da sua orientação neoliberal) e
permaneceu no cargo até 1987.
30 Krueger, Anne. 1978. Trade and Development: export promotion vs Import substitution, citado por Treillet, Stéphanie. 2002. L’Économie du développement, Nathan, Paris, p.37
31 Kapur, Devesh, Lewis, John P., Webb, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Century, Volume1, pp. 215-233.
32 Idem, p. 218
33 Ver nomeadamente: James P... Grant, “Development: The End of Trickle down”, Foreign Policy, Vol. 12 (Fall 1973), pp.43-65
34
Relativamente ao período 1974-1981, os historiadores escrevem “em
relação aos investimentos visando diretamente os pobres, as atenções do
Banco Mundial começam a virar-se para o reforço dos benefícios indiretos
destinados aos pobres através do aumento do emprego nas cidades. De
facto, esta estratégia tem sido usada para abordar o trickle down” in
Kapur, Devesh, Lewis, John P., Webb, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Century, Volume1, p. 264.
35
Os historiadores escrevem a propósito da reviravolta de 1981-1982:
“Poverty reduction would thus have to depend on growth and trickle down”
in Kapur, Devesh, Lewis, John P., Webb, Richard. 1997. The World Bank,
Its First Half Century, Volume 1, p. 336.
36
Chenery Hollis B. et al. 1974. Redistribution with Growth, Oxford
University Press for the World Bank and the Institute of Development
Studies, London.
37 Kuznets Simon. 1955. “Economic Growth and Income Inequality”, American Economic Review, n°49, março de 1955, pp.1-28.
38 Citado por Kapur, Devesh, Lewis, John P., Webb, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Century, Volume 1, p. 171.
39
Mais recentemente, no seu livro Le capital au XXIe siècle, Le Seuil,
2013, 970 pp, Thomas Piketty apresentou uma crítica muito interessante
da curva de Kuznets. Piketty lembra que, no início, o próprio Kuznets
duvidava da validade da sua curva, no entanto, isto não o impediu de
construir uma teoria com vida longa.