Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

A Corrupção existente na Ditadura Militar, até o AI-5

Segunda, 10 de agosto de 2020


Por
Salin Siddartha*


Link da música “Chame o Ladrão”, de Chico Buarque, para ouvir enquanto se lê o artigo: https://www.youtube.com/watch?v=kMmlXCcRjJc
Parte da população brasileira imagina que a Ditadura Militar foi uma época sem corrupção, porém se trata de um ledo engano. Quando deram o Golpe de Estado, em 1964, os militares prometeram limpar o País, entrementes o que conseguiram fazer, de verdade, foi censurar notícias sobre a roubalheira e abafar escândalos de corrupção que aconteciam na Ditadura. Para demonstrar um suposto combate à corrupção, o regime militar criou uma Comissão Geral de Investigações-CGI, que, além de ineficiente, era seletiva de jeito tal que, para os amigos dos governos militares, a CGI se calava, arquivando, sem investigação, denúncias como as que aconteceram contra os então Governadores José Sarney, do Maranhão, e Antônio Carlos Magalhães, da Bahia. Naqueles tempos, não era fácil identificar e punir corruptos e corruptores, sobretudo quando envolvia importantes autoridades públicas.
Os mecanismos, que hoje funcionam no sentido de divulgar publicamente as denúncias de corrupção, estavam amordaçados ou impedidos de agir, como é o caso da Polícia Federal, do Ministério Público, da imprensa, do Poder Judiciário, dos movimentos sociais, dos sindicatos, dentre outras instituições. Realmente, a corrupção se entranhou no sistema político durante o regime militar, mas a censura impedia que denúncias contra integrantes do governo viessem a público; se a população não sabia das falcatruas, era pelo motivo de que a imprensa não tinha a liberdade hoje existente para investigar e denunciar.
Outro motivo é que, como a sociedade civil estava impedida de organizar-se democraticamente, não existiam instrumentos de controle atuando com eficiência nem órgãos de fiscalização efetiva sobre as ações do governo. Os instrumentos de fiscalização e controle não possuíam autonomia no regime militar para proceder investigações e fazer acusações contra práticas ilegais, o que aponta, para o período ditatorial, a existência de ainda mais corrupção do que nos dias atuais, tendo em vista a facilidade com que ela poderia ocorrer em um ambiente sem sindicatos, imprensa livre, organização da sociedade civil e do Estado com liberdade de atuação.
Ainda que houvesse brutal repressão e tudo estivesse sobre forte cerceamento de qualquer possibilidade de repercussão, bastantes casos de corrupção que se deram durante o regime militar instaurado em 1964 vazaram, tornando-se notórios e fartamente documentados: superfaturamento, desvio de verbas, desvio de função, abuso de autoridade, tráfico de influências, tudo já era bem conhecido no Brasil da Ditadura Militar. Os servidores públicos brasileiros de elite percebiam salários 5% mais altos do que os norte-americanos; o presidente do Banco do Brasil ganhava Cr$1 milhão por ano, o que equivaleria a cerca de US$4,2 milhões anuais, acrescidos de diversos benefícios; empresas estatais distribuíam participação nos “lucros” mesmo quando tinham prejuízo – os diretores da Eletrobrás recebiam até o 17º salário. Altos funcionários não precisavam pagar aluguel nas mansões do Lago Sul, no Distrito Federal, nem contas de água, luz, telefone, conservação de piscina, criadagem, IPTU, vigilância, sequer despesas com cartão corporativo a que tinham direito. O aparato dos privilégios colocados à disposição dos superfuncionários governamentais incluía o uso de aviões executivos, cartões de crédito corporativos, contas abertas em supermercados, passagem, recebimento de diárias, assalariamento de serviçais, compras de alimentos, cobertura de despesas com serviços de lavanderia, manutenção e conservação de residências ministeriais e até mesmo uma inexplicável participação nos lucros das empresas estatais.
É bom esclarecer que o pagamento de propinas pelas empreiteiras se consolidou durante a Ditadura Militar. No período da Ditadura Militar existiam práticas de corrupção em que a atenção dos empreiteiros se voltava para o Poder Executivo, numa relação direta com os militares, ministros e presidentes das estatais, porque o Congresso, os dois únicos partidos e a sociedade civil daquela época não tinham o mesmo poder que os militares detinham. Grandes empresas de construção brasileiras nasceram tendo relações escusas com governos brasileiros, especialmente durante a Ditadura Militar, inclusive a Camargo Corrêa foi a maior empreiteira do tempo da Ditadura.
Até a década de 1960, as obras da Odebrecht, por exemplo, que nunca ultrapassavam os limites da Bahia, com o protecionismo do Presidente Costa e Silva, começou a dar saltos: primeiro, construiu o prédio-sede da Petrobras, no Rio de Janeiro, e, a partir daí, os contatos governamentais naquela petroleira estatal abriram as portas para novos projetos da Odebrecht, como a reconstrução do Aeroporto do Galeão e a construção da usina nuclear de Angra dos Reis. Assim, de 19ª empreiteira com maior faturamento, em 1971, ela pulou para a 3ª em 1973, e nunca mais deixou de ficar entre as 10 empreiteiras de maior faturamento. Outra beneficiada foi a Andrade Gutierrez, que saltou do 11º lugar para o 4º lugar, de 1971 para 1972.
No contexto da estrutura repressiva, em 1968, o delegado Sergio Paranhos Fleury, um dos maiores torturadores da repressão policial da Ditadura, protegia o traficante José Iglesias (vulgo Juca) e, para ajudá-lo, fuzilou seu rival, o traficante Domiciano Antunes Filho (vulgo Luciano). Nessa operação, foi encontrada uma caderneta com anotações referentes a propinas que ocorriam entre militares, policiais, políticos e traficantes.
Durante um processo no CADE-Conselho Administrativo de Defesa Econômica, em 1976, apurou-se a formação de um cartel de multinacionais no Brasil e o pagamento de subornos e comissões a autoridades para a obtenção de contratos. Naquela investigação do CADE, o presidente da General Eletric no Brasil-GE, Gerald Thomas Smilley, admitiu que a empresa pagou comissão a alguns funcionários do País para vender locomotivas à estatal Rede Ferroviária Federal S/A-RFFA. É que, em 1969, a Junta Militar que sucedeu o Presidente Costa e Silva e precedeu o Presidente Garrastazu Médici havia aprovado um decreto-lei que destinava “fundos especiais” para a compra de 180 locomotivas da GE – na época, um dos dirigentes da empresa no Brasil era Alcio Costa e Silva, irmão do ex-Presidente da República, morto naquele mesmo ano de 1969.
Naquela fase de nossa história recente, os governos eram amplamente corruptos. Além do mais, não havia legislação específica que permitisse ao Congresso Nacional e aos Tribunais fiscalizar os gastos dos superfuncionários, e os abusos podiam ser encobertos sob o manto da “segurança nacional”.
Era uma mamata completa.
Cruzeiro-DF, 9 de agosto de 2020
SALIN SIDDARTHA
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*Este artigo foi publicado originariamente neste domingo (9/8) no PorBrasília