Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 3 de junho de 2022

Você tem fome de quê?!

Sexta, 3 de junho de 2022
"Capitalismo controla os corpos e se alimenta das frustrações" - Foto: Divulgação MPA

Do Brasil de Fato Distrito Federal

COLUNA

Você tem fome de quê?!

Ju Amoretti 03 de Junho de 2022

O Capital se desenvolve quando nega à população o direito à saúde, educação, cultura, terra...

Apesar do sol, fazia frio. O inverno antecipado e rigoroso no mês de maio anunciou uma verdadeira tragédia, que Lina pressentiu.

O país vive um brutal aumento da pobreza.

Muitos assistem anestesiados e hipnotizados, com olhos e ouvidos de pouca seletividade, frente à máquina de produção de falsas verdades.

A propaganda, na nossa sociedade, a propaganda capitalista, gera desejos e frustrações, medo e culpa. Os corpos cansados e entregues de mulheres, homens, famílias, crianças, mal conseguem reagir. Quando cria o desejo radical de consumo de mercadorias desnecessárias e inacessíveis, por exemplo, o capitalismo controla os corpos e se alimenta das frustrações.

Não só disso. O Capital também se desenvolve favoravelmente quando nega à população o direito à saúde, educação, cultura, arte, terra, trabalho, reconhecimento, segurança.

Após ter saído do mapa da fome, em alguns anos de desgoverno, o Brasil retornou ao mapa exibindo, em 2022, índices de fome que superam a média global.

Pois no início daquela tarde, aglomeraram-se algumas dezenas de pessoas em profundo silêncio, formando uma roda bem fechada. Foi dita uma palavra:

- “Morreu”!

Lina caiu, aos prantos. As mulheres foram as primeiras a abraçar e acolher a dor de Lina.

Não foi dito se era criança, idoso, mulher, índio, sem terra, negro ou travesti. Tiro? Faca? Câmara de gás improvisada em carro pela polícia? Frio? Ou fome?


As perseguições eram uma constante, racismo, machismo, xenofobia, transfobia, ódio de classe e a todo tempo crescia a ganância das grandes empresas que exploravam os trabalhadores.

As lágrimas escorriam pelo rosto de Lina; ela fechou os olhos, abriu os braços, respirou fundo e virou a cabeça para o sol.

Durante os próximos minutos, as nuvens se movimentaram rapidamente, o céu se pintou de todas as cores e o vento bateu gritando tão forte, levantando tantas folhas e fazendo reviver tantas almas que o curto tempo transcorreu como se passassem centenas de anos.

Os pensamentos levaram de volta ao passado. Os mortos nas lutas se fizeram sentir ali presentes. De um a um foram ouvidos os seus nomes, que ecoavam uma, duas, três vezes.

O silêncio inicial, acolhedor do medo e da dor de Lina, que inicialmente denunciava uma apatia geral, se transmutou. Fez com que todes relembrassem o verdadeiro sentido de estar ali, lutando por seus direitos. E percebessem em suas próprias vidas, histórias não contadas de sangue, suor e luta.

Até a violência quando batia naqueles corpos virava coragem para lutar por uma vida digna e mais justa e amorosa, com terra e trabalho para todos. Como estavam juntos, aqueles corações rebeldes encontravam forças vindas das sementes crioulas, das danças e canções populares, da solidariedade. A coragem havia dominado o espírito daquela gente para extrair, das energias da terra, da água, do fogo e do ar, a força necessária para a transformação.

– “E a morte”?

– “Poderia ter sido evitada com um abraço, pão, café quente, abrigo e solidariedade”, disse Lina.

Para isso, só mudando toda uma estrutura de desigualdade política, econômica e social, aceitar diferenças, produzir para todos, distribuir riquezas, cuidar das pessoas, promover o amor, o conhecimento e a alegria de corpos dançantes, valorizar a vida.

Quais seriam os alimentos de um novo projeto de sociedade? E você, tem fome de quê?


*Ju Amoretti é cientista social, psicóloga, pesquisadora de mulheres, direitos humanos e pensamento social latino-americano e, agente cultural no DF.

**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.


Edição: Flávia Quirino