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(Millôr Fernandes)

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Conhecimento —Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater) Agroecológica constrói saberes e impulsiona práticas efetivamente sustentáveis

Quinta, 8 de agosto de 2024

Organizações e famílias desenvolvem método e cobram
a adequação da Assistência Técnica às realidades locais

Rádio Brasil de Fato
Daniel Lamir
08 de agosto de 2024Download

O conhecimento agroecológico das quinze famílias do assentamento Arcanjo fortalece o sentido de coletividade no local - Daniel Lamir
Se a gente cultiva uma terra bem cultivada, sem veneno, vamos ter uma qualidade de vida bem melhor
Aos sábados, a agricultora Fátima Rocha, de 45 anos, vê o sol raiar do bairro de Setúbal, na zona sul do Recife. Para garantir a presença semanal em um dos espaços agroecológicos da cidade, não há tempo para dormir em sua casa, localizada a mais de 100 quilômetros de distância. No local, que oficialmente começa a funcionar às 6h30 da manhã, ela comercializa alimentos saudáveis, produzidos de forma agroecológica.

“Eu chego no Recife às 4h30 e tem dia que, ao agasalhar [colocar a cobertura da barraca], os clientes já estão todos lá em cima. Tem dia que é uma correria só”, conta a agricultora que leva frutas, verduras, legumes, hortaliças, carnes e ovos todas as semanas para a capital pernambucana desde 2016.

A “correria” do dia faz parte de uma maratona com o plantio, colheita, preparação, beneficiamento, organização e deslocamento, até o momento da comercialização. O ciclo semanal começa na segunda-feira e só fecha na tarde do sábado, quando ela volta para sua casa, localizada no sítio Feijão, no município de Bom Jardim, no agreste pernambucano.

“A sensação de dever cumprido vale mais do que qualquer cansaço. Porque tem a nossa qualidade de vida e nossos valores. Porque se a gente cultiva uma terra bem cultivada, sem veneno, sem agrotóxico, vamos ter uma qualidade de vida melhor. É bom para nossa saúde, vai ser bom para nossos filhos, para os netos, que vão chegar um dia. E assim vamos mudando o mundo”, conta a agricultora.

Para Fátima, as mudanças começaram do chão que ela pisa. Desde 2010 ela transforma seus três hectares e meio em um local cada vez mais sustentável, em aspectos ambientais, sociais e econômicos. A agricultora desenvolve a chamada transição agroecológica, em que, aos poucos, deixa para trás algumas práticas convencionais, como desmatamento e queimadas. Hoje, ela aproveita cada centímetro do espaço com o chamado quintal produtivo, a criação de aves, ovinos, suínos e bovinos, além de dois roçados, em uma zona de transição entre os biomas da Caatinga e da Mata Atlântica.

“A natureza nos responde se dermos valor a ela e plantarmos com carinho. A natureza nos dá planta bonita, dá uma fruta boa, uma árvore bonita. É uma troca de experiência com a natureza”, afirma a agricultora que mantém um patrimônio de conhecimentos na lida com a biodiversidade e na construção do conhecimento com outras pessoas que praticam e estudam a agroecologia.

Para Fátima, uma das atividades essenciais no apoio ao trabalho agroecológico é a Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater). Entretanto, de acordo com ela, muitas vezes o serviço é realizado de forma inadequada, com pouco tempo e, em suas palavras, “de cima para baixo”, atropelando uma perspectiva dialógica de construção do conhecimento. A agricultora questiona o formato de visitas técnicas convencionais, com uma média de duas horas de duração. Para ela, um tempo maior é necessário para uma efetiva troca de saberes que considere sua experiência agroecológica e seu contexto territorial.

“O tempo para ele [técnico de Ater] passar mais conhecimento para a gente, e a gente passar nossos conhecimentos para ele. Porque se ele não for como um agricultor, não vai se interessar pela nossa história. Ele vai chegar e impor o que ele sabe, e por aí fica. Não vai querer trocar as experiências com a gente”, afirma, ao lembrar a visita de um técnico de Ater que “queria ser melhor do que as pessoas do campo, e praticamente humilhava”. O serviço, de acordo com ela, teve pouca efetividade e ficou longe do previsto.

Associada à Agroflor, Fátima (de blusa branca), ao lado dos agricultores João Ribeiro e Vanusa Gomes, sonha em assumir um cargo de liderança na entidade do território. / Daniel Lamir


Além de seus conhecimentos de base agroecológica e riqueza da biodiversidade local, a Ater cobrada por Fátima deve levar em conta as especificidades das condições de trabalho. Ela afirma que a lida ficou ainda mais pesada depois que o esposo, em 2018, sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC) e ficou impossibilitado de participar das demandas no campo. Na organização familiar, os estudos são prioritários para os dois filhos adolescentes, que passam mais tempo na escola. Todo esse contexto, de acordo com ela, deve ser valorizado e considerado, ao invés de uma Ater como “receita pronta” que seria capaz de ser replicada em toda e qualquer propriedade.

“[Muitas pessoas] acham que é um trabalho em vão que fazemos. Se a pessoa passasse a conhecer o nosso trabalho, eu acho que valorizaria mais”, afirma, ao destacar uma perspectiva preconceituosa sobre as atividades camponesas, incluindo a configuração de políticas públicas para o setor. A agricultora ressalta, por exemplo, que o serviço de Ater precisa agregar pautas dos movimentos populares, como a sobrecarga de trabalho das mulheres. Nesse sentido, ela destaca a experiência de participar do chamado Método Lume, desenvolvido por organizações na região Nordeste, na proposta de favorecer uma Ater de viés agroecológico.

“Eu não percebia [que estava com sobrecarga de trabalho]. Foi com o Método Lume que percebi que todas as atividades [na propriedade, quem assume] sou eu. Eu me vejo em todas elas. Meus filhos me ajudam, mas, assim, muito pouco, que eles não podem desistir dos estudos para viver trabalhando. Eu me vejo em todas as atividades, cuidando dos bichos, trabalho na horta, em casa, fazendo feira. Faço tudo praticamente”, explica, após vivenciar uma assessoria que durou cinco dias e foi realizada pelo Centro Sabiá.


A partir de uma Ater Agroecológica, a experiência de Fátima foi sistematizada, com dados e análises que permitem visualizar sua história e seus sonhos de uma forma mais ampla. Com o Lume [método de produção coletiva de conhecimento] ela problematiza e busca soluções para questões como a sobrecarga de trabalho, entre outras. O processo com o Centro Sabiá foi realizado de forma diálogo com técnicos e técnicas da organização, resultando em uma troca de conhecimentos e registros materiais.

“Uma Ater Agroecológica valoriza o local, os saberes locais, a natureza, o ambiente, a cultura local. Então, é trabalhar valorizando saberes e conhecimentos dos povos, contribuir para mudar essa relação entre técnico, técnica e agricultores e agricultoras”, explica Glória Batista, da coordenação do Programa de Aplicação de Tecnologias Apropriadas (Patac), que atua no estado da Paraíba e defende a ampliação de uma Ater Agroecológica e a ampliação do uso do Método Lume.

Também do sítio Feijão, Rafael Justino afirma que a Ater Agroecológica reconhece o valor camponês. Por outro lado, o agricultor critica modelos e Ater convencionais que enxergam apenas uma perspectiva empresarial para o trabalho no campo, e que, de acordo com ele, trazem apenas uma ilusão no aspecto econômico.

"O povo hoje em dia está muito com um espírito de dinheiro, só de lucro, pensando no agronegócio. Mas o agronegócio é agricultura de empresário. Empresário não é agricultor. O empresário quer uma empresa que produza e que venda. O pessoal na visão do agronegócio afundando no negócio. Vai se viciando naquelas coisas", afirma, ao destacar o contexto dos interesses comerciais do setor com grandes conglomerados empresariais. Ao contrário, Rafael defende que uma Ater Agroecológica possibilita enxergar melhor os caminhos para a autonomia camponesa, com economia solidária nas comunidades e a qualidade de vida, sem exploração do trabalho e com o autoconsumo de alimentos saudáveis, entre outros exemplos.

Rafael Justino também realiza a chamada transição agroecológica em sua propriedade e comercializa no Recife / Daniel Lamir


Ampliação da Ater Agroecológica

Doze organizações que atuam com a Ater Agroecológicas defendem a ampliação do Método Lume. Elas fazem parte da Rede Ater Nordeste de Agroecologia e afirmam que a iniciativa ajuda a perceber soluções concretas para a segurança e soberania alimentar, convivência com a natureza e o desenvolvimento sustentável nos territórios. O método está registrado desde 2017 no banco de tecnologias sociais da Fundação Banco do Brasil e já foi desenvolvido com cerca de 150 famílias na região Nordeste.

Além de famílias do sítio Feijão, no agreste pernambucano, a iniciativa foi aplicada no assentamento Arcanjo, localizado na zona rural de Soledade, no cariri paraibano. O Patac, organização que integra a Rede Ater Nordeste de Agroecologia, aplicou a Assistência Técnica no local que abriga quinze famílias. O Lume foi utilizado no processo.

“É uma ferramenta muito eficiente do ponto de vista conceitual e metodológico, no sentido da gente qualificar um trabalho de Assessoria Técnica, seja uma chamada pública, seja em outras iniciativas, como visitas de intercâmbio, projetos em redes, pesquisas”, define Antônio Carlos, conhecido como Tonico, técnico do Patac.

O Método Lume foi criado pela organização AS-PTA e segue em constante aprimoramento pela Rede Ater Nordeste. A iniciativa aponta um modelo de Assistência Técnica no sentido dos postulados de Paulo Freire diante das disputas pelo modelo do serviço no Brasil ao longo de décadas. O Patrono da Educação analisou o trabalho de técnicos e técnicas extensionistas, defendendo uma atuação em campo mais aberta a uma comunicação e reconhecimento dos saberes camponeses. Em um exemplo prático, seria a indicação de profissionais que, antes de falar, estejam abertos a um escuta verdadeira das famílias do campo, quebrando uma lógica de hierarquização de poder entre os dois lados.

Assentados e assentadas do Arcanjo preservam e compartilham saberes do local na contação de histórias e cultura popular / Daniel Lamir


Dessa forma, uma Ater Agroecológica vai além de uma difusão de conhecimento. Há uma troca de saberes entre os campos científicos e populares, os contextos territoriais e a valorização da autonomia camponesa. No assentamento Arcanjo, por exemplo, a agricultora Juciene Torres lembra a insatisfação coletiva com uma Ater convencional que previa a perfuração de poços no território. Ela destaca que os profissionais chegaram na comunidade sem avisar e relataram que precisavam fazer três escavações.

“Eles furaram, tinham que furar três cantos de poços e eu perguntei porque não só um? ‘Não, porque viemos com os papéis de lá para furar esses três lugares’. Aí eu disse: ‘não, mas só que aí vocês estão destruindo a natureza, cavando a profundidade grande para poder achar água, mas vocês já imaginaram como é lá dentro?’ Então eu imagino como se fosse a terra se doendo lá dentro, com três buracos perto um do outro. Um dos espaços que eu sabia de certeza que dava. Eu disse a eles. Só que aí eles dizem: ‘não, a gente tem que começar de lá, no primeiro buraco’, relata Juciene, ao lembrar que os técnicos erraram e perfuraram o território, ignorando a assertividade da radiestesia, que sugeria outro local para a escavação.


São situações como essa que a Rede Ater Nordeste de Agroecologia sugere que poderiam ser alteradas, principalmente no dia a dia da Assistência Técnica para famílias em transição no modo de agricultura. De acordo com o coletivo, o Lume pode se somar ao processo favorecendo um reconhecimento da agroecologia como um paradigma político, a partir dos desafios, potencialidades, estratégias e planejamentos das famílias e das comunidades.

“Precisamos influenciar também a concepção das chamadas públicas [de Ater] . Elas precisam ser modificadas para que, de fato, tenhamos uma Ater Agroecológica, não só uma retórica. Precisamos de fato fortalecer a construção participativa do conhecimento, horizontalidade entre os técnicos, construção coletiva. Dessa forma não alcançamos o nosso objetivo de mudanças na produção, na organização, no protagonismo dos jovens, das mulheres”, considera Tonico.

Outro lado

O Brasil de Fato entrou em contato com a Agência Nacional de Assistentância Técnica e Extensão Rural (Anater), vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Agrário a Agricultura Familiar (MDA). O órgão afirmou que é compromisso da atual gestão, desde o ano passado, "construir programas e prestar assistência técnica e extensão rural de forma dialógica com objetivos agroecológicos".

Também foi citado o apoio ao uso das tecnologias sociais, valorização dos conhecimentos ancestrais e tradicionais e dos saberes populares na atuação da Anater, "por meio de entidades parceiras que contrata para atender a agricultura familiar e demais públicos previstos na Lei 11.326/2006". A Agência ressalta que "essa troca de saberes, por si, obriga a uma Ater dialógica para a construção participativa do desenvolvimento sustentável dos nossos territórios".

Ainda segundo a Anater, a atuação da nova gestão, a partir de monitoramento e diálogo com organizações da agricultura familiar, mantém "a agroecologia como proposta e a transição ecológica como método". Essa diretriz, de acordo com o texto, "alcançou conquistas importantes, criando oportunidades de crescimento, melhorando a transparência e eficácia operacional para atingir os objetivos das políticas públicas de produzir alimentos saudáveis, mitigar os efeitos das mudanças climáticas e promover o bem viver da população e comunidades".

Edição: Nathallia Fonseca