Sexta, 13 de setembro de 2024
Lá vão as leis para onde querem os reis
(Provérbio peninsular)
Roberto Amaral*
Reuniu-se na última quarta-feira (11/09) o Conselho de Ética da Câmara dos Deputados e, como o cão de Pavlov, desempenhou a contento o papel que lhe havia sido ditado: aceitar a admissibilidade da representação (apresentada por um apêndice da direita fascista) contra o mandato de um dos melhores quadros da política brasileira: o deputado federal Glauber Braga. Simplesmente isto, e não se esperaria algo distinto, nem do relatório encomendado, nem da votação que o aprovou.
Não se diz que o parlamentar já foi punido, mas se afirma que silenciá-lo é a intenção da direita que hoje comanda o poder legislativo: a direita que inventou o orçamento secreto e com ele se cevou; a direita retrógrada que tudo faz para revogar os avanços sociais e trabalhistas conquistados ou reconquistados pela luta do povo brasileiro a partir da Constituição de 1988. Não se trata, portanto, de uma direita qualquer. Embora não passe de uma choldra, é poderosa, organizada e militante. Frequenta os salões e os escritórios da classe dominante. Sabemos de que é capaz, pois batalha diuturnamente em todos os espaços da política, e em todos investe contra os interesses nacionais, o desenvolvimento e a proteção social. Não pode negar, pois as exibe, suas vinculações internacionais, políticas e econômico-financeiras, particularmente com o trumpismo e as vertentes mais radicais do sionismo, assíduas nas manifestações que promove na Av. Paulista. Gestada nos porões da ditadura, é o seu chorume. Saudosista do regime militar decaído, voltou à tona com o golpe de 2016 e consolidou seu acesso ao poder nas eleições de 2018. Foi agente da tragédia econômica, política, humana e moral que se seguiu. Seu projeto é sempre a destruição do processo democrático, para o que não vacilará em eliminar adversários. Derrotada no pleito de 2022, ousou a intentona de janeiro de 2023, quando invadiu as sedes dos três poderes da república e depredou suas instalações.
Essa direita, delinquente e covarde, pede na praça pública anistia para seus crimes, e na Câmara dos Deputados investe contra o mandato limpo e corajoso do deputado Glauber Braga.
A cassação de um mandato parlamentar é, em regra, medida de última cogitação, pois inestimáveis são seus custos, graves e irremediáveis os danos que encerra. O parlamentar ofendido perde o mandato conquistado no processo eleitoral, e, ademais, pena sobre pena, torna-se inelegível por longos oito anos. Ou seja, a perda do mandato traz consigo uma pena de igual ou maior peso: a suspensão dos direitos políticos. Não pode, pois, ser instrumento de interesses menores — a perseguição a adversários — a serviço das maiorias eventuais, e este é o caso presente.
Por isso mesmo é da tradição dos parlamentos zelar pela sua integridade e só apelar para essa medida em casos excepcionais. Nossa Câmara, até aqui, se insere nessa boa linha. Em 1950 se recusou a cassar, por razões políticas, o mandato de Hermes Lima. Em 1952, a Procuradoria-Geral da República solicitou licença para processar Carlos Lacerda, que havia lido, na tribuna, telegrama sigiloso do Itamaraty. A Câmara negou a licença. Em 1968, em plena ditadura, a Câmara recusou a cassação do deputado Márcio Moreira Alves, cobrada pelos militares. O parlamentar carioca, em meio a discurso de críticas ao regime, na tribuna da Casa, sugerira à população brasileira o boicote aos desfiles de Sete de Setembro daquele ano. A Casa preferiu enfrentar a caserna furiosa a ceder em questão de princípio. Por sinal esta tem sido a linha de conduta do parlamento brasileiro, até aqui, seja sob a ordem da Constituição de 1946, seja sob o regime de 1988. As arbitrariedades ficaram restritas à ditadura e seus atos institucionais. Desses tempos de chumbo estamos livres desde 1985. E a eles não queremos voltar.
Em todo o atual período democrático, da Constituinte de 1987 aos nossos dias, no transcurso, portanto, de 37 anos e seguidas legislaturas, vencidas crises as mais agudas, a Câmara dos Deputados cassou tão somente sete mandatos. Nenhum por razões políticas.
Nenhuma condenação política e nenhuma similitude com os fatos de que Glauber é acusado. A regra é a convivência democrática, que se espera seja preservada na atual legislatura.
Nas duas últimas legislaturas, coincidindo com a presidência do coronel Arthur Lira (que traz no currículo, entre outras, denúncias de obstrução da Justiça, enriquecimento ilícito, lesão corporal e estupro, todos crimes comuns), esta é a quinta tentativa de cassação do mandato de Glauber Braga. A acusação contra Glauber, disfarçada de quebra do decoro, é inepta do ponto de vista jurídico, mas pode ser levada a cabo, eis que atende a uma paranoica necessidade de perseguição ao parlamentar. A abertura do processo e seu desfecho foram claramente maquinados em instâncias superiores ao Conselho, um colegiado eminentemente político, burocrática e politicamente dependente da Mesa da Câmara, assim sem autonomia política, ideológica ou moral. O que ora lhe cumpre é afastar da Câmara um deputado que se tornou incômodo, exatamente pelas suas boas qualidades, pela ação consequente e muitas vezes intimorata, no parlamento e fora dele, militando as boas causas, atuando junto com os sindicatos, os trabalhadores e os assalariados de um modo geral. Mas, de igual modo, pondo seu mandato a serviço dos interesses dos subempregados e dos desempregados, dos sem-terra e dos sem-teto. Trata-se, pois, de um parlamentar incômodo à ordem, pois não se cansa de denunciar a sociedade de classe que gera a injustiça social. Se não é possível calá-lo — este, o desideratum da direita —, é preciso impedir que continue atuando.
É, pois, nesses termos que o atraso se prepara para condenar ao limbo uma das mais consequentes expressões da esquerda brasileira, um dos poucos parlamentares socialistas sobreviventes no poder legislativo de hoje, abastardado pelo avanço da direita nas duas últimas legislaturas. Mas não é só, pois se trata, também, de decepar pela raiz uma esperança de renovação da política fluminense, hoje espaço de disputa de poder entre facções do crime organizado e seus procuradores e representantes, na política e no poder. Inclusive na Câmara dos Deputados, como muito bem sabe o Conselho de Ética, pois conhece o prontuário de Chiquinho Brazão. Sabe, portanto, embora tente negá-lo, que exerce papel político, porque é política a decisão que pode levar à cassação do mandato de Glauber Braga. A admissibilidade do processo, o fato da última quarta-feira, é o ponto de partida.
Não podendo enfrentar a questão política, o Conselho, industriado, optou por acusar o deputado por ofensa ao decoro parlamentar. “Ofensa” que teria ocorrido quando Glauber reagiu após ser insistentemente agredido por um provocador a soldo da agremiação protofascista MBL. O meliante o acoimava de “burro” e “fraco”, enquanto rodava uma transmissão online.
Esse agente da direita tem o hábito de, em suas redes sociais, postar vídeos nos quais aborda figuras políticas de esquerda com insultos; desta feita, porém, ultrapassara todos os limites da suportabilidade humana, ao agredir a mãe de Glauber Braga, naquele momento hospitalizada, vindo a falecer poucos dias depois. O ofendido, sem a proteção esperável da chamada Polícia Legislativa, reagiu, finalmente, como deveria agir, expulsando de seu entorno o borra-botas. Deu-lhe merecidos empurrões, e o provocador foi posto na rua. A direita não gostou, os fascistas ficaram indignados, e todos juntos querem cassar o mandato de Glauber Braga. Assim o ofendido vira agressor e a vítima é encaminhada ao pelotão de fuzilamento.
Esta é a quinta tentativa nas duas últimas legislaturas e, por coincidência, sob a presidência do deputado Arthur Lira. Não resta dúvida quanto ao caráter da perseguição política, e é preciso detê-la.