Por Yanis Varoufakis | Tradução: Antonio Martins
Em 9 de fevereiro de 1967, horas depois de a Força Aérea dos EUA arrasar o Porto de Haiphong e várias bases aéreas vietnamitas, a NBC exibiu um episódio de Star Trek com um conceito que colidia brutalmente com o que acabara de acontecer no Vietnã: a Diretriz Primeira – uma proibição geral a seus capitães de nave estelar de usar tecnologia superior (militar ou não) para interferir em qualquer comunidade, povo ou espécie senciente, mesmo que a não-interferência custasse suas próprias vidas.
Ao transformar uma ideologia tão radicalmente anti-imperialista na regra cardinal da fictícia Federação Unida de Planetas – que o público norte-americano via como uma extensão lógica dos EUA –, não seria surpresa se o presidente Lyndon B. Johnson ou o Pentágono tivessem exigido o cancelamento imediato de Star Trek. Felizmente, não o fizeram. E assim, ao longo dos 939 episódios (em 12 séries diferentes) que se seguiram, a Diretriz Primeira permitiu que roteiristas e diretores explorassem suas repercussões políticas e filosóficas, incluindo conflitos éticos que levaram a suas frequentes violações, mas nunca a sua revogação.
Também permitiu outra inferência: essa Federação futurista jamais teria amadurecido o suficiente para adotar a Diretriz Primeira anti-imperialista antes que uma versão humanista do comunismo fosse estabelecida na Terra!
O comunismo libertário de Star Trekcontra o coletivismo autoritário
É cristalino que Star Trek retrata uma sociedade comunista, sem jamais nomeá-la como tal. Num episódio de 1988, a USS Enterprise encontra uma nave terrestre enferrujada, com câmaras criogênicas contendo plutocratas humanos que pagaram fortunas para serem congelados e lançados ao espaço, na esperança de que alienígenas os curassem de suas doenças, mortais no século XX.
Após a tripulação da Enterprise descongelá-los e curá-los, um deles, Ralph Offenhouse, um empresário, exige contatar seus banqueiros e escritório de advocacia na Terra. O capitão Jean-Luc Picard não tem escolha a não ser revelar que, nos trezentos anos que se passaram, muita coisa mudou.
— Picard: As pessoas não são mais obcecadas por acumular coisas. Eliminamos a fome, a carência e a necessidade de posses. Saímos da nossa infância.
— Offenhouse: Você não entendeu. Nunca foi sobre posses. É sobre poder.
— Picard: Poder para quê?
— Offenhouse: Para controlar sua vida, seu destino.
— Picard: Esse tipo de controle é uma ilusão.
— Offenhouse: Sério? Então por que estou aqui?
A alusão de Offenhouse ao pendor pela acumulação que sustenta a vontade de poder aponta o motivo pelo qual a Diretriz Primeira é incompatível com o espírito do capitalismo: enquanto a acumulação, alimentando a expansão dos mercados, for a força motriz e ideologia de nossa sociedade, o imperialismo será inevitável.
Para escapar disso, a humanidade deve primeiro eliminar a escassez de bens materiais – eliminação que, na Federação Unida de Planetas, foi alcançada graças à invenção e disseminação dos replicadores: máquinas que convertem energia verde abundante em qualquer forma de matéria desejada, de comida a gadgets a naves espaciais.
Esta não é exatamente uma ideia nova. Em 350 a.C., Aristóteles já previra que “…se cada instrumento pudesse realizar seu trabalho por si, obedecendo ou antecipando a vontade alheia, como as estátuas de Dédalo ou os trípodes de Hefesto que, diz o poeta, ‘por vontade própria entraram na assembleia dos Deuses’; se, da mesma forma, a lançadeira tecesse e o plectro tocasse a lira sem mãos que os guiassem, os mestres não precisariam de servos, nem os senhores de escravos.”
Ele próprio um ávido aristotélico, Karl Marx baseou sua visão de uma sociedade comunista libertadora – onde tanto o Estado quanto o mercado definham – em máquinas como os replicadores de Star Trek, que nos libertam do trabalho não-criativo, esmagador da alma.
Em um de seus escritos iniciais, ele imagina o que se seguiria à invenção de tais máquinas:
“Na sociedade comunista, onde ninguém está confinado a uma única esfera de atividade, mas pode se dedicar ao campo que desejar, a sociedade regula a produção total, e assim posso caçar de manhã, pescar à tarde, pastorear à noite e analisar teatro após o jantar – sem precisar ser caçador, pescador, pastor ou crítico.” [A Ideologia Alemã, 1845]