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quinta-feira, 10 de abril de 2025

O pensamento estético de Paulo Freire

Quinta, 10 de abril de 2025

Educador via profunda dimensão artística no ato de ensinar. Nunca sistematizou estas ideias em livro. Mas uma revisão de seu trabalho mostra como enxergou a poética do povo e a criação contínua, no ensino, de formas da existência humana


OutrasPalavras História e Memória
por Aristóteles Berino Publicado 10/04/2025

Imagem: Escola Projeto 21

Título original: Sobre a natureza artística da educação em Paulo Freire



O fotograma acima pertence a um registro gravado pela professora Joana Lopes em 1990. O título do vídeo é Conversando com Paulo Freire sobre arte e educação.1 O que vemos aqui é o momento em que Paulo Freire mostra alguns quadros que possuía em sua residência. Havia em Paulo Freire algum interesse em arte? Alguma relação com a sua concepção de educação?

Sim, arte e estética foram referidas várias vezes por Paulo Freire em suas publicações. Embora, curiosamente, não foram questões observadas pelos intérpretes e estudiosos da sua obra até agora, com limitadas exceções. Escreveu-se muito pouco sobre as reflexões de Paulo Freire acerca da arte e da estética em seus livros. Surpreende porque as menções de Paulo Freire são bastante significativas e em número suficiente para constituir uma pesquisa particular sobre o seu legado. Meu interesse é pesquisar a natureza artística da educação em Paulo Freire e suas ideias estéticas.

Nesse breve texto pretendo me ater mais à primeira questão, sobre a natureza artística da educação em Paulo Freire. De alguma forma os elementos de uma e outra questão se sobrepõem, ainda assim, acredito que ambas possuem certa autonomia, o que justifica uma separação temática para um esclarecimento mais adequado aos respectivos objetos. Metodologicamente, optei por ressaltar as palavras do próprio Paulo Freire, examinando passagens de seus escritos que remetem ao conceito de “natureza necessariamente política e artística da educação”, presente no livro Medo e ousadia.

Apesar do caráter muito disperso das referências de Paulo Freire à arte e à estética, elas ocorrem em número considerável. Desde Educação e atualidade brasileira, tese apresentada para um concurso, em 1959, até Pedagogia da autonomia, seu último livro publicado, em 1996, e em publicações póstumas, vamos encontrar Paulo Freire fazendo alguma relação sobre arte, estética e educação. Em algumas ocasiões, suas reflexões são breves, mas há também passagens mais elaboradas. O que existe é suficiente para afirmar que constitui um interesse específico que acompanhou Paulo Freire ao longo da sua trajetória como educador e pensador.

A seguir, apresento uma pequena seleção desses extratos e faço um breve comentário sobre eles. A identificação das páginas refere-se às edições listadas ao final do texto.“O educador é um político e um artista”. Cartas à Guiné-Bissau, p. 45.

Paulo Freire é lembrado principalmente pelo caráter político que atribuía à educação, mas raramente é reconhecido como alguém que via o educador também como um artista. No entanto, em seus escritos, entrevistas e registros em vídeo, há passagens em que ele aborda a dimensão artística da educação, às vezes de forma bastante direta, como neste trecho. Essa recorrência permite afirmar que, para Paulo Freire, esse era um aspecto altamente relevante e digno de consideração por parte de seus leitores.“Na medida em que conhecer é desvendar um objeto, o desvendamento dá ‘vida’ ao objeto […]. Isto é uma tarefa artística, porque nosso conhecimento tem qualidade de dar vida, criando e animando os objetos enquanto estudamos”. Medo e ousadia, p. 145.

Medo e ousadia, livro que contém o registro de uma longa conversa entre Paulo Freire e o educador norte-americano Ira Shor, é uma das principais referências sobre o aspecto artístico e estético em sua concepção de educação. Nesse sentido, a interlocução com Ira Shor foi fundamental, pois sua participação na conversa estimulou Paulo Freire a desenvolver mais o assunto, em comparação com outras referências. No breve excerto reproduzido, Paulo Freire reflete sobre a relação entre conhecer e criar: “nosso conhecimento tem qualidade de dar vida”. Para Paulo Freire, o conhecimento é parte essencial do processo de transformação das condições existenciais. O artístico emerge de uma correspondência entre a criação de formas e a recriação contínua da existência humana.“Quando vivemos a autenticidade exigida pela prática de ensinar-aprender, participamos de uma experiência total, diretiva, política, ideológica, gnosiológica, pedagógica, estética e ética, em que a boniteza deve achar-se de mãos dadas com a decência e com a seriedade”. Pedagogia da autonomia, p. 26

No pequeno manual que escreveu sobre os “saberes necessários à prática educativa” (subtítulo de Pedagogia da autonomia), Paulo Freire destaca o caráter integral da prática educativa ao referir-se a ela como uma “experiência total”, citando a estética como um dos seus elementos. Portanto, estética é uma materialidade da prática educativa e dela não pode ser subtraída. Consequentemente, precisa ser reconhecida. Deve ser considerada sempre que a educação for problematizada.

4. “Me experimentei em estudos de linguística e recusei sempre me perder em gramatiquices. Dei aula de gramática propondo aos alunos a leitura de Gilberto Freyre, de Graciliano Ramos, de Machado de Assis, de (José) Lins do Rego, de Manuel Bandeira, de (Carlos) Drummond de Andrade. O que buscava incansavelmente era a boniteza na linguagem, oral ou escrita”. Política e educação, p. 95.

5. “Foram desses tempos as primeiras tentativas no sentido de desafiar ou de estimular, de instigar os alunos, adolescentes dos primeiros anos do então chamado curso ginasial, a que se dessem à prática do desenvolvimento de sua linguagem – a oral e a escrita. Prática impossível, quase, de ser vivida plenamente se a ela falta a busca do momento estético da linguagem, a boniteza da expressão a que se junte a preocupação com a clareza do discurso […]”. Política e educação, p. 96.

Os trechos 1, 2 e 3 foram extraídos de publicações de Paulo Freire, datadas respectivamente das décadas de 1970, 1980 e 1990. São apenas alguns exemplos, pois há muito mais conteúdo disponível para análise. No entanto, o interesse de Paulo Freire por essas questões remonta a um período ainda anterior, o que podemos observar nas diversas vezes em que ele narrou sua trajetória no magistério. São os trechos 4 e 5, extraídos do livro Política e educação. Eles recordam sua experiência nos primeiros anos de magistério, ainda muito jovem. Paulo Freire já era professor enquanto cursava o ginásio no renomado Colégio Oswaldo Cruz, em Recife. A mãe de Paulo Freire conseguiu uma bolsa de estudos para ele. Em troca, ele deveria ser um aluno aplicado. Como resultado, estudou linguística e escolhia os autores que utilizaria em suas aulas, orientado pela busca de uma expressão escrita que não se restringisse a uma forma gramatical excessivamente rigorosa. Valorizava, assim, o desenvolvimento de uma linguagem que proporcionasse resultados mais significativos para quem a praticasse, algo possível apenas quando se concretizava como um momento de beleza, existencialmente gratificante: o “momento estético da linguagem”.

6. “Eu diria também que uma das notas centrais de uma prática educativa, principalmente nesses tempos atuais de avanços tecnológicos em que você pode virar tecnicista, é você viver intensamente a esteticidade da educação. Sou tão exigente com isso que nem sequer uso a expressão que deu título ao famoso livro de Herbert Read, A educação pela arte, nos anos 50. A educação já é essa ‘arte’, apesar de se poder fazer pela arte também. Ela é em si uma proposta artística, ela já tem arte”. Pedagogia da Tolerância, p. 299.

Em depoimento à psicanalista Zélia Goldfeld, originalmente publicado no livro Encontros de vida: 34 depoimentos de pessoas com mais de 60 anos apaixonadas pela vida, Paulo Freire faz um comentário esclarecedor sobre sua concepção do lugar da arte na educação, afastando-se de uma abordagem conhecida como “educação pela arte”. O que isso significa? A defesa da arte como algo fundamental à educação. Há um deslocamento na posição de Paulo Freire. Embora não negue a presença da arte como atividade autônoma na educação, o que ele distingue é outra coisa: “Ela é em si uma proposta artística, ela já tem arte”. Voltando à Pedagogia da autonomia, poderíamos dizer que como experiência total a educação já contém uma dimensão estética, artística e criadora. Por isso, seu cuidado em assinalar uma importante diferença em relação à abordagem “educação pela arte”. A breve passagem destacada contém ainda uma consideração sobre a estética e a educação frente aos “tempos atuais de avanços tecnológicos”. Preconiza a necessidade de intensificar a “esteticidade da educação” combatendo o tecnicismo. Essa crítica se mantém atual, se pensarmos, por exemplo, nos apelos atualmente dirigidos à inteligência artificial generativa como uma maravilha educativa.

A referência que Paulo Freire faz ao livro do Herbert Read, Education Through Art, publicado na década de 1940, só pode ser adequadamente compreendida se lembrarmos de um momento da trajetória de Freire, nem sempre destacado ao falarmos de sua formação intelectual, mas de fundamental importância para a pesquisa sobre arte e estética em sua concepção de educação. Refiro-me à sua participação na criação da Escolinha de Arte do Recife, em 1953. A primeira escolinha de arte foi criada no Rio de Janeiro, em 1948, a Escolinha de Arte do Brasil. Trata-se de um movimento voltado à promoção do ensino de arte para crianças de forma livre, criativa e experimental. Herbert Read foi um inspirador do movimento. Portanto, é bastante significativo que, já em um momento avançado de sua trajetória, mas ainda compartilhando uma visão sobre arte e educação, tenha feito uma observação para afirmar a particularidade do seu ponto de vista.

7. “Francisco Brennand, uma das maiores expressões da pintura atual brasileira, pintou estas situações (existenciais), proporcionando assim uma perfeita integração entre educação e arte”. Educação como prática da liberdade, p. 117.

O chamado Método Paulo Freire, por ele desenvolvido para campanhas de alfabetização no início da década de 1960, consistia em fases sucessivas de ações pedagógicas até que a alfabetização fosse alcançada. Em um dos primeiros momentos, por meio das chamadas fichas de cultura, os educandos eram convidados a participar de um desafio de decodificação de imagens. As fichas de cultura reuniam situações existenciais comuns àquele grupo de educandos. Em seguida, procedia-se a um diálogo. O material deveria proporcionar uma problematização da realidade em que viviam, a qual deveria ser percebida como transformável. Em decorrência, deveria haver um engajamento com a alfabetização como aquisição fundamental para o reconhecimento da presença no mundo e sua transformação. Trata-se de uma educação crítica e transformadora, como frequentemente é identificada a concepção de educação em Paulo Freire. Há um conjunto de imagens criadas pelo artista Francisco Brennand, que estão entre as mais conhecidas, pois foram especialmente feitas para o conhecimento do então presidente João Goulart. Quando concluiu Educação como prática da liberdade, em 1965, um ano após o golpe civil-militar de 1964, os originais dessas imagens haviam sido apreendidos e, no livro, foram substituídos por outras, do artista Vicente de Abreu. As imagens de Francisco Brennand podem ser hoje conhecidas e pesquisadas na internet.2 O comentário de Paulo Freire, no qual afirma que constituíam “uma perfeita integração entre educação e arte”, remete mais uma vez ao significado que ele atribuía à arte na experiência educativa.

8. “As entrevistas revelam anseios, frustrações, descrenças, esperanças também, ímpeto de participação, como igualmente certos momentos altamente estéticos da linguagem do povo”. Educação como prática da liberdade, p 120.

9. “Janeiro em Angicos, é duro de se viver, porque janeiro é cabra danado para judiar de nós”/“Eu tenho a escola do mundo”/“O povo botou um parafuso na cabeça”. Educação como prática da liberdade, p. 120/121.

Antes da atividade pedagógica com as fichas de cultura, há um importante movimento: o levantamento do universo vocabular dos moradores do local de realização da campanha de alfabetização. São as entrevistas de que Paulo Freire fala no trecho número 8. Em Educação como prática da liberdade, Paulo Freire se refere de modo bastante encantado à linguagem do povo, captada durante essas entrevistas com os moradores, como “momentos altamente estéticos”. No trecho número 9 reproduzo três dos exemplos dados por Paulo Freire. Sua apreciação segue a mesma referência teórica que desenvolveu nos anos iniciais de seu exercício no magistério, quando buscava superar as gramatiquices, dando importância ao “momento estético da linguagem”. Parece haver até uma recorrência que extrapola sua abordagem inicial. Isso porque, aqui, há um reconhecimento da linguagem oral popular, o que vai além da aceitação de práticas gramaticais menos excessivas, porém letradas, como aquelas encontradas entre os jovens alunos da escola onde lecionava. A linguagem oral popular é, então, um ponto de partida legítimo para a educação popular, reconhecendo o que nela também existe de estético.

10. “[…] ao impregnarem o mundo de sua presença criadora através da transformação que realizam nele, na medida em que dele podem separar-se e, separando-se, podem com ele ficar, os homens, ao contrário do animal, não somente vivem, mas existem, e sua existência é histórica”. Pedagogia do oprimido, p. 103/104.

11. “Pensávamos numa alfabetização que fosse em si um ato de criação, capaz de desencadear outros atos criadores”. Educação como prática da liberdade, p. 112.

Em Pedagogia do oprimido, há um argumento ontológico que salienta a natureza humana e o que nela existe de original: “sua presença criadora”. A singularidade humana se verificada na história. Nós possuímos uma existência transformadora. A pedagogia do oprimido é isso: uma educação cujo princípio é desvelar a opressão, reconhecer-se como oprimido e atuar para sua transformação. Movimento solidário e coletivo, sempre. Em Educação como prática da liberdade, isso já aparece quando Paulo Freire circunscreve a alfabetização a um elo maior: “um ato de criação, capaz de desencadear outros atos criadores’. Alfabetizar-se para mudar o mundo.

Portanto, ainda que Paulo Freire não tenha sistematizado suas considerações sobre a natureza artística da educação, organizando suas ideias em uma ou mais publicações em que sua visão a respeito aparecesse de modo mais completo e singular, essas considerações fazem parte do seu pensamento sobre educação, podendo ser pesquisadas e discutidas. Talvez forneçam à educação contemporânea uma compreensão mais justa sobre o que deveria significar para tantos professores e professoras, alunos e alunas, todos já bastante descontentes com o atual sentido, vazio de um propósito existencial legítimo, a não ser esgotar a vida já na escola ou na universidade.

É tempo de Paulo Freire.

Referências:

FREIRE, Paulo. Cartas à Guiné-Bissau: registros de uma experiência em processo. 5ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.

FREIRE, Paulo; SHOR, Ira. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. 12ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. 51ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.

FREIRE, Paulo. “Gostaria de afastar, o mais possível, de mim, a morte”. In: Pedagogia da tolerância. São Paulo: Ed. UNESP, 2004. p. 295-304.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 44ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

FREIRE, Paulo. Política e Educação. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015.

1 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QjXtUWn6W0s&t=12s

2 Disponível em: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgN2_cuw2NkmB2lhiM0LTbpDPYy5LFzfb1ry3I1I1HkW4gq0zB2Ip8c8pEknyR9MLwBy9LwDQtUFcl6zPHBYYe27-vn7pkhTT0x1PhdRyFvqCOyJQXNC0hEMs7DTNVlSJXeI7Egex2Us6A/s1600/Captura+de+Tela+2013-05-28+a%CC%80s+17.35.21.png


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domingo, 13 de outubro de 2024

Viagem ao coração do capitalismo financeiro

Domingo, 13 de outubro de 2024

No núcleo de um sistema que criou múltiplas formas de extrair a riqueza coletiva, há dois grupos de corporações: as Big Techs e as gestoras de ativos. Como elas atuam em conjunto e por que isso é social e politicamente devastador?

Imagem: Michael Connoly/Reprodução
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Por Panos Tsoukalisem Sin Permiso | Tradução: Eleutério Prado1

O capitalismo mudou de tal forma que o rótulo “neoliberalismo” se tornou obsoleto. A crescente proeminência econômica e política das grandes empresas de tecnologia e de gestão de ativos transformou o capitalismo contemporâneo de várias maneiras. O mais importante é que ela trouxe a predominância da renda sobre o lucro, da apropriação sobre a produção. Isso afetou a lógica fundamental da compreensão econômico-política da realidade social em curso, pondo em questão assim a própria sobrevivência do capitalismo.

O neoliberalismo está aí desde a década de 1980. Desde então, o capitalismo passou por múltiplas crises e transformações. Mais recentemente, ele suportou uma crise financeira global e uma pandemia que paralisou as cadeias de suprimentos e o comércio, trancou as pessoas em suas casas e devolveu o Estado à vanguarda da política econômica.

Há muitas maneiras de entender o termo neoliberalismo. Utilizo o conceito principalmente para me referir a duas coisas: em primeiro lugar, para apontar para uma era na história do capitalismo, que começa com as eleições de Margaret Thatcher no Reino Unido e Ronald Reagan nos Estados Unidos; em segundo lugar, para fazer referência à predominância de um pacote de políticas econômicas que inclui a liberalização do comércio internacional, a privatização dos serviços públicos e a flexibilização dos mercados de trabalho. Uma característica fundamental do neoliberalismo é que ele alimentou um processo que muitos chamam de “financeirização”, ou seja, o crescente domínio do setor financeiro sobre o sistema econômico.

domingo, 25 de agosto de 2024

A triste (im)potência dos super-ricos

Domingo, 25 de agosto de 2024


Súbito e bruto, o iate invadiu as águas e investiu contra os golfinhos. Intuí o gozo do piloto; a compulsão por velocidade, ruído e ego. É preciso suprimir os muito ricos e seu vazio medonho, por um mundo de frugalidade privada e luxos públicos



OutrasPalavras.                         Além da Mercadoria

Publicado 19/08/2024 às 19:16 - Atualizado 19/08/2024 às 20:12



Por George Monbiot, no The Guardian | Tradução: Glauco Faria

Em uma manhã calma e bonita na costa do sul de Devon, na semana passada, eu estava observando um pequeno grupo de golfinhos do meu caiaque. Eu os havia avistado a 800 metros de distância, alimentando-se e brincando na superfície. Estavam vindo em minha direção; me sentei na água e esperei.

Mas, ao contornar o promontório, surgiu em velocidade máxima um gigantesco wankpanzer marítimo bimotor. Embora os golfinhos estivessem bem visíveis e houvesse muito tempo para parar ou evitá-los, ele avançou em direção a eles a toda velocidade. Ao passar, evitando-os por alguns metros, o piloto virou-se e olhou para eles, mas não controlou a velocidade. Os golfinhos mergulharam. Reapareceram brevemente, bem mais longe da costa, e depois disso não mais os vi. Pude ouvir o barco muito depois de ele ter desaparecido: parecia um avião a jato. Só Deus sabe o sofrimento que ele pode ter causado aos golfinhos, altamente sensíveis ao som.

Leia a íntegra do artigo

quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Ministério da Saúde na mira, mais uma vez

Quarta, 17 de janeiro de 2024

Foto: Metrópoles

A quem interessa fragilizar Nísia Trindade? Defesa irrestrita do SUS e controle de emendas parlamentares irrita fisiológicos e saúde privada. Movimento sanitarista frisa: ao povo, é essencial manter orientação técnica e progressista do MS

OUTRASAÚDE                                                                    SUS

Pela segunda vez desde a posse do atual Governo Federal, surgem como uma onda nas páginas da mídia comercial questionamentos à atual condução do Ministério da Saúde, com acusações que vão da lentidão no repasse de recursos à “falta de diálogo” com os parlamentares. Para bom entendedor, meia manchete basta: assim como em julho passado, interesses menos que democráticos querem defenestrar Nísia Trindade para ter mais controle sobre uma verba que pode chegar a R$231,3 bilhões em 2024.

Mas há novidades. Além dos atores de sempre, até um deputado federal petista, Washington Quaquá (PT-RJ), veio a público como um dos insatisfeitos, definindo Nísia, ex-presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) por cinco anos, de “inoperante e frágil”, que “não tem o tamanho que o governo Lula precisa”. Por sua vez, o Setorial de Saúde do PT do mesmo estado onde Quaquá se elegeu posiciona-se de maneira diametralmente oposta: “seguimos apoiando e confiando no trabalho do Ministério da Saúde em defesa da saúde pública e ressaltando a necessidade de uma gestão pautada na ciência, como vem realizando a ministra Nísia Trindade”, diz nota publicada no dia 14 de janeiro.

A avaliação não é exclusiva dos petistas fluminenses. Grupos como a Frente pela Vida (FpV) e entidades do movimento sanitarista nacional tem se pronunciado em favor da manutenção da atual condução do MS. Túlio Batista Franco, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e membro da operativa nacional da Frente pela Vida, e Getúlio Vargas Júnior, conselheiro do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e coordenador nacional do movimento Saúde pela Democracia, conversaram com Outra Saúde na última terça-feira (16/1) para compartilhar avaliações sobre a situação.

A busca de substituir a socióloga e ex-diretora da Fiocruz, eles apontam, responde em primeiro lugar a um interesse “nada repulicano” de controlar o robusto orçamento do Ministério da Saúde. E a defesa, pelos movimentos, da manutenção de Nísia não é o apego a um nome — mas a convicção na importância da continuidade de um trabalho na pasta da Saúde marcado pela retomada do rigor técnico e de uma orientação progressista.

Disputa por recursos

“Essa nova ofensiva tem uma motivação tornada bem explícita por uma matéria do jornal O Globo no dia 13 de janeiro: o fato de o Ministério da Saúde ter estabelecido critérios técnicos para o repasse de emendas parlamentares aos estados e municípios”, diz o coordenador da Frente pela Vida. Isso se deu por meio de uma portaria que determinou que o envio de recursos fosse conduzido por critérios definidos pela Comissão Intergestores Bipartite, onde dialoga-se com autoridades das esferas estadual e municipal.

domingo, 9 de julho de 2023

Megafundos financeiros: Abrimos a caixa-preta

Domingo, 9 de julho de 2023



Casas. Hospitais. Estradas. Redes hídricas. Fazendas eólicas. Infraestruturas indispensáveis à vida estão sendo capturadas por “gestoras de investimento” como a BlackRock. Quais são? Como surgiram? De que forma afetam as sociedades?

OUTRASPALAVRAS

Publicado em OUTRASPALAVRAS em 07/07/2023

Brett Christophers em entrevista a Derek Seidman, no Truthout | Tradução: Antonio Martins

A quem o mundo pertence? Nos últimos anos, um tipo de ator financeiro despontou como resposta a esta questão: as empresas de administração de ativos.

As “administradoras de ativos” supervisionam dezenas de trilhões de dólares em investimentos em ativos em todo o mundo. As empresas mais conhecidas são as “Três Grandes”: BlackRock, Vanguard e State Street Global Advisors. Seu modelo de negócios baseia-se em grande parte nos chamados fundos de índice “passivos”, cujos investimentos em ações tornam essas empresas os principais acionistas de milhares de corporações.


Mas as administradoras de ativos não possuem apenas instrumentos financeiros como ações e títulos da dívida de empresas e Estados. Elas são cada vez mais as proprietárias diretas dos ativos “reais ” que moldam nossos meios de subsistência. De casas a hospitais, redes de água a parques eólicos — as empresas de administração de ativos [asset management firms, em inglês] com nomes como Blackstone, Brookfield e Macquarie estão devorando as estruturas básicas das quais todos dependemos para existir. E com o objetivo de extrair grandes lucros da forma mais implacável e rápida possível, essa nova sociedade não é um bom presságio para a humanidade.

Este é o tema do novo livro de Brett Christophers, Our Lives in Their Portfolios: Why Asset Managers Own the World [“Nossas vidas em seus portfólios: Por que as administradoras de ativos governam o mundo”, em tradução aproximada], publicado pela Verso press. Christophers abre a cortina de um setor notoriamente opaco e o desmistifica, examinando clara e minuciosamente o que é, as forças que o impulsionam a extrair lucro impiedosamente e o que tudo isso significa para o nosso futuro coletivo.

Christophers é professor do departamento de Geografia Social e Econômica da Universidade de Uppsala, na Suécia. Ele é o autor ou coautor de cinco livros anteriores, incluindo Rentier Capitalism: Who Owns the Economy, and Who Pays for It?

Nesta entrevista exclusiva a Truthout, Christophers discute o que as administradoras de ativos fazem, como são programadas para ampliar agressivamente os lucros, como capturam cada vez mais “ativos reais” como habitação e infraestrutura de energia, e o que podemos fazer a respeito.

Embora as administradoras de ativos tenham muito poder em nossa sociedade, muitas pessoas não sabem o que são, como operam e por que são tão poderosos. Você pode nos propor um breve resumo?

Brett Christophers: Na realidade, é um negócio simples. Administradoras de ativos são empresas que investem em nome de terceiros. Eles captam dinheiro de investidores finais, — tanto indivíduos ricos quanto investidores institucionais, como planos de aposentadoria privados e seguradoras. As administradoras de ativos realizam seus investimentos e esses investidores pagam taxas por esse serviço.

Isso é basicamente o que as administradoras de ativos fazem: investem o dinheiro dos outros e ganham comissões por isso. Elas podem investir em muitas coisas diferentes, como ativos financeiros (ações, títulos, ou outros) – qualquer coisa, na verdade.

Elas deixaram de ser atores marginais na economia há algumas décadas, para serem muito significativas hoje. A forma tradicional de medir seu tamanho ou importância é a quantidade de capital que administram. Na década de 1970, era menos de um trilhão de dólares globalmente. Hoje, esse número é da ordem de US$ 100 trilhões — mais que o PIB de todo o planeta.

Ou seja: elas passaram de nada, essencialmente, a extremamente grandes, em um espaço de tempo relativamente curto.

Qual é o papel dos “fundos” no negócio de administração de ativos?

Se você é um administrador de ativos que reúne capital de clientes, precisa de um veículo que lhe permita amealhar estes recursos e investi-los. O fundo de investimento é o principal veículo utilizado para isso. Esses fundos vêm em diferentes formas e tamanhos — fundos de riqueza privada [private equity], fundos de índice, fundos mútuos — mas são todos criações da indústria de administração de ativos.

Quando você lê que, digamos, a BlackRock comprou este ou aquele ativo, é uma forma abreviada de dizer que um fundo de investimento administrado pela BlackRock comprou o ativo. Na verdade, isso significa que os verdadeiros proprietários do ativo não são os gestores de ativos, mas as diferentes entidades – e pode haver centenas delas — que destinaram dinheiro a esse fundo de investimento. A BlackRock pode colocar uma pequena quantia de seu próprio capital em seus fundos — normalmente, cerca de 2% — mas a maior parte do capital do fundo é de fundos privados de aposentadoria, seguradoras e indivíduos de alto patrimônio líquido.

O fundo está no cerne do setor porque é o veículo por meio do qual os administradores de ativos fazem o que fazem. É por isso que eles costumam ser chamados de “gerentes de fundos”.

Administradoras de ativos como a BlackRock e Vanguard recebem muita atenção. Têm participações acionárias significativas em milhares de empresas. Mas você quer colocar o foco em administradoras que controlam diretamente “ativos reais”, como residências, serviços públicos e hospitais. Por que achou importante fazer essa distinção em sua análise?

As administradoras de ativos convencionais investem principalmente em ações de empresas de capital aberto, como as da Apple e Google, e títulos de dívida emitidos por essas empresas e por governos. Normalmente, fazem isso por meio dos chamados “fundos de índice” que replicam o desempenho dos principais índices do mercado, como o S&P 500.

Há uma boa razão pela qual as administradoras de ativos convencionais estão no foco. É aí que ocorre a maior parte do investimento, em termos de números absolutos. Se você olhar o registro de acionistas de qualquer grande empresa listada nos Estados Unidos, verá os BlackRocks e os Vanguards.

Eu mudo o foco por alguns motivos. Por um lado, gestores de ativos convencionais como BlackRock e Vanguard já receberam muita atenção como proprietários de corporações capitalistas contemporâneas. Mas também argumento que seu significado é superestimado. Argumenta-se que, como essas empresas possuem 7% ou 8% de todas as grandes empresas, elas de alguma forma controlam a economia global. Não acho que tenham esse tipo de controle, nem mesmo que o desejem. Esse não é seu modelo de negócios.

Argumento que há toda uma outra área de gerenciamento de ativos, muito mais diretamente relevante para a vida cotidiana das pessoas: a propriedade e controle, pelos administradores de fundos, de “ativos reais” dos quais dependemos fundamentalmente — como habitação e infraestrutura: redes elétricas, sistemas de estacionamento em centros urbanos, estradas com pedágio, hospitais, escolas, terras agrícolas e assim por diante.

Na medida em que os gestores de ativos são proprietários de moradias e infraestruturas das quais dependemos, e que determinam quanto custa para nós morarmos naquela moradia e usarmos essa infraestrutura, eles também determinam as condições em que esses ativos existem e têm um enorme impacto sobre nossas vidas diárias. É algo que tem sido muito pouco abordado e debatido.

Às vezes, você usa palavras como “extrativo” e “colonizador” para descrever a relação entre os gestores de ativos e os ativos reais que eles controlam. Você pode elaborar?

Embora todos os proprietários privados tentem obter lucro, os administradores de ativos tendem a ser particularmente implacáveis e obstinados em ganhar com os ativos que supervisionam.

Há várias razões estruturais para isso. Uma delas são os altíssimos salários nessas empresas. Um artigo no Financial Times relatou que o salário médio na Blackstone agora é de cerca de US$ 2 milhões anuais. Não é possível pagar esse tipo de salário, a menos que você seja bastante implacável em extrair lucros dos ativos que possui. Você não pode ser um proprietário que oferece descontos no aluguel aos inquilinos e paga US$ 2 milhões para seus diretores.

Da mesma forma, os fundos de investimento administrados por gestores de ativos reais cobram taxas muito altas, em comparação com os fundos de índice. A norma do setor é cobrar dos investidores uma taxa de administração de 2% ao ano e uma taxa de desempenho de 20%. Isso só é possível quando se promete aos investidores retornos muito altos. E você só pode entregar esses altos retornos se for muito implacável e focado em extrair lucro. Como gerente de ativos, você é compelido pela natureza do seu negócio a ser implacável.

Outro fator importante são os horizontes de tempo de curto prazo envolvidos na gestão de ativos reais. Os gestores de ativos afirmam ser guardiões comprometidos e cuidadosos de habitação e infraestrutura. Mas, na realidade, seus investimentos em ativos reais são realizados principalmente por meio de fundos “fechados” que têm uma vida fixa — digamos, 10 anos. Isso significa que — e esta é uma das coisas mais importantes a entender sobre todo o setor de gestão de ativos — quando os gestores de ativos compram casas e infraestrutura, quase sempre os compram com a intenção de vendê-los dentro de sete ou oito anos — ou mesmo dois ou três anos, se puderem obter um grande lucro.

Em outras palavras, assim que um gestor de ativos investe em um ativo habitacional ou de infraestrutura, a primeira coisa em sua mente é: “Como podemos maximizar o preço de venda o mais rápido possível?” Se estamos falando sobre habitação, isso significa aumentar os aluguéis o mais rápido e o mais alto possível. Significa minimizar os custos operacionais relacionados a investir dinheiro e ser um bom proprietário, e aderir a soluções Band Aid para manutenção.

Você pode dizer mais sobre como a necessidade humana básica de habitação caiu sob o domínio dos gestores de ativos e as implicações disso?

No início da década de 1990, os gestores de ativos começaram a comprar significativamente nos mercados imobiliários globais, mas isso aumentou após a crise financeira de 2008. De repente, você tinha enormes estoques de “moradias problemáticas” por causa de execuções hipotecárias maciças, especialmente nos Estados Unidos. Muitas casas ficaram rapidamente disponíveis e muito baratas. Vergonhosamente, o governo dos Estados Unidos permitiu que grandes gestores de ativos comprassem grandes quantidades de imóveis em condições muito favoráveis.

Desde então, o investimento das administradoras de ativos em habitação cresceu cada vez mais. Não surpreende que os aluguéis subam tanto, nos Estados Unidos e internacionalmente. Não há casas suficientes sendo construídas em muitos lugares, os aluguéis estão subindo, e isso é algo em que os gestores de ativos querem investir. Os governos não impediram que as administradoras comprassem uma imensa quantidade de moradias. Na verdade, eles as encorajaram.

As implicações foram muito negativas. Por um lado, o rápido aumento dos aluguéis em moradias que ficaram sob o controle das administradoras de ativos. Por outro lado, resultados deletérios em outros aspectos da habitação além do aluguel, como despejos. Se você observar os índices de despejo em uma determinada região metropolitana e comparar as moradias alugadas pertencentes a administradoras de ativos com as habitações pertencentes a outros tipos de proprietários, verá que os índices de despejo tendem a ser substancialmente mais altas quando os proprietários são gestores de ativos.

Você aponta como os gerentes de ativos capturaram grande parte de nossa infraestrutura. E é provocativo ao dizer que “a transição dos combustíveis fósseis para os renováveis também representa uma transição para a sociedade de administração de ativos”. Você pode elaborar essa afirmação?

Uma coisa que quase nunca se fala em relação à transição energética é o que isso significa em termos de propriedade. A infraestrutura de energia baseada em combustíveis fósseis foi, em todo o mundo mais ou menos dividida entre o setor público e o setor privado. Empresas estatais são grandes proprietárias de reservas de combustíveis fósseis. Mas, no Ocidente, o Estado está ausente das instalações de energia limpa. É algo que ficou, em sua maior parte, nas mãos do setor privado.

domingo, 25 de junho de 2023

Por que é urgente descriminalizar o BNDES

Domingo, 25 de junho de 2023
Obra financiada pelo BNDES en Angola. Foto: BBC Brasil

Por que é urgente descriminalizar o BNDES

Empréstimos do banco a países do Sul Global foram criminalizados pela Lava Jato, mídia e políticos conservadores. Mas são essenciais para a diplomacia, comércio exterior e até a reconstrução da indústria nacional, por meio das exportações

OUTRASPALAVRAS

Por Dante Apolinario, Gabriel Horacio de Jesus Soprijo, Lívia Romano F. da Cruz, Lucas Santiago Portari, Luciana Henrique e Mariana Barboza Cerino, no Observatório da Política Externa e Inserção Internacional do Brasil (OPEB)
Introdução

Ao retornarmos ao processo da Operação Lava-Jato, o BNDES foi uma das instituições duramente acusadas de financiar projetos, fora do país, de companhias envolvidas em denúncias de corrupção. Em virtude disso, foi instaurada a CPI do BNDES em 2015, para investigar a participação do Banco em possíveis esquemas. Dada à luz dos fatos, como consta no próprio site da instituição, as acusações acabaram por revelar-se infundadas. Mas isso não impediu que um certo panorama de incerteza, em relação ao Banco em questão, se construísse.

Já no início do ano de 2023, Lula afirmou, no discurso de posse do novo presidente do BNDES, que o motivo da escolha pelo nome de Aloizio Mercadante era porque o país necessitava de alguém que pensasse em “desenvolvimento” e em “reindustrializar” o país. As oportunidades com uma possível exportação de bens e serviços produzidos no Brasil é a de que aumente a competitividade das empresas brasileiras, entradas de divisas e geração de empregos. Dessa forma, poderia ocorrer uma expansão do mercado brasileiro e o desenvolvimento de novas tecnologias.

Por um lado, alguns dos riscos de tal empreitada, como apontado por Nelson Marconi, da FGV, estão no fato de que esse investimento poderia ser destinado para o próprio país, não para fora. Por outro, o posicionamento de Mercadante no que tange a projeção brasileira não poderia ter sido mais claro. Em entrevista recente no programa Roda Viva, Mercadante enfatizou o lançamento de linhas de crédito para exportação. Isso porque, se não ocorresse uma ajuda por parte do Banco de Desenvolvimento, a indústria brasileira correria sério risco de colapso: “Nós somos 2% da economia mundial. Se as empresas brasileiras não exportarem, e disputarem o mercado internacional, elas não terão futuro, nem eficiência e competitividade. Temos que aumentar a produtividade para disputar, e o BNDES tem que ajudar financiando a exportação de empresas brasileiras.”

O posicionamento reflete o esforço necessário para “limpar a imagem”: segundo o atual presidente da República, o banco foi vítima de um intenso processo difamatório durante os quatro últimos anos. Cabe, portanto, uma análise mais precisa do histórico de atuação do BNDES.

Atuação BNDES

Ao analisarmos os dados fornecidos pelo próprio BNDES, — em seu Livro Verde — observamos que a mesma instituição foi estratégica no combate aos efeitos da Crise de 2008. Anteriormente a ela, entre 2001 e 2007, há um período de estabilidade, os estoques de crédito do BNDES em relação ao PIB giram em torno de uma taxa média de 5,7%. Já entre 2008 e 2010, a taxa sobe para 8,1%, e se mantém em ritmo de crescimento entre 2011 e 2014, chegando a uma nova média de 10,2%. Após 2014, há uma reversão e um processo de queda aos níveis pré-crise. Outros dados interessantes de serem observados, que também confirmam a tendência de queda do gráfico, é a participação do saldo das operações de financiamento do BNDES como proporção da carteira total de crédito da economia ao longo de pouco mais de duas décadas, desde meados de 2000 até 2021:

Uma das ações notáveis de atuação do BNDES, ocorreu ainda durante o primeiro governo Lula, em 2003, com a assim chamada Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior, que objetivava o aumento da eficiência econômica e o desenvolvimento de tecnologias com maior potencial de competição no comércio internacional por meio do financiamento do BNDES. Em 2007, os setores tiveram um ganho ainda mais expressivo de participação relativa nas liberações do BNDES, quando as políticas econômicas do governo estavam se adaptando para uma fase anticíclica, e criou-se o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que visava incentivar o investimento privado e aumentar o investimento público em infraestrutura. De qualquer modo, em 2011, é substituído pelo Plano Brasil Maior (PBM), com objetivos ligados a investimento, inovação, pequenas empresas e exportação, servindo de base para o futuro e o Plano Nacional de Exportações (2015 até 2018).

Além disso, desde 1991, o BNDES apoiou mais de US$ 96 bilhões em exportações para 45 países, gerando retorno líquido de US$ 4,2 bilhões ao Banco, que representou em média 9,8% do total dos desembolsos entre 2007 e 2017. Os desembolsos representam cerca de 48% do total do orçamento dos projetos e seus financiamentos movimentaram uma rede de 4.044 fornecedores no Brasil, sendo 2.785 micro, pequenas e médias empresas, quais permanecem mais tempo no mercado, demonstrando a efetividade da atuação do BNDES.

Em seu papel, o BNDES financia projetos no exterior que tenham exportações brasileiras de bens e serviços destinados a suas obras. Tem-se, por exemplo, o projeto Cuba, que apresentou benefícios como acesso a um mercado restrito, além de trazer a atuação de aproximadamente 400 empresas brasileiras. As exportações se diferenciam de investimentos no exterior; com os governos estrangeiros / empresas importadoras sendo os responsáveis pelo pagamento das exportações brasileiras, a entrada de divisas subsequentemente viabiliza melhores investimentos no setor produtivo nacional.

Casos mais antigos, como o metrô de Caracas, geram dúvidas na população brasileira, porém, retrata um caso de internacionalização – segundo Eduardo Suplicy, senador de São Paulo na época, “trata-se de um financiamento de US$ 194 milhões para uma construtura brasileira realizar exportações de serviços de engenharia, além de máquinas e equipamentos produzidos no Brasil”, em auxílio à obras que ocorrem no exterior.

Experiência Internacional

No cenário internacional, as grandes economias aproveitam as oportunidades de financiamentos a outros países como meio de estímulo de sua própria dinâmica interna. Ou seja, as operações internacionais do BNDES durante os governos Lula e Dilma seguiram uma prática bem comum no mundo. Seguem três exemplos, do Exim Bank dos EUA, do Banco de Desenvolvimento da China e o UK Export Finance.

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

A furiosa e disfarçada guerra pela Água no Brasil

Sexta, 17 de setembro de 2021


Milhares de municípios, abastecidos por empresas públicas, serão forçados a considerar propostas de privatização. Maiores mananciais do mundo são cobiçados por corporações como Coca-Cola e Nestlé. Congresso entrega – e mídia cala-se

OUTRASPALAVRAS



O país atravessa uma crise hídrica que afeta diretamente o nível dos reservatórios dos subsistemas elétricos. De acordo com o último boletim divulgado pelo Operador Nacional do Sistema (ONS), divulgado em 10/09/21, os reservatórios das Usinas Hidrelétricas do Sudeste e do Centro-Oeste estão operando com apenas 22,7% de sua capacidade de armazenamento. Esses reservatórios, que são responsáveis por cerca de 70% da geração hídrica do país, apresentam os níveis mais baixos dos últimos 91 anos. Os especialistas mencionam redução do nível dos reservatórios que pode chegar à 10%, o que seria muito grave, já que o sistema elétrico brasileiro nunca operou abaixo de 15%.

Devido à sua indiscutível essencialidade a água está sempre no centro da luta entre as classes na sociedade, aqui e no mundo todo. O fato do Brasil deter os maiores mananciais do mundo não nos livra de uma guerra pelo uso da água, ao contrário. Em junho do ano passado (24/6/20), o Senado Federal aprovou a lei 4.162/2019, que trata da privatização do setor de saneamento no Brasil. Segundo essa lei, a partir de março de 2022, todos os contratos de prestação de serviços de saneamento (o que inclui distribuição de água, coleta e tratamento de esgoto e resíduos) existentes entre os municípios brasileiros e as estatais de saneamento, em sua maioria, poderão ser revisados e reavaliados. Ao invés de continuarem a existir os contratos de programa, será obrigatório a realização de editais de licitação entre empresas públicas e privadas, o que poderá significar, a partir do ano que vem, a privatização da maioria dos serviços de saneamento no país.