Sexta, 6 de outubro de 2017
Feliciano Eugênio Neto é considerado pela CNV um dos 434 mortos ou desaparecidos em decorrência da repressão militar
Feliciano Eugênio Neto é considerado pela Comissão Nacional
da Verdade um dos 434 mortos ou desaparecidos em decorrência da
repressão promovida pelo Estado Brasileiro na ditadura (Foto: Tânia
Rêgo/Agência Brasil)
O Ministério Público Federal em São Paulo (MPF/SP) denunciou
dois ex-delegados do Departamento de Ordem Política e Social do Estado
de São Paulo (DEOPS/SP) pelo sequestro do metalúrgico Feliciano Eugenio
Neto, militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB). A prisão da
vítima, “para averiguação”, sem flagrante ou comunicação à Justiça,
ocorreu em 2 de outubro de 1975, e só foi formalizada (registrada em
documento) pelos delegados no dia 31 de outubro daquele ano.
Mesmo sem um mandado de prisão preventiva, ele foi recolhido ao
antigo presídio do Hipódromo, na Mooca, em 22 de dezembro de 1975. A
Justiça Militar decretou sua prisão em 15 de janeiro de 1976, três meses
e meio após o sequestro. Segundo depoimentos dos filhos da vítima e de
seu advogado, no período em que foi mantido preso ilegalmente pelas
autoridades da época, Neto teria sido torturado no DOI-Codi e no DOPS
(Delegacia de Ordem Política e Social) e teve um olho de vidro, que
deveria receber cuidados médicos constantes, danificado.
Neto é considerado pela Comissão Nacional da Verdade (CNV)
um dos 434 mortos ou desaparecidos em decorrência da repressão
promovida pelo Estado Brasileiro na ditadura. Ele morreu no Hospital das
Clínicas, em 29 de setembro de 1976, aos 56 anos, dias após ser
internado de urgência. Ele continuava preso, sob a custódia do Estado.
Na ficha hospitalar de Neto, remetida ao MPF pelo HC, consta que ele
residia na rua do Hipódromo, 600, endereço do presídio.
Denúncia - Um dos documentos trazidos à tona pelo
MPF na denúncia é o depoimento do advogado de Neto, Mário de Passos
Simas, autor do livro Gritos de Justiça, de 1986, em que relatou suas
experiências na defesa de presos políticos e o caso do metalúrgico. No
livro, ele conta que foi procurado por uma das filhas da vítima no dia
16 de outubro, 14 dias após a prisão.
Os filhos contaram ao advogado que os agentes do DOI-Codi ficaram de
guarda na casa de Neto, em São Caetano do Sul, na Grande São Paulo, após
a prisão da vítima, até que eles chegassem. Os dois filhos mais velhos
foram então presos e levados ao centro de tortura, onde viram as más
condições em que estava o pai.
Após quatro dias de petições e sem resposta da Justiça Militar, Simas
conta no livro e confirmou em depoimento que foi procurado por um
oficial de Justiça e informado que poderia encontrar o preso na 2ª Seção
do Exército, em São Paulo.
Narra no livro o advogado: “Escoltado por dois soldados, armados de
metralhadoras, entrou no recinto um homem baixo, magro, moreno,
aparentando 60 anos, rosto encovado e enrugado; puxava uma das pernas e
lacrimejava de uma vista. (…) Queríamos saber, sim, se ele havia sido
torturado e em que circunstâncias tinha sido preso. Absorto diante da
colocação que fizéramos, ele se pôs a chorar. Demos por finda a
entrevista”.
Em depoimento ao MPF, Simas confirmou o relato do livro. Ele
acredita, inclusive, que sua reunião com o preso no Exército foi
gravada. Somente alguns dias após essa visita, o delegado Alcides
Singillo documentou a prisão de Neto, quando ele foi encaminhado ao
Deops, em 31 de outubro. Detalhe, na noite de 25 para 26 de outubro, o
metalúrgico foi interrogado no DOI-Codi, pela equipe de Singillo.
Apesar da materialização documental da prisão, nem Singillo, nem
Seta, autor do indiciamento da vítima, e de outros documentos listados
pelo MPF na denúncia, comunicaram a prisão à Justiça Militar, que
julgava os presos inimigos do regime. Mesmo pelas leis ditatoriais toda
prisão deveria ser comunicada ao juiz-auditor, e a incomunicabilidade
(prevista na lei da época) era de 10 dias. A comunicação ao juiz-auditor
pelas autoridades policiais só aconteceu em 4 de dezembro de 1975, três
meses após a prisão, quando foi pedida a prisão preventiva de Neto.
Morte - Em julho de 1976, Neto foi sentenciado a
dois anos de prisão pelo seu “crime”, distribuir o jornal A Voz
Operária, do PCB, no interior do Estado de São Paulo. Simas acredita
que, em virtude da primariedade do réu, ele seria solto em outubro.
Contudo, dois meses depois, em 23 de setembro, ele deu entrada às
pressas no Hospital das Clínicas. Morreu 6 dias depois, na mesa de
cirurgia. A causa mortis era “indeterminada”, segundo o atestado de
óbito assinado pela médica Maria Alice Correia.
Responsável pelo caso, a procuradora da República Ana Letícia Absy
tentou apurar a real causa da morte, o que poderia implicar em acusações
formais de tortura e homicídio, mas a médica não foi identificada pelo
Cremesp. Além disso, como a morte foi no hospital, não houve necropsia e
não há fotos do cadáver, documentos e registros que poderiam permitir
um exame de corpo de delito indireto.
Para o MPF, Singillo e Seta atuaram previamente ajustados junto com
outros agentes do Estado não identificados completamente para sequestrar
e manter preso Feliciano Neto “sem ordem legal ou devida comunicação a
autoridade judiciária, pelo menos de 2 a 31 de outubro de 1975,
mantendo-o sem comunicação com a família até dezembro do mesmo ano,
nesta cidade e subseção judiciária, e sem decreto de prisão preventiva
até 15 de janeiro de 1976”.
Omissão e pleno conhecimento - Singilo e Setta,
afirma a denúncia do MPF, são responsáveis pelo sequestro ao se omitirem
no dever de comunicar uma prisão de que tinham conhecimento e que
ocorreu também na delegacia onde trabalhavam. Para a procuradora, “os
denunciados tinham pleno conhecimento do sequestro em curso e,
deliberadamente, deixaram de informá-lo à autoridade competente e tomar
as demais providências cabíveis, evidenciando a participação de ambos na
ocultação da vítima, por meio das declarações das testemunhas que
tentavam contato com o preso e não conseguiam”, o que foi testemunhado
tanto pelo advogado, como pelos filhos, que só viram o pai após sua
transferência para o presídio.
O crime de sequestro não prescreveu, conforme o MPF explica
detalhadamente na cota da denúncia, pois tratados internacionais
assinados pelo país e a sentença da Corte Interamericana de Direitos
Humanos contra o Brasil no caso Araguaia determinam que são crimes
contra a humanidade aqueles cometidos pelo Estado contra seus cidadãos
de forma sistemática e generalizada.
O MPF requer que a denúncia seja recebida e Singillo (já denunciado
pelo MPF/SP em outras quatro oportunidades) e Seta sejam condenados pelo
crime de sequestro, com os agravantes de que o crime foi cometido com
abuso de poder e de autoridade e violação de dever inerente ao cargo,
consistente na manutenção da vítima presa em prédio público federal. Se
condenados, o MPF requer a cassação de suas aposentadorias e outros
proventos que eventualmente recebam e a destituição de suas medalhas e
condecorações. A pena base do crime de sequestro na modalidade
denunciada pelo MPF, é de 2 a 5 anos de prisão.
A denúncia foi distribuída à 5ª Vara Criminal Federal de São Paulo, sob o número
A denúncia foi distribuída à 5ª Vara Criminal Federal de São Paulo, sob o número
0013526-03.2017.403.6181
Consulte a tramitação na Justiça Federal.
Consulte a tramitação na Justiça Federal.
*Foto de Feliciano Eugenio Neto, reproduzida do site da Comissão Nacional da Verdade