Domingo, 29 de outubro de 2017
Da Abrasco
Associação Brasileira de Saúde Coletiva
A Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco – 
 vem a público manifestar seu repúdio ao programa “Alimentos para 
todos”, lançado pela prefeitura de São Paulo em 08 de outubro deste ano1.
 O referido programa teve origem no Projeto de Lei N. 550/2016, do 
vereador Gilberto Natalini, que institui a Política Municipal de 
Erradicação da Fome e de Promoção da Função Social dos Alimentos, 
estabelecida pela Lei N. 16.704/2017. Conforme anunciado, caberá a uma 
dada empresa transformar produtos alimentícios próximos à data de 
vencimento, ou fora do padrão de comercialização, em um produto 
granulado (cuja composição ainda não foi divulgada). As notícias 
veiculadas até o momento indicam algumas alternativas de distribuição 
como, nas refeições de albergues e nas cestas básicas distribuídas pelos
 Centros de Referência de Assistência Social (CRAS). Em 18 de outubro, o
 prefeito anunciou a intenção de também distribuir o produto na 
alimentação escolar2, embora tenha recuado após manifestação do Ministério Público Estadual.
Com os objetivos anunciados de “combater o desperdício” e atender 
“famílias que enfrentam carências nutricionais no município”, essa 
iniciativa viola o direito humano à alimentação adequada, contraria os 
marcos legais e as políticas públicas de Segurança Alimentar e 
Nutricional, além de desconsiderar os preceitos do Guia Alimentar para a
 População Brasileira. A diminuição do desperdício e a superação da fome
 e da vulnerabilidade alimentar pressupõem a manutenção do investimento 
em políticas públicas estruturantes e que incluam as ações previstas no 
Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional 2016-2019. No caso 
da cidade de São Paulo há, inclusive, um Plano Municipal de SAN aprovado
 e publicado em 20163.
O anúncio do programa “Alimentos para todos” provocou veementes 
manifestações contrárias, de entidades que atuam na defesa dos direitos 
relacionados à alimentação e nutrição, às quais a Abrasco se soma.
Direito Humano à Alimentação Adequada e Saudável
A proposta contraria os princípios do Direito Humano à Alimentação 
Adequada formalizados na Lei Orgânica de Segurança Alimentar e 
Nutricional (a LOSAN – Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006). A 
LOSAN estabelece que todas e todos devem estar livres da fome, por meio 
de uma alimentação adequada, saudável, que respeite a dignidade, os 
valores humanos e culturais e que não esteja sujeita aos interesses de 
mercado. Para tal, o Estado é portador de obrigações que visam a 
garantir esse direito, por meio de ações e recursos públicos.
Os princípios e direitos já consagrados na legislação nacional, fruto
 de décadas de mobilização da sociedade civil brasileira, pela 
consolidação de políticas públicas que garantam o Direito Humano à 
Alimentação Adequada e Saudável (DHAAS), indicam o quanto a iniciativa 
da prefeitura de São Paulo representa, além de retrocesso nas conquistas
 históricas alcançadas, uma incoerência em seus próprios termos. O nome 
do programa em si, “Alimentos para todos”, abriga um contrassenso, seja 
porque o que se pretende distribuir, não é alimento – é um produto – 
seja porque não é para todos! Tal produto é destinado a um segmento da 
população que vive em situação de vulnerabilidade. Essa estratificação, 
da forma como anunciada, parece justificar o referido programa, sob o 
pretexto de atender a uma necessidade social.
No entanto, a perspectiva de que tal programa integra uma Política, 
associando a Erradicação da Fome e a Promoção da Função Social do 
Alimento, reforça a incoerência dessa proposta. Isso porque oculta os 
processos de injustiça social geradores de fome, que são associados à 
concentração de riquezas e à lógica perversa da produção de alimentos, 
tornados mercadorias. A natureza desse programa expressa as contradições
 sociais e de um sistema alimentar excludente, que divide a população 
entre os que podem se alimentar adequada e saudavelmente e os 
desprovidos dessa condição, em um país cuja produção de alimentos é 
suficiente para todos os seus habitantes.
Em momento algum se considera, na proposta em questão, que a solução 
para esse quadro implica enfrentar os determinantes da fome e de 
carências nutricionais, decorrentes da dinâmica excludente de produção. 
Isso posto, pergunta-se: como é possível resolver agravos nutricionais 
que, supostamente, motivaram a formulação dessa proposta, tendo como 
base uma política centrada em práticas mercantis, uma política centrada 
em práticas mercantis travestida de uma roupagem de política promotora 
da Função Social do Alimento?
Novamente, como ocorreu em outras conjunturas históricas, programas 
deste tipo trazem à tona profundas contradições da sociedade brasileira,
 evidenciando perversos mecanismos de discriminação e exclusão social, 
sob a vestimenta de política social. Antes de se tratar de uma 
iniciativa voltada à “alimentação para todos”, tal programa carrega 
forte componente de estigma e preconceito, ao partir do princípio de que
 aos pobres cabe se alimentar de produtos, espécie de ração, 
absolutamente estranhos à cultura alimentar da população brasileira. 
Nesse sentido, o programa afronta a dignidade humana.
Por outro lado, é necessário conclamar os direitos universais 
institucionalizados na Constituição Brasileira, na LOSAN, na Política 
Nacional de Alimentação e Nutrição e na Política Nacional de Segurança 
Alimentar e Nutricional. Os princípios que regem esses direitos são 
antagônicos à lógica intrínseca ao programa “Alimentos para todos”.
Um olhar para nossas políticas indica que o Brasil já reconheceu, 
institucionalizou e consagrou o direito humano à alimentação, garantido 
por políticas pautadas nos princípios da universalidade e da equidade. 
Segundo o aparato legislativo nacional, a começar pela Carta Magna, 
todas as pessoas, independentemente de etnia, condição social, gênero ou
 qualquer outro atributo, têm o direito de suprir suas necessidades 
básicas relacionadas à alimentação, com dignidade e respeito, ou seja, 
têm o direito de se alimentar da forma adequada e saudável. Nos próprios
 termos das Políticas Nacionais, isso significa uma alimentação baseada 
em alimentos in natura ou minimamente processados e não em produtos 
alimentícios processados; pautada em modelos agroecológicos de produção e
 em métodos tradicionais de manejo e gestão ambiental; uma alimentação 
que respeita as dimensões de cultura, prazer, hábitos, comensalidade, 
regionalidade, além do acesso, da sustentabilidade e da biodiversidade.
A garantia do direito à alimentação pressupõe o acesso permanente e 
regular, de forma socialmente justa, a práticas alimentares adequadas 
aos aspectos biológicos e socioculturais dos indivíduos, de acordo com o
 ciclo de vida e as necessidades alimentares especiais, pautadas no 
referencial tradicional local. A oferta de alimentação, por meio de um 
produto alimentar processado, utilizando alimentos em vias de perda de 
validade de consumo e/ou fora de padrões de comercialização, fere 
praticamente todos os princípios já consagrados e institucionalizados na
 legislação e nas políticas nacionais.
Essa proposta, igualmente, menospreza a identidade cultural da 
alimentação. Pessoas reconhecem como comida um conjunto de alimentos que
 possuem significado, sentido, história, memória, valores e símbolos 
relacionados a um grupo social. A subjetividade dos grupos e indivíduos 
se estabelece a partir da cultura e a comida é uma dimensão fundante da 
cultura humana. Em outros termos, não comemos o que não reconhecemos 
como comestível. Sendo assim, apostar na elaboração de um formulado 
deste tipo é romper com um conjunto de signos e sentidos que permite a 
seleção de alimentos, a identidade e a subjetividade humanas.
Desperdício de alimentos
Um dos objetivos do Programa é a redução do desperdício. Ainda que 
esse problema deva ser enfrentado, a estratégia para isso não pode 
contrariar direitos constitucionais e políticas de Segurança Alimentar e
 Nutricional instituídos no País.
Perdas e desperdícios, realmente, são um problema grave no Brasil e 
no mundo, a ponto de serem considerados elementos intrínsecos ao próprio
 sistema alimentar. Dessa maneira, a forma de enfrentá-los deve ser 
robusta e dirigida às diferentes etapas em que ocorrem as perdas. São 
necessárias ações desde a etapa de produção, transporte, armazenamento e
 de consumo, tanto familiar como industrial e nos serviços. Pensando na 
etapa do consumo, no setor de serviços (restaurantes e similares), há 
inúmeras possibilidades de reduzir desperdício com o planejamento de 
cardápios, seja pelo aproveitamento integral dos alimentos, seja pelo 
preparo de porções mais compatíveis com o consumo, entre outros. Vale 
destacar a necessidade de fortalecimento e ampliação de Bancos de 
Alimentos, equipamentos públicos ou de organizações da sociedade civil 
que recebem alimentos excedentes de comercialização e produção e os 
entregam a organizações que atendem diferentes públicos em situação de 
vulnerabilidade.
Temos uma Rede Nacional de Bancos de Alimentos5, que tem como objetivos contribuir para a redução de insegurança alimentar de pessoas em situação de vulnerabilidade, pelo aumento de disponibilidade de alimentos saudáveis, e reduzir o desperdício de alimentos. Outro programa público que pode contribuir com esta redução, respeitando os preceitos da Alimentação Adequada e Saudável e do DHAAS, são os Restaurantes Populares, distribuídos por todas as regiões do Brasil.
Políticas estruturantes
O programa “Alimentos para todos” é uma estratégia equivocada de 
combate à fome e à vulnerabilidade alimentar, pois desconsidera as 
causas que as determinam socialmente e recorre a artifícios capazes de 
agravar o problema. O mesmo expressa os retrocessos que temos enfrentado
 na garantia de direitos historicamente estabelecidos, que foram 
conquistados em decorrência de intensa mobilização da sociedade civil 
brasileira. Programas desse tipo foram rechaçados pela sociedade civil, 
já na década de 1980, e agora ressurgem em um contexto de fragilização 
das políticas públicas universais que vinham contribuindo para enfrentar
 as desigualdades sociais, a fome e as injustiças que marcam, de forma 
perversa, a história brasileira.
Escolhas como a que está sendo fomentada pelo programa “Alimentos para todos”, proposto pela gestão municipal de uma das cidades que mais produz riquezas no contexto nacional, indicam as vias distintas que são cogitadas para enfrentar os problemas reincidentes no País. As pretensas “soluções” em disputa podem consolidar práticas que, se forem socialmente aceitas, desumanizarão a todos.
A diminuição do desperdício e a superação da fome e da 
vulnerabilidade alimentar pressupõem o investimento em políticas 
públicas estruturantes, como as de acesso à terra e ao território, de 
agroecologia e agricultura familiar, de agricultura urbana, de 
abastecimento, de trabalho digno e de valorização do poder aquisitivo do
 salário mínimo, entre outras. Tais iniciativas incluem as previstas no 
Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional 2016-20196.
Pelos motivos expostos, a Abrasco repudia o programa
 “Alimentos para Todos” e reitera seu compromisso com a defesa das 
políticas públicas construídas no marco do Sistema Nacional de Segurança
 Alimentar e Nutricional que, em articulação com a sociedade organizada,
 lograram a saída do Brasil do mapa da fome em 2014.
Rio de Janeiro, 23 de outubro de 2017
Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco 
Referências:

 
 
 
