Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Um cidadão, um número

Sexta, 31 de dezembro de 2010 
Por Ivan de Carvalho
A partir do ano que começa amanhã a tradicional cédula de identidade, também conhecida como RG, começará a ser substituída por outro documento, o Registro de Identidade Civil, que vai ser mais conhecido como RIC, e que foi lançado ontem em Brasília pelo presidente Lula e seu atual ministro da Justiça, Luiz Paulo Barreto. Em 2011, dois milhões de brasileiros de sete Estados já poderão trocar o antigo documento pelo novo.

    Trata-se de um avanço tecnológico na identificação do cidadão. A nova identidade é um cartão magnético com impressão digital e chip eletrônico. Dele constarão nome, sexo, data de nascimento, foto, filiação, naturalidade, assinatura, impressão digital do indicador (não mais do polegar) direito, órgão emissor, local e data da expedição e de validade. Abstraída a tecnologia, até aí tudo é muito parecido com a atual cédula de identidade. O CPF, que nesta é opcional, não deve ser incluído no cartão magnético ontem lançado. Cada cidadão passa a ser reconhecido nacionalmente por um único número, vinculado diretamente às suas impressões digitais e registrado no chip.

    O ministro da Justiça parece bem entusiasmado.  “O novo RIC é mais moderno, traz tecnologia de ponta, é mais seguro e mais prático. No futuro, esse documento também integrará o CPF, o título de eleitor e muitos outros documentos. Além disso, há possibilidade de fazer transições bancárias com o novo cartão."

     Está bem claro. Começou ontem o processo, previsto para se completar em dez anos, de implantação do documento único de identificação com chip no Brasil e ele abre a oportunidade de vir a ser instrumento para efetuar também transações bancárias. Se o ministro da Justiça faz o elogio da iniciativa que tomou junto com o presidente Lula, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral e ministro do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowsky, também é todo elogios.

    “É à prova de fraudes e evita que uma mesma pessoa seja identificada por mais de um número de registro em diferentes estados da Federação ou que o cidadão seja confundido com uma pessoa de mesmo nome”, disse, acrescentando: “Essas vantagens são de extrema relevância e poderão contribuir para mitigar os graves prejuízos para o Estado e para os cofres públicos, pois evita crimes”.

    Esse documento único de identificação tem a capacidade de ser a um tempo a chave e o cadeado. Ao lado das vantagens tão proclamadas e que realmente apresenta, aumenta imensamente o perigo da implantação de um sistema cuja figura central é o que chamei, em artigo recente, de “o homem chipado”, isto é, monitorado, fiscalizado e controlado pelo Estado por meio de um chip.

    Os norte-americanos, apesar do temor do terrorismo desde o atentado contra as torres Gêmeas e o Pentágono, não admitem esse documento único por entenderem que ele é uma ameaça à liberdade e à privacidade do indivíduo. Claro que eles poderão, em grande maioria, ser convencidos a admiti-lo, se uma catástrofe muito maior vier a acontecer. Mas, por enquanto, não admitem assumir o ônus.

    Enquanto isso, no Brasil, o documento único de identidade nos é simplesmente imposto, sem consultas e debates, sem aprovação do Congresso, praticamente de surpresa – embora alguns ensaios viessem sendo feitos, como a decisão do Contran que impõe chips de rastreamento nos veículos. E o torpedo é vendido como vantajoso, moderno, seguro, à prova de fraudes. Se um dia um regime ditatorial dominar o país (já aconteceu antes mais de uma vez) o RIC será extremamente útil aos ditadores.
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Este artigo foi publicado originalmente na Tribuna da Bahia desta sexta.
Ivan de Carvalho é jornalista baiano.