"No futuro, uma criança, brincando na areia da estrada, encontrará o cravo, que à Revolução foi ceifado. Ao romper de uma aurora, em vigor, plantá-lo-á de novo,
para que a fé não se apague. E crente nas razões do povo, na sua justiça, na sua dor, estará a plantar, sem o saber, a mais doce força da Saudade, e o mais intenso poema de Amor".
Helena de Sousa Freitas
Por Bernardo Corrêa
Pelas
labirínticas ruas de Lisboa o novo se fez presente. Milhares de
Portugueses aderiram à Greve Geral, parando os principais serviços
públicos e importantes empresas privadas do país (ainda que a
precarização do trabalho semeie um clima de insegurança frente ao
fantasma do desemprego). Com grande força dos transportes públicos, dos
estivadores, atores e trabalhadores do Teatro Municipal, músicos,
enfermeiros, professores... Uma das maiores Greves da história de
Portugal deu um recado claro: Fora a Troika, o FMI e o governo de Passos
Coelho que implementa a austeridade no país.
A crise econômica tem castigado o povo português. O país que abriu
caminho à construção de um Estado Social com ampla rede de proteção ao
trabalho, através de uma Revolução Democrática em Abril de 1974 que
derrotou o fascismo de Salazar. Este legado da Revolução dos Cravos é
muito vivo na consciência dos portugueses e o empobrecimento do povo é
visível ao andar pelas ruas da cidade. Uma reportagem da RTP (Rádio e
Televisão de Portugal) ilustrava o quadro da dor: as padarias que
entregam seus diversos e deliciosos pães à primeira hora da manhã aos
estabelecimentos comerciais, cafés, etc. deixando as sacolas penduradas
nas portas, passavam a ter problemas com roubo destes pães, algo
impensável antes da crise e bastante constrangedor à dignidade valente
do povo português. Os próprios donos dos estabelecimentos diziam não
condenar os que pegavam os pães, "pois quem rouba pães, tem fome".
As movimentações em Portugal já começaram no sábado com uma "manif"
(como chamam os portugueses as manifestações) de milhares de militares
contra a retirada de seus direitos. Na bela tradição democrática das
forças armadas herdadas da Revolução dos Cravos, declararam que fariam
de tudo para não reprimir as mobilizações dos cidadãos. No final da
manifestação, intervieram os três presidentes das associações de
militares, tendo Luís Reis, presidente da Associação de Praças,
criticado as opções governamentais e as recentes declarações do Ministro
de Defesa Nacional, Aguiar Branco: "O senhor ministro disse que os
militares que estivessem descontentes podiam sair. Disse mesmo que
nenhum homem deverá servir nas Forças Armadas se não sentir vocação para
tal. Oh! senhor ministro, o senhor tem a certeza que quer falar de
vocação? É que se quer, provavelmente amanhã, Portugal e os Portugueses
não têm governo".
Na segunda feira, dia 12 de novembro com a visita da toda-poderosa da
Troika premier alemã, Ângela Merkel. Tão grande quanto o compromisso
que tal figura repugnante tem com o mercado financeiro, é o desrespeito
aos trabalhadores da Europa. Em declaração anterior à visita afirmava
que os portugueses estavam contrários à austeridade, pois "trabalhavam
pouco", o que evidentemente causou um sentimento, no mínimo, hostil à
sua visita entre a população. Um imenso aparato militar que transformou o
trânsito de Lisboa em um verdadeiro caos, garantiu que sua conversa com
empresários e com o primeiro-ministro Passos Coelho ficasse longe da
ira popular.
Na madrugada de terça-feira, dia anterior à Greve Geral, os piquetes
da CGTP (Central Geral dos Trabalhadores de Portugal) já anunciavam uma
das maiores greves já realizadas em Portugal. Em todas as regiões do
país registrou-se grandes índices de paralização: Braga, Funchal,
Santarém, Faro, Angra do Heroísmo, Beja, Portalegre, Ponta Delgada,
Lisboa, Évora. Mais de 30 sindicatos ligados à UGT (União Geral dos
Trabalhadores) que não chamou à Greve aderiram às "manifs" e cruzaram os
braços contra a austeridade, como no caso do Sindicato dos Bancários
que paralisou 100% das atividades, deixando o presidente da Central,
João de Deus Pires, em "maus lençóis".
A União Europeia apresenta uma taxa de NEETs (termo usado para
designar os jovens que não estão nem trabalhando, nem estudando, nem a
receber formação) de 15,4% entre a população de 15 e 29 anos. Ou seja,
14 milhões de jovens. A situação mais grave é a que se verifica na
Bulgária (24,6%), Grécia (23,2%), Itália (22,7%), Irlanda (22%) e
Espanha (21,1%). Esses índices representam, aproximadamente, um em cada
cinco jovens fora do mercado de trabalho e do sistema de ensino. Em
Portugal, esta taxa é de 14%.
A política do memorando da Troika que elevou o índice de desemprego a
15,8%, deliberadamente produzem o desemprego para que os salários
baixem, os direitos diminuam e o Estado Social, conquistado pelas
históricas lutas do povo, seja efetivamente desmontado entregando à
iniciativa privada grande parte dos serviços públicos. No entanto, os
povos não se rendem e a demonstração da Greve Geral de 14 de Novembro
marca um acontecimento realmente histórico. O mapa da austeridade cada
vez mais é também o mapa da resistência. É a demonstração de que os
povos estão dispostos a cruzar os braços frente aos banqueiros e patrões
e, ao mesmo tempo, estendê-los aos trabalhadores de outros países
buscando uma saída internacional e solidária frente à crise que os
capitalistas produziram e, portanto, devem pagar por ela.
Comício Internacional e Convenção Nacional do Bloco de Esquerda português
Frente a tal situação, a esquerda européia discute as alternativas à
crise e as medidas necessárias à recuperação dos direitos que
paulatinamente têm sido perdidos com a austeridade. Na sexta-feira, dia 9
de novembro, o Comício Internacional "Vencer a Troika" contou com
representações de diversos partidos da esquerda européia.
Gabrille Zimmer dirigente e europarlamentar do Die Linke em seu
discurso, alertava para o fato de que a União Europeia (EU) "evolui cada
vez mais para um projeto de domínio neoliberal, aumentando as divisões
sociais, aprofundando os desequilíbrios econômicos e de acentuando o
caráter autoritário da UE". O discurso de Jean-Luc Mélenchon foi lido
por Céline Menezes secretária da Front de Gauche em função de uma
enfermidade que abateu o presidenciável francês "Frente à internacional
da austeridade e da finança, existe a internacional da solidariedade e
da partilha. Somos a ferramenta dessa internacional. Não somos meramente
um sonho. Somos o começo da realização deste mesmo sonho" foi seu
recado mais marcante. Também mandou um vídeo de saudação o dirigente da
SYRIZA e parlamentar grego Aléxis Tsipras. Após a grande votação
depositada pelo povo grego naquela coalizão, Aléxis tornou-se um
referencial da esquerda radical que se postula contra o memorando da
Troika, "Eles têm como objetivo o empobrecimento dos nossos países. E
nunca param. Não há fim para esta decadência, a não ser quando o que
povo imponha uma solução, com a sua luta e o seu voto", afirmou Tsipras,
sendo ovacionado pelos mais de 500 delegados à convenção do Bloco de
Esquerda presentes no Comício. A fala de Cayo Lara da Izquierda Unida
espanhola marcou um importante conceito frente à política de austeridade
"Que tempos estes, em que defender a democracia se transformou num
gesto absolutamente revolucionário!"
Coube a Francisco Louçã, fundador e dirigente mais importante do
Bloco de Esquerda encerrar o Comício, afirmando que "existe uma esquerda
na Europa" que se constrói por fora dos tradicionais partidos
sociais-democratas, que aderiram ao memorando. Referindo-se à reunião de
Merkel com Passos Coelho no forte de S. Julião da Barra ironizou:
"Reparem que o forte foi construído para defender Lisboa dos piratas que
entrassem no Tejo, quem iria pensar que um dia os piratas estariam
dentro do forte! O bom, no entanto, é que enquanto se reúnem no forte, o
povo se manifesta em liberdade nas ruas".
A Convenção Nacional do BE, durante o sábado e domingo discutiu
centralmente o perfil e o arco de alianças que o Bloco se apresentará
nas próximas eleições municipais. A grande maioria dos delegados
presentes (que se dividiam entre as posições defendidas pelas moções A e
B) rejeitou a proposta de alianças com o Partido Socialista (PS)
português defendida pela moção B, visto que este tem apoiado o memorando
da Troika e as medidas de austeridade, ainda que com alguma
diferenciação. Francisco Louçã, coordenador do Bloco de Esquerda desde
sua fundação há 13 anos, abandonou o cargo e passa a ser parte da Mesa
Nacional dando lugar a João Semedo e Catarina Martins que terão a
importante tarefa de construir a vitória de um Governo de Esquerda em
Portugal que rompa com o memorando, faça uma auditoria da dívida e sua
renegociação, imponha a taxação sobre os capitais, o controle público do
sistema financeiro, assim como a recuperação dos direitos perdidos com a
austeridade. Ao final da Convenção fomos saudados os convidados
internacionais que vinham de diversos lugares da Europa e inclusive a
nós do PSOL, representados além de mim por Ivan Valente, Afrânio Boppré e
Juliano Medeiros. Os ventos das lutas européias certamente temperam
nossa convicção de luta pelo socialismo no Brasil e no mundo.
Bernardo Corrêa é sociólogo da Fundação Lauro
Campos e membro da Executiva Estadual do PSOL-RS. Esteve em Portugal de 9
a 15 de novembro acompanhando a Convenção Nacional do Bloco de Esquerda
e a Greve Geral na Europa.
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