Do Blog Náufrago da Utopia
Por Celso Lungaretti
"Não guardo mágoa,
não blasfemo, não pondero
Não tolero lero lero,
devo nada pra ninguém"
(Cacaso)
Tem
gente demais escrevendo sobre o relatório final da Comissão Nacional da
Verdade, que será tema obrigatório ao longo desta semana e,
provavelmente, notinha de rodapé na próxima.
Então, evitando entediar os leitores, vou separar o joio do trigo, o que
realmente importa do supérfluo, do rancoroso e do oba oba palaciano.
Em 1979, as altas autoridades da ditadura negociaram com a oposição
consentida uma anistia recíproca, que não passou da imposição da vontade
dos vencedores sobre os vencidos: o preço da libertação de presos
políticos e da permissão para que exilados voltassem a salvo de
represálias foi o perdão eterno dos agentes crapulosos do Estado e seus
mandantes.
A barganha espúria teve a conseqüência de manter o passado insepulto; há
três décadas e meia seus fantasmas teimam em assombrar a Nação
brasileira.
A ONU, a OEA e o Direito internacional acertadamente consideram
aberrantes e ilegais esses simulacros de anistias emanados de ditaduras,
pois a desigualdade de forças determina invariavelmente o resultado .
Canso de indagar: se Adolf Hitler houvesse montado farsa semelhante
quando os aliados desembarcaram na Normandia, os altos dirigentes
nazistas seriam poupados do julgamento de Nuremberg?
Então, cabia ao Estado brasileiro, como uma das primeiras medidas da
redemocratização, revogar a Lei de Anistia imposta --um mero habeas
corpus preventivo de que os torturadores e seus mandantes se muniram-- e
substitui-la por outra, compatível com um Estado de direito.
O governo de José Sarney (logo quem!) não fez a lição de casa, assim como não a fizeram todos os presidentes da República depois dele.
Em 2008, o lançamento do livro Direito à Memória e à Verdade
e a insubmissão de alguns comandantes militares que peitaram o governo,
acendeu a polêmica no seio do Ministério de Luiz Inácio Lula da Silva.
Os ministros Tarso Genro e Paulo Vannuchi defendiam a revisão da anistia
de 1979, mas perderam a parada para a corrente do imobilismo, da
omissão e da covardia, liderada pelo ministro da Defesa Nelson Jobim.
Lula instruiu os ministros enaltecerem os resistentes, mas não tomarem
nenhuma iniciativa concreta, em nome do seu governo, contra a Lei da
Anistia.
Evidentemente, com o Executivo fora da jogada, não se poderia esperar grande coisa do Legislativo e do Judiciário.
Que o primeiro fingiria nada ter a ver com a encrenca era a chamada caçapa cantada.
Pior ainda fez o Supremo Tribunal Federal em 2010, ao considerar
plenamente válida uma armação que fez lembrar os sequestros de pessoas:
os indiscutíveis representantes dos algozes mantiveram centenas de
vítimas como reféns até que os presumidos representantes das ditas cujas
concordassem em pagar o resgate exigido. Os que chamam isso
de pacto, devem ter em mente a acepção goethiana do termo; os Faustos
foram infaustos, enquanto Mefistófeles estava mefistofélico como nunca.
Genro e Vannuchi, para salvarem a própria imagem depois que Lula os
desautorizou a cumprirem com seu dever, apontaram o caminho dos
tribunais para os inconformados com a impunidade dos ogros. Várias
tentativas têm sido feitas desde a ação pioneira da família Telles
contra o torturador-mor Carlos Alberto Brilhante Ustra, algumas até indo
além das primeiras instâncias, sem que, contudo, fosse ultrapassado o
derradeiro obstáculo: o STF.
Agora Dilma Rousseff terá outra oportunidade de fazer o que é certo,
tomando a única atitude capaz de destravar esses processos: a de colocar
todo o peso do governo federal a favor da revisão da Lei da Anistia.
Caso contrário, a principal recomendação da CNV --acabar com a
impunidade dos verdugos-- ficará no lero lero.
Talvez seja sua última chance de honrar o passado de resistente e
torturada, depois de haver olimpicamente ignorado a decisão da Corte
Interamericana de Direitos Humanos sobre os mortos do Araguaia.
Há quem acredite que, pelo menos no caso do atentado ao Riocentro, o STF
deixará de se comportar como guardião da impunidade dos hediondos;
afinal, cronologicamente, tal ação terrorista, datada de abril de 1981,
não estava mais sob o guarda-chuva protetor da Lei da Anistia. Mas,
ainda que isto ocorra, nada indica que abrirá um precedente para a
condenação de réus de cometeram suas bestialidades no período permitido (até 15 de agosto de 1979). Não nos iludamos.
E é também sem ilusões que devemos encarar a possibilidade de que,
façamos o que fizermos, talvez nenhum dos 196 acusados pela CNV acabe
preso. Nossa Justiça é morosa ao extremo e permite uma infinitude de
manobras protelatórias para os que podem pagar bons advogados. Mais da
metade já morreu e, dada a idade avançada, poucos alcançarão a próxima
década. Será melhor colocarmos nossas esperanças na justiça divina...
Ainda assim, não podemos fechar esta página vergonhosa da nossa História com um veredito tão dúbio.
Por um lado, o Estado brasileiro estaria admitindo que seus agentes
podem ser anistiados após executarem prisioneiros indefesos, estuprarem,
torturarem, maltratarem crianças para coagirem pais, ocultarem
cadáveres, etc.
Por outro, instituiu as comissões de Mortos e Desaparecidos Políticos, de Anistia e da Verdade para apurarem as atrocidades do período e, as duas primeiras, concederem reparações às vítimas ou seus herdeiros.
O que isto sinaliza para os pósteros? Que, em determinadas
circunstâncias, eles poderão cometer os crimes mais atrozes sem serem
punidos, correndo apenas o risco de ficarem com péssima imagem. Os
cínicos concluirão que as generosas recompensas para quem serve aos
déspotas compensam o mico de depois figurarem na História como vilões e
serem alvos de escrachos...
É por isto que se impõe a substituição do simulacro de anistia por uma anistia de verdade!
Os tentados a atentarem contra as instituições (e eles têm mostrado a
cara por aí!) saberão que, da próxima vez, tendem a não escapar tão
facilmente do merecido castigo.
Para os governantes que têm paúra de quarteladas, uma sugestão: se querem conceder algo aos velhos gorilas
para apaziguá-los, que seja a garantia de não encarceramento dos
condenados. Que, lá no fim da linha, os poucos que tiverem sobrevivido à
maratona jurídica sejam indultados por velhice e/ou doença grave, ou
mantidos em prisão domiciliar. Certamente não mostraram idêntica
consideração para com nossos velhos, mas temos a obrigação de ser
melhores do que eles.
No entanto, é como oficialmente culpados que eles têm de passar à História. Se quisemos respeitarmo-nos como povo e como nação. Se tivermos vergonha na cara.