Segunda, 15 de dezembro de 2014
Do MPF
Janot argumenta que sequestros cujas
vítimas não tenham sido localizadas, vivas ou não, constituem crimes de
natureza permanente, sendo imprescritíveis e insuscetíveis de anistia
O procurador-geral da República, Rodrigo Janot,
defendeu que a ação penal na qual cinco militares reformados são
acusados pelo homicídio e pela ocultação de cadáver do ex-deputado
Rubens Paiva deve prosseguir. A manifestação, enviada ao STF nesta
segunda-feira, 15 de dezembro, consta de parecer na Reclamação 18.686/RJ
ajuizada pelos militares, que sustentam ser indevida continuação da
ação por ofensa à decisão da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF) 153/DF, que decidiu pela recepção constitucional da
Lei da Anistia (Lei 6683/1979). Janot pede, ainda, urgente apreciação do
caso, em razão de haver pendência de produção de provas necessárias à
comprovação dos fatos criminosos.
Os réus são acusados dos crimes
de homicídio doloso qualificado - cometido por motivo torpe e com
emprego de tortura -, ocultação de cadáver, fraude processual e
quadrilha armada.“Torturas, mortes e desaparecimentos não eram
acontecimentos isolados no quadro da época, mas a parte mais violenta e
clandestina do sistema organizado para suprimir a todo custo a oposição
ao regime, não raro mediante ações criminosas cometidas e acobertadas
por agentes do Estado.” À época de seu cometimento pelo regime
autoritário, relembra o parecer, esses delitos já eram qualificados como
crimes contra a humanidade, razão pela qual devem sobre eles incidir as
consequências jurídicas de imprescritibilidade e insuscetibilidade à
concessão de anistia.
Natureza permanente – Na
sustentação enviada ao STF, o procurador-geral argumenta que sequestros
cujas vítimas não tenham sido localizadas, vivas ou não, constituem
crimes de natureza permanente. Essa condição afasta a incidência das
regras penais de prescrição e da Lei da Anistia, cujo âmbito temporal de
validade compreendia apenas o período de 2 de setembro de 1961 e 15 de
agosto de 1979. “Enquanto os acusados não apontarem onde se encontra o
corpo de Rubens Paiva, cuja família até hoje, depois de décadas de seu
assassinato, não lhe pôde dar funeral adequado, a conduta de ocultar
ocorrerá”, argumenta e complementa: “Delitos perpetrados por agentes
estatais com grave violação a direitos fundamentais constituem crime de
lesa-humanidade.”
Corte Interamericana de Direitos Humanos –
Segundo Rodrigo Janot, a Corte Interamericana de Direitos Humanos
(CIDH) já reconheceu ser indevida a extinção, pela Lei da Anistia, da
punibilidade de agentes envolvidos em graves violações a direitos
humanos no período pós-1964, sob fundamento da prescrição de pretensão
punitiva do Estado. O Brasil promulgou a Convenção, conhecida como Pacto
de São José da Costa Rica, por meio do decreto 678, de 1992.
Posteriormente, reconheceu como obrigatória a competência da CIDH em
todos os casos relativos à interpretação e aplicação do Pacto. Por isso,
as decisões da Corte têm força vinculante para todos os poderes e
órgãos estatais brasileiros, sustentando a obrigação do Estado
brasileiro de promover a persecução penal de autores de graves violações
a direitos humanos, inclusive nos casos de desaparecimento forçado de
pessoas, crime de caráter permanente.
Em 24 de novembro de 2010, a
CIDH condenou o Brasil após deliberar sobre o caso envolvendo 62
dissidentes políticos brasileiros desaparecidos entre 1973 e 1974 no sul
do Pará, no episódio conhecido como Guerrilha do Araguaia. “A sentença
do caso Gomes Lund vs. Brasil é cristalina quanto ao dever cogente do
Estado brasileiro de promover investigações e responsabilização criminal
dos autores desses desaparecimentos”, argumenta o PGR. A decisão é
vinculante para todo o Estado, mas não vem sendo observada. Diversas
ações penais promovidas pelo Ministério Público Federal (MPF) contra
autores de crimes graves do período da ditadura têm sido impedidas por
decisões judiciais que não consideram os efeitos da sentença da Corte
IDH no caso Gomes Lund. Essas decisões usam argumentos ligados à
prescrição e à aplicação da Lei da Anistia.
“É possível
compatibilizar a decisão do STF na ADPF 153/DF com a da CIDH no caso
Gomes Lund”, defende o procurador-geral, concluindo que “os crimes
cometidos por agentes da ditadura militar brasileira no contexto de
ataque sistemático ou generalizado à população civil são imprescritíveis
e insuscetíveis de anistia, seja por força da qualificação das condutas
como crimes contra a humanidade, seja em razão do caráter vinculante a
sentença do caso Gome Lund”, conclui.
Segundo o procurador-geral,
não parece a melhor solução que, tendo o Brasil aceitado a jurisdição da
Corte Interamericana por ato de vontade soberana regularmente
incorporado ao ordenamento jurídico e se comprometido a cumprir as
decisões dela, deixe de considerar a validade e a eficácia da sentença.
“Isso significaria flagrante descumprimento dos compromissos
internacionais do país e do mandado constitucional de aceitação da
jurisdição do tribunal internacional”, complementa.
ADPF 320/DF – Em
agosto deste ano, o procurador-geral enviou parecer ao STF no qual
defendeu a revisão da aplicação da Lei da Anistia. Na manifestação,
recebida pela Suprema Corte no dia do 35º ano de existência da lei,
Janot sustentou que graves violações de direitos humanos cometidas
durante a ditadura militar são crimes contra a humanidade e, por isso,
imprescritíveis. Segundo Janot, a Lei da Anistia deve ser inaplicável
aos autores de crime continuados ou permanentes, não exauridos após a
entrada em vigor da lei e impossibilidade de reconhecimento da causa de
extinção da punibilidade aos crimes de graves violações de direitos
humanos.
Justiça de Transição – Desde 2012, o MPF
realiza esforço coordenado para dar cumprimento à sentença da Corte
Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund vs Brasil. A
sentença determina ao Estado brasileiro, entre outros pontos, a
investigação penal, a responsabilização e a aplicação das sanções
cabíveis aos autores de crimes contra a humanidade praticados durante a
ditadura militar. Este trabalho recebeu menção honrosa em 2013 no Prêmio
Innovare e foi reconhecido em novembro com o prêmio por Realização
Especial (Special Achievement Award) na conferência anual da
International Association of Prosecutors (IAP).