Quinta, 18 de dezembro de 2014
Escrito por Atilio Borón*
Dilma tinha opções? Claro que sim! Em momentos como este é mais do
que nunca necessário não ceder diante da chantagem tecnocrática e
antipolítica dos resignados do PT e de seus partidos aliados que,
parafraseando o que dizia Margaret Thatcher, afirmam que "não havia
alternativas", que isto é doloroso, mas "era a única coisa que podíamos
fazer".
Se nas vésperas da eleição propus, contra aqueles que pregavam o voto
em branco ou nulo, o voto em Dilma, era por duas razões: primeiro,
porque era imprescindível fechar as possibilidades para Aécio,
representante da direita dura, neocolonial até a medula e sem o menor
compromisso com qualquer causa ou estrutura popular, coisa que o PT teve
e decidiu jogar fora; segundo, porque me parecia razoável apostar que,
diante do horror do abismo, Dilma e os petistas teriam ainda uma mínima
capacidade de reação e lucidez para, ao menos, procurar passar para os
anais da história com algo de dignidade. Reconheço ter superestimado a
capacidade de Dilma e dos petistas de conservar esse reflexo elementar
sem o qual a vida política se torna um interminável calvário. Porém,
mesmo assim, continuo sustentando que a aposta era válida; que o
desperdício de uma oportunidade única não significa que a mesma não
existiu; e se caso houvesse triunfado Aécio, nós estaríamos diante de
uma situação ainda pior do que a que precisamos enfrentar hoje.
Minha reflexão se sustentava, do ponto de vista tanto epistemológico
como prático, na tese que afirma que os processos históricos não
obedecem a um padrão determinista. Caso fosse assim, o simples
desenvolvimento das forças produtivas conduziria inelutavelmente à
revolução e à abolição do capitalismo, coisa que todos os marxistas – de
Marx e Engels até os nossos dias, passando, é claro, por Lênin, Gramsci
e Fidel – se encarregaram de refutar por ser uma crença equivocada, que
estimulava a desmobilização e o quietismo das classes e camadas
exploradas e desembocava, no melhor dos casos, no tíbio reformismo
socialdemocrata.
Assim como Lênin destacou centenas de vezes, o capitalismo não cairá,
caso isso não seja provocado, o que requer um componente essencial: a
vontade política. Isto é, a firme decisão de combater em todas as
frentes da luta de classes, organizar o campo popular, promover a
conscientização e a batalha de ideias e, claro, adotar a estratégia
geral e a tática pontual mais apropriada para intervir na conjuntura,
esquivando-se dos riscos sempre presentes e simétricos do voluntarismo,
que ignora os condicionamentos histórico-estruturais, e o triunfalismo
fatalista que confia em que as cegas forças da história nos conduzirão à
vitória final.
Os que aderem ao determinismo histórico não são os marxistas, mas,
sim, os economistas e governantes burgueses, sempre prontos para
dissimular suas opções políticas como o resultado de inexoráveis
imperativos técnicos. Se para abater a inflação os salários são
congelados, e não se controla a formação dos preços, é por uma razão
despojada de qualquer vestígio de política e ideologia, tão pura em sua
abstração como um teorema da geometria. Se para melhorar as contas
fiscais são cortados os orçamentos da saúde, educação e cultura, ao
invés de se fazer uma reforma tributária para que as empresas e as
grandes fortunas paguem o que lhes cabem, é dito que aquela é a
alternativa que brota de uma análise puramente técnica das receitas e
despesas do Estado. Outra impostura!
Foi pela rejeição de qualquer concepção fatalista ou determinista que
cheguei à conclusão, que ratifico no dia de hoje, de que apesar do
fortalecimento da direita, Dilma e o PT ainda tinham uma oportunidade;
que lhes restava uma bala na agulha e, caso tivessem lucidez e vontade
de avançar pela esquerda, ainda poderiam salvar algo do processo
iniciado com a fundação do PT (e que tantas esperanças havia suscitado),
evitando um retrocesso brutal que significaria, para o movimento
popular brasileiro, ter de subir uma difícil ladeira para relançar seu
projeto emancipatório. Por isso, permito-me reproduzir o que escrevi
após a pírrica vitória de Dilma (e agora, sim, entende-se porque foi
pírrica, porque o triunfo causou mais dano ao vencedor do que ao
vencido, a Dilma e ao PT do que a Aécio).
Nessa nota, eu dizia o seguinte:
"Para não sucumbir diante destes grandes fatores de poder se
requer, em primeiro lugar, a urgente reconstrução do movimento popular
desmobilizado, desorganizado e desmoralizado pelo PT, algo que não
poderá fazer sem uma reorientação do rumo governamental que redefina o
modelo econômico, corte os irritantes privilégios do capital e faça com
que as classes e camadas populares sintam que o governo quer ir para
além de um programa assistencialista e que se propõe a modificar, pela
raiz, a injusta estrutura econômica e social do Brasil. Em segundo
lugar, lutar para realizar uma autêntica reforma política que empodere,
verdadeiramente, as massas populares e abra o caminho largamente
demorado de uma profunda democratização...
Contudo, para que o povo assuma seu protagonismo e floresçam os
movimentos sociais e forças políticas que motorizam a mudança – que
certamente não virá 'de cima' – seria preciso tomar decisões que
efetivamente os empoderem. Uma reforma política é uma necessidade vital
para a governabilidade do novo período, introduzindo instituições tais
como a iniciativa popular e o referendo revocatório que permitirão, se é
que o povo se organizará e se conscientizará, colocar fim à ditadura de
caciques e coronéis que fazem do Congresso um baluarte da reação.
Será este o curso de ação no qual Dilma se embarcará? Parece
pouco provável, salvo que a irrupção de uma renovada dinâmica de massas,
precipitada pelo agravamento da crise geral do capitalismo e como
resposta diante da recarregada ofensiva da direita (discreta, mas
resolutamente apoiada por Washington), altere profundamente a propensão
do Estado brasileiro de gerir os assuntos públicos de costas para o seu
povo... Nada poderia ser mais necessário para garantir a governabilidade
deste novo mandato do PT do que o vigoroso surgimento do que Álvaro
García Linera denominou como 'a potência plebeia', adormecida por
décadas sem que o petismo se atrevesse a despertá-la. Sem esse massivo
protagonismo das massas no Estado, este ficará prisioneiro dos poderes
tradicionais que vêm regendo os destinos do Brasil desde tempos
imemoriais".
Ao anunciar a nomeação de Joaquim Levy como ministro da Fazenda, um
'Chicago boy' e homem da banca brasileira e internacional, Dilma e o PT
se eximem covardemente de sua responsabilidade histórica. Em Cadernos do
Cárcere, há uma nota intitulada "A fábula do castor", na qual Gramsci
diz o seguinte a respeito da incapacidade das forças de esquerda em
resistir eficazmente à ascensão do fascismo: "O castor, perseguido pelos
caçadores que querem lhe arrancar os testículos dos quais se extraem
substâncias medicinais, para salvar sua vida, arranca de si mesmo os
testículos. Por que não houve defesa? Pouco sentido da dignidade humana e
da dignidade política dos partidos? Mas, estes elementos não são dons
naturais... são 'fatos históricos' que se explicam com a história
passada e com as condições sociais presentes".
Ao convidar Levy e seus tenebrosos doutores da 'doutrina do choque' –
Naomi Klein dixit – para tomar por assalto o Estado (e especular com a
possibilidade de que se ofereça à senadora Kátia Abreu, forte inimiga do
Movimento Sem Terra e líder da Confederação Nacional da Agricultura,
lobby do agronegócio, o Ministério da Agricultura), o governo petista
agiu como o castor da fábula: castrou-se a si mesmo e traiu o mandato
popular que havia repudiado a proposta de Aécio, ao servir o poder de
bandeja aos seus declarados inimigos, perpetrando uma gigantesca fadiga
pós-eleitoral sem precedentes na história do Brasil.
Isto explica o júbilo dos grandes capitalistas e de seus
representantes políticos e midiáticos, que celebraram este gesto de
'sensatez' de Dilma como uma extraordinária vitória. Com efeito,
perderam nas eleições porque o voto popular não os favoreceu, mas a
burguesia não mede suas forças e disputa o poder apenas no terreno
eleitoral. Seria uma demonstração de cretinismo eleitoral pensar dessa
maneira. Para corrigir as errôneas decisões do eleitorado existem os
'golpes de mercado' e seu fiel escudeiro: o 'terrorismo midiático'
impunemente exercido no Brasil na recente conjuntura eleitoral.
Vencedora nas urnas e derrotada e humilhada fora delas, Dilma assume
como seu o pacote econômico de seus inimigos, que afundou a Europa em
sua pior crise desde a Grande Depressão e que tantos estragos ocasionou
na América Latina.
Havia alternativas? Claro.
A partir do que Gramsci observava, por que Dilma (e Lula) não
denunciou a manobra da burguesia e disse ao povo que se estava a ponto
de cometer um verdadeiro golpe na vontade popular? Por que não se
convocou os setores populares para ocupar fábricas, parar o transporte,
bloquear bancos, comércios, escritórios públicos e os meios de
comunicação para deter o "golpe brando" em surgimento? Em uma palavra,
porque tanta passividade, tanta resignação? Como explicar uma derrota
ideológica e política desta magnitude?
O que vem agora é a velha receita para seduzir os mercados: ajuste
fiscal ortodoxo; estímulos para aumentar a rentabilidade empresarial,
sobretudo do setor financeiro; corte no investimento social
(pejorativamente considerado como um 'gasto'), tudo para restaurar a
confiança dos mercados, o que equivale a uma impossível tarefa de
Sísifo, porque estes jamais confiam em outra coisa que não seja o
crescimento de seus lucros. Prova disso: jamais na história brasileira
os bancos ganharam tanto dinheiro como durante a gestão dos governos do
PT. Apaziguaram-se por isso? Pelo contrário. Ficaram ainda mais
famintos, querem mais, querem governar diretamente sem o estorvo de uma
mediação política. Seu vício ao lucro é incontrolável, e se comportam
como viciados.
O remédio que, sem contrapeso algum no sistema político, estes
feiticeiros aplicaram nas finanças é um coquetel explosivo, que não
servirá para promover o crescimento econômico do Brasil, mas que, sem
dúvidas, potencializará o conflito social até níveis poucas vezes visto
nesse país. A feroz resposta repressiva que ocorreu diante das grandes
mobilizações desencadeadas pelo aumento da tarifa do transporte público,
em junho de 2013, pode ser uma brincadeira de crianças em comparação ao
que poderá acontecer em um futuro imediato, assim que Levy e os
banqueiros começarem a aplicar suas políticas.
Se olharmos para o gráfico precedente, veremos que não basta para o
setor financeiro se apropriar de nada menos que 42.04% do orçamento
federal do Brasil, do ano 2014, em juros e amortizações da dívida
pública, contra os 4.11% em saúde, 3.49% em educação e pouco mais de 1%
no Bolsa Família. Para melhorar ainda mais sua rentabilidade, Levy
trabalhará com afinco para perpetuar a dependência do Estado aos
empréstimos dos banqueiros, subir ainda mais as exorbitantes taxas de
juros alcançadas por estes e aumentar sua participação leonina no
orçamento, tudo isto deixando intacta a regressiva estrutura tributária e
os privilégios e prerrogativas que o capital gozou nos últimos tempos.
No entanto, seria um erro supor que as andanças de Levy e dos seus têm
como único objetivo aumentar a riqueza dos capitalistas.
O objetivo que as classes dominantes se impuseram no Brasil – que não
encontrou resistência no governo do PT – é o de fortalecer a posição do
grande capital, não apenas no seio dos mercados, mas também na
sociedade e na política, consolidando uma correlação de forças na qual
os movimentos populares fiquem definitivamente subordinados ao domínio
daquele. Trata-se, em suma, de um projeto de refundação do capitalismo
brasileiro, montado sobre o fracasso do reformismo light do PT e onde,
assim como no Chile refundado pela ditadura pinochetista, a aliança
burguesa exercerá o domínio político direto, sem a incômoda
intermediação da clamorosa partidocracia, que apenas produz ruídos que
perturbam a paz e a serenidade que os mercados necessitam.
Com esta medida adotada pelo governo do PT, o Brasil chega a um
penoso trânsito de uma democracia de baixa intensidade para uma
desavergonhada plutocracia que nada de bom poderá oferecer ao seu povo
e, por extensão, para a América Latina, angustiada e entristecida por
ver seu "irmão mais velho" se render diante dos capitalistas sem
oferecer a menor resistência. Confiamos que as forças populares
brasileiras, cedo ou tarde, iniciarão um processo de recomposição para
evitar a barbárie que paira sobre elas.
*Atilio Boron é sociólogo argentino.
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Publicado no Diário Liberdade - http://www.diarioliberdade.org/opiniom/outras-vozes/52885-dilma-capitulação-e-depois.html ; Tradução: CEPAT - http://www.ihu.unisinos.br/cepat