Sábado, 24 de dezembro de 2016
Por

O agitado panorama
político-jurídico das últimas semanas foi dominado por decisões judiciais com
fortes impactos institucionais. “A 1a turma do STF decidiu que criminalizar aborto realizado no
1o trimestre da gestação viola diversos direitos fundamentais
das mulheres. Segundo o voto conductore do ministro Barroso, a criminalização da
conduta (aborto voluntário no primeiro trimestre) não teria sido recepcionada
pela CF”
(Migalhas n. 3.998). Na sequência, a Câmara dos Deputados resolveu instalar uma
comissão para analisar o julgado e seus efeitos. Em decisão individual, no
âmbito da ADPF n. 402, o Ministro Marco Aurélio, do STF, afastou cautelarmente o
Senador Renan Calheiros da Presidência do Senado Federal. “O STF não referendou a liminar do
ministro Marco Aurélio. A maioria acompanhou voto divergente do ministro Celso
de Mello, que manteve o senador na presidência da Casa, impedindo-o, no entanto,
de assumir a presidência da República” (Migalhas n. 4004). Segundo várias
fontes muito bem informadas, as “conversações” de bastidores caracterizaram essa
última decisão como uma das mais deprimentes da história recente do Supremo.
“O ministro Luiz
Fux, do STF, determinou nesta quarta-feira, 14, que a Câmara dos Deputados
analise novamente o projeto com 10 medidas de combate à corrupção. A decisão foi
por meio de liminar deferida em MS impetrado no STF pelo deputado Eduardo
Bolsonaro. Para o ministro, o Legislativo não pode desvirtuar com emendas o
conteúdo do projeto de iniciativa popular”
(http://www.migalhas.com.br).
Esses
pronunciamentos recentes não destoam, sob certo ângulo de análise, de dezenas de
manifestações adotadas nos últimos 15 (quinze) anos, pelo menos. Apenas para
ilustrar, podem ser citadas: a) a licitude da interrupção da gravidez em caso de
feto anencéfalo (ADPF n. 54); b) a execução provisória de acórdão penal
condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial
ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de
inocência (ADCs ns. 43 e 44); c) a nomeação de cônjuge, companheiro ou parente
em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da
autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo
de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou
de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e
indireta em qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e
dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a
Constituição Federal (Súmula Vinculante n. 13); d) a juridicidade do uso de
células-tronco embrionárias em pesquisas científicas para fins terapêuticos
(ADIn n. 3.510); e) o exercício do cargo de Governador de Estado, por qualquer
intervalo de tempo, não garante a percepção de pensão vitalícia, em valor mensal
idêntico à retribuição paga, independentemente de denominação, ao Governador de
Estado (ADIn n. 3853) e f) a impossibilidade do financiamento eleitoral por
pessoas jurídicas/empresas (ADIn n. 4650).
Existe uma explicação
fácil, corrente e equivocada para a atuação cada mais vez intensa do Poder
Judiciário, notadamente do Supremo Tribunal Federal. Afirma-se que o Poder
Judiciário ocupa, de forma indevida, um espaço deixado pela inércia do Poder
Legislativo. Em outras palavras, na ausência de leis sobre determinadas matérias
a regulamentação termina por ser construída no âmbito da atividade
judicial.
O raciocínio
anterior está substancialmente equivocado. Um exemplo simples demonstra o erro.
Inexistia lei acerca do casamento homoafetivo. O Supremo Tribunal Federal
admitiu expressamente, no julgamento da ADPF n. 132, a validade jurídica da
união homoafetiva. A adoção, no futuro, de lei proibindo expressamente o
casamento homoafetivo não modificará o quadro atual. Com efeito, o resguardo
jurídico de situações dessa natureza decorre da aplicação de valores e
princípios constitucionais não afetados pela legislação infraconstitucional. Não
houve, portanto, atuação do Judiciário diante de lacuna deixada pelo
Legislativo. Ocorreu, eis o cerne da questão, aplicação da normatividade
superior de natureza constitucional. Nesse sentido, pode ser destacado o
seguinte trecho da ementa resultante do julgamento da ADIn n. 2797:
“3. Não pode a
lei ordinária pretender impor, como seu objeto imediato, uma interpretação da
Constituição: a questão é de inconstitucionalidade formal, ínsita a toda norma
de gradação inferior que se proponha a ditar interpretação da norma de
hierarquia superior. 4. Quando, ao vício de inconstitucionalidade formal, a lei
interpretativa da Constituição acresça o de opor-se ao entendimento da
jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal - guarda da Constituição -, às
razões dogmáticas acentuadas se impõem ao Tribunal razões de alta política
institucional para repelir a usurpação pelo legislador de sua missão de
intérprete final da Lei Fundamental: admitir pudesse a lei ordinária inverter a
leitura pelo Supremo Tribunal da Constituição seria dizer que a interpretação
constitucional da Corte estaria sujeita ao referendo do legislador, ou seja, que
a Constituição - como entendida pelo órgão que ela própria erigiu em guarda da
sua supremacia -, só constituiria o correto entendimento da Lei Suprema na
medida da inteligência que lhe desse outro órgão constituído, o legislador
ordinário, ao contrário, submetido aos seus ditames”.
A verdadeira razão para a
atuação mais intensa do Poder Judiciário nos últimos anos decorre de uma
profunda mudança do paradigma de compreensão do funcionamento da ordem jurídica.
No passado, até a primeira metade do século XX, quando dominantes os
constitucionalismos liberal e social, admitia-se uma supremacia meramente formal
da Constituição. Assim, os casos e problemas da vida em sociedade eram
resolvidos pela aplicação direta das leis infraconstitucionais. As
Constituições, seus valores e princípios fundantes, não experimentavam aplicação
direta e funcionavam como meros vetores ou diretrizes a serem incorporados pelo
Legislador na construção das regras legais. Esse panorama sofreu radical
transformação a partir da segunda metade do século XX. As Constituições
“ganharam” uma supremacia material ou axiológica antes inexistente. A principal
consequência prática dessa transformação revolucionária no campo jurídico
consiste justamente na possibilidade, e necessidade, de aplicação direta da
Constituição, notadamente seus valores e princípios, independentemente de
intermediação legislativa (de uma regra específica posta na legislação
infraconstitucional).
O chamado “ativismo
judicial”, compreendido no sentido da aplicação direta dos valores e princípios
constitucionais pelo Judiciário sem a imprescindível intermediação do
Legislativo, é um fenômeno necessário e essencialmente positivo. São
concretizados, por essa via, direitos fundamentais importantíssimos realizadores
da dignidade da pessoa humana. “O reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros
da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da
liberdade, da justiça e da paz no mundo”, conforme define a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Trata-se de construção
internacionalmente consagrada, inclusive como a base mais relevante do Estado
Democrático de Direito no Brasil (art. 1o, caput e inciso III, da Constituição
brasileira de 1988).
O aludido “ativismo
judicial”, embora necessário, nos termos antes postos, está sujeito a excessos e
desvios. Seus contornos e limites não possuem tratamento técnico-jurídico
aprofundado e consistente. Provavelmente, jamais se atingirá tal patamar de
construção jurídica por conta do manuseio de pautas axiológicas intrinsecamente
subjetivas. Mesmo de forma incipiente, parece adequado apontar duas ordens de
limitações ao “ativismo judicial”: a) o respeito ao espaço de conformação do
legislador (para regular as multifacetadas hipóteses da rica realidade social) e
b) a impropriedade, em regra, de sua utilização para além de definições
(binárias) de compatibilidade, ou não, com os vetores
constitucionais.
Outro campo sujeito ao
exercício indevido do “ativismo judicial” consiste na adoção de decisões
monocráticas que perturbam gravemente o cenário político-institucional quando:
a) desconsideram (ou modificam) a jurisprudência reiterada do tribunal; b)
interferem diretamente no processo legislativo em andamento ou c) introduzem no
debate político um posicionamento particular do magistrado autor da manifestação
(personagem com profundo deficit de legitimidade democrática, no sentido
tradicional de representar votos que sustentam a atuação no cenário
político).
Observa-se,
portanto, a necessidade de aperfeiçoamentos no exercício da jurisdição,
sobretudo do Supremo Tribunal Federal, na seara do “ativismo judicial”. Esses
ajustes não podem, nem devem, buscar o enfraquecimento do Poder Judiciário, a
volta aos paradigmas do passado (corretamente superados) ou mesmo afetar a
independência dos magistrados. São adequações, normalmente procedimentais,
privilegiando decisões colegiadas, voltadas para eliminar espaços para
perturbações institucionais graves e atuações não
republicanas.
Eis um esboço (entre
inúmeros possíveis) de mudança constitucional no sentido antes referido. A
eficácia de decisão monocrática, no âmbito do Supremo Tribunal Federal,
extensível aos Tribunais de Justiça, fica condicionada a confirmação pela
maioria absoluta do tribunal quando: a) interfira no processo legislativo em
curso; b) altere a composição ou funcionamento de órgão parlamentar; c)
interfira no exercício de cargo ocupado por parlamentar em órgão do Legislativo
e d) suspenda o exercício de mandato parlamentar.