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(Millôr Fernandes)

domingo, 24 de junho de 2018

Da periferia a advogado pela USP, Marivaldo Pereira tenta o Senado

Domingo, 24 de junho de 2018
Da
Carta Capital
por Carol Castro

Ele já foi assistente de pedreiro e feirante. Agora, pelo PSOL, quer ser senador do DF e já arrecadou 117 mil reais com financiamento coletivo

                                                                                Reprodução Facebook
Marivaldo hoje luta para acabar com a exclusão social e a política de manutenção de privilégios

De casa em casa, Marivaldo Pereira passeia pelas ruas de Brasília atrás de gente. Gente para contar como andam as coisas naquela região. Ao fim de um desses encontros, no Paranoá, cidade do Distrito Federal nos arredores de Brasília, uma mãe junto com os filhos se aproximou para contar sua história.

Era diarista e trabalhava sete dias por semana para sustentar dois adolescentes e a neta. Ainda assim era pouco. Os filhos queriam oportunidades, mas não tinham qualquer experiência. E a taxa de desemprego, que chega a quase 18% na capital, não ajudava muito.

Uma das filhas contou a Marivaldo seu sonho: um dia se tornar médica. “Eu a incentivei, convidei para o cursinho popular onde dou aulas. E pedi para que ela nunca desista!”, conta. Aquela família fez o advogado e pré-candidato ao Senado pelo PSOL relembrar os tempos de menino.

Nascido em Brasília, cresceu no meio de outros três irmãos. O pai era pedreiro e a mãe dona de casa. Mudaram-se para São Paulo ainda durante a infância dos meninos, em busca de novas chances de emprego. Construíram um barraco em uma ocupação em Pirituba, no noroeste da cidade.
Quando Marivaldo tinha uns oito anos, a mãe se cansou dos excessos do marido, que tinha problemas com álcool, e se separou. Arranjou bicos como diarista e lutava para manter o básico em casa.  Antes da separação, a situação era mais complicada. A família precisava esperar o fim da feira para recolher as sobras descartadas pelos feirantes. “A casa da minha professora era bem em frente à feira, eu morria de vergonha”, lembra. As roupas e sapatos, nem sempre do tamanho exato, vinham de doações da igreja, escola ou das casas onde trabalhava.

Por aquela época, assim como os adolescentes que ele encontrou no Paranoá, Marivaldo procurava emprego em qualquer área – precisava só de oportunidade para levar dinheiro para casa. Trabalhou como feirante, assistente de pedreiro, em farmácias. Mas a mãe bateu sempre na mesma tecla: não deixem de estudar.

Só que era 1997. Ninguém da periferia sonhava em fazer faculdade – muito menos uma pública. Era um sonho distante, coisa para gente rica. “Eu queria romper o sistema, que não permite a ascensão social do mais pobre. Essa exclusão social não é algo natural”, explica Marivaldo.

Fez um cursinho pré-vestibular popular da Poli (Faculdade de Engenharia da USP) e mudou de decisão: trocou o sonho da engenharia pelo Direito. “Eu percebi que o Direito poderia me dar as ferramentas para transformar a realidade na qual eu mesmo estava inserido”, diz. Trabalhava, dormia pouco e estudava muito. Prestou Fuvest. E não passou.

No ano seguinte, cortou os breves cochilos que tirava antes das aulas. Dormia ainda menos – quase quatro horas por noite. Passou na Universidade Estadual de Londrina e no Mackenzie. Não teve coragem de conferir a lista de aprovados da Fuvest. A irmã teve. E foi ela quem anunciou: o menino negro, da favela, era agora calouro de Direito da USP.

“Aquilo mudou minha vida. Consegui um estágio e me envolvi com o pessoal da militância por moradia”, relembra. Vivia enfiado em cortiços e ocupações. Era só o começo do envolvimento de Marivaldo com a política.

Vida política
Quando os fogos de artifício anunciaram, em agosto de 2016, Michel Temer como novo Presidente do Brasil, Marivaldo não teve estômago para segurar o cargo de Secretário Executivo do Ministério da Justiça. Abriu mão do cargo comissionado que mantinha há quase dois anos e voltou a ser funcionário público – em 2005, havia passado no concurso para auditor do Tesouro.

Não foi só por discordar da subida de Temer que Marivaldo abriu mão do cargo de secretário. Ele sabia que as lutas travadas por ele não teriam mais espaço. E não eram poucas.

Em 2005, quando trocou São Paulo por Brasília, Marivaldo recebeu um convite para trabalhar na Secretaria da Reforma Judiciária, do Ministério da Justiça, e extinta em 2016. Ficou por lá durante três anos, até ser convidado para a Secretaria de Assuntos Legislativos.

Lá, ajudou na criação e elaboração do maior xodó dele: o Projeto de Lei 4.471/2012 – ou o PL do fim dos autos de resistências (quando o policial mata um suspeito e alega legítima defesa). O PL, estacionado no Senado, exige que sejam realizadas investigações em mortes causadas por policiais – seja qual for o motivo alegado pelo agente.

Depois parou na subchefia para assuntos jurídicos da Casa Civil.  “Nosso papel era entender e construir articulações para viabilizar as políticas públicas. Nosso papel não era só fazer um parecer jurídico, era de ajudar a buscar alternativas viáveis – essa era a mágica”, explica. “E como eu coordenava a análise de dados da área social, eu ajudava muito na construção das políticas públicas da área social.”

Nessa função, auxiliou em várias áreas: no programa Minha casa, minha vida, na criação das leis de Acesso à Informação e Anticorrupção. “Uma das mais marcantes foi o Minha casa, minha vida. Trouxe a primeira lei que permitia regularização fundiária de áreas urbanas consolidadas, de favelas”, conta. “Trabalhei bastante em parcerias com o Ministério do Desenvolvimento Social, e também com o da Educação.”

E nada foi mais gratificante para ele do que ver os avanços na área de educação (com as políticas de cotas e as linhas de crédito para financiamento estudantil) chegarem até Pirituba. “Virou outra coisa. Quando voltei para lá para visitar meus primos, que estão terminando o ensino médio, todos já falavam em fazer universidade. Parece pouco, mas para o jovem de periferia só ter essa perspectiva já é muita coisa. Faz diferença: ele acredita que é possível”, comemora Marivaldo.

Voltou para o Ministério da Justiça em 2015, no cargo que abandonaria dois anos depois. Naquele período, durante as viagens de José Eduardo Cardoso, assumia o cargo de Ministro interino – foi a primeira vez que um negro ocupou o lugar mais alto do Ministério da Justiça.

Quando Temer assumiu, uma porção de gente se perdeu cargos do governo. “Era uma galera muito empolgada, com forte engajamento. Quem entrou depois do golpe não tinha compromisso com a base da população”, lamenta. “As pessoas ficaram sem rumo.”

Candidato
Havia uma solução: ocupar o poder. Em 2017, o PSOL ofereceu a Marivaldo a oportunidade de concorrer ao Senado. “Aqui em Brasília são só oito deputados federais e dois senadores. A gente achou que seria mais viável conseguir uma vaga no Senado”, explica.

Aquela galera toda que se sentiu desamparada viu em Marivaldo uma esperança. Advogados e ativistas de vários cantos do Brasil se empolgaram com a oportunidade de ver aquele rosto, com todas aquelas lutas, no Senado. A empolgação valeu uma grana: em menos de um mês, Marivaldo arrecadou 117 mil reais com financiamento coletivo – muito mais do que Jean Wyllys, seu colega de partido. 

De porta em porta, em pré-campanha, com poucos recursos, o advogado se aproxima da população para ver histórias como aquela da diarista e seus filhos. “Só assim, com a ajuda deles, é possível saber quais são os principais problemas da população – e o que fazer para melhorar”, explica.

“A saída é ampliar as políticas públicas. Fizemos um estudo que mostra: nos lugares onde há maior deficiência do Estado, com menos serviços [educação, saúde], há uma ‘mancha de calor’ [mais violência e homicídios] maior”, afirma. “Ou você gera perspectivas ou as pessoas tendem a ir para a violência.”

Sem medo de frustrações com as bancadas conservadoras, Marivaldo espera chegar ao Senado para seguir com suas lutas sociais – e reduzir as desigualdades do País. E dar a mais jovens negros da periferia a chance de ter uma história semelhante a dele, mas sem a necessidade de encarar tantas dificuldades.