Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

domingo, 13 de dezembro de 2020

Carta aberta contra os ataques à reforma psiquiátrica e à política nacional de saúde mental

Domingo, 13 de dezembro de 2020

O Ministério da Saúde (MS), por meio da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, instituiu um Grupo de Trabalho para alterar a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e o modelo assistencial em Saúde Mental no país. É com grande indignação que recebemos a notícia de que, a partir desse GT, entrará em curso um processo de revogação das Portarias que organizam toda a Política Nacional de Saúde Mental ancorada em modelo comunitário e humanizado. A indignação cresce quando nos deparamos com argumentos falaciosos e ideológicos para sustentar esse processo que, na verdade, representará um retrocesso de décadas na assistência à saúde mental de brasileiras e brasileiros. A nova proposta exclui a participação de outros profissionais que atuam na saúde mental, outros campos científicos de saber, a sociedade civil e, sobretudo, os sujeitos que necessitam dos serviços. Fere o princípio democrático do planejamento de políticas públicas, resguardado por nossa Constituição Cidadã.
A política em vigor atualmente está sustentada em anos de luta pela Reforma Psiquiátrica e Reforma Sanitária, que implantou o SUS com base na Universalidade e na Integralidade dos serviços, e nas orientações da OMS para o campo da Saúde Mental com respeito à dignidade e aos direitos humanos; contou com o envolvimento do Estado, da Sociedade Civil e das Instituições de Estudo e Pesquisa. A revogação das Portarias da Política de Saúde Mental se baseia num único documento redigido pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), chamado de Diretrizes para o Modelo Integral em Saúde Mental no Brasil. O documento é repleto de contradições, imprecisões e falseamentos: desconsidera a atual compreensão do conceito de saúde e faz a atenção retornar ao modelo centrado no médico, nas internações e hospitalizações generalizadas e compulsórias, com intervenções agressivas e invasivas, na medicalização excessiva e no retorno da eletroconvulsoterapia.
As diretrizes propostas no documento da ABP propiciam a segregação, além de estimular a privatização do SUS de forma direta e indireta, por isso destacamos alguns aspectos a serem observados: 1) o posicionamento acerca da assistência a pessoas que fazem uso abusivo de álcool ou outras drogas é moralista e incoerente, visto que a drogadição não é reconhecida como problema de saúde pública, ao passo que o tratamento indicado – com centralidade médica, intervenção medicamentosa e internações duradouras – serviria para normalizar comunidades terapêuticas religiosas que submetem pessoas a tratamentos prolongados, em regime de confinamento e reclusão, sem profissionais de saúde habilitados; 2) o Estatuto da Criança e do Adolescente não é garantido inteiramente, pois as novas diretrizes oferecem um modelo de atenção que desconsidera a voz e os direitos de pessoas menores de 18 anos, desrespeita diversas ciências que abordam o desenvolvimento humano, limita a atuação de profissionais variados e reduz as possibilidades e o alcance de tratamentos a crianças e adolescentes ao estabelecer que todo atendimento deverá ser referendado apenas pela Associação de Psiquiatria; 3) sob o argumento de que Consultórios na Rua, Residências Terapêuticas e Unidades de Acolhimento deveriam ser financiadas e ofertadas somente pela política de assistência social, o documento sugere o cancelamento destes serviços, tal medida é especialmente preocupante pois desampara completamente pessoas cujo sofrimento psíquico está relacionado de forma mais direta aos contextos de pobreza e vulnerabilidade social.
Vemos explicitamente e nas entrelinhas a intenção de implantar um modelo de atenção pautado no controle, na opressão, no aprisionamento e no desrespeito às individualidades tanto quanto às comunidades, pois sabemos, ante o racismo e as desigualdades que estruturam nossa sociedade, que as principais vítimas de tal retrocesso serão mulheres e homens pretos e pobres das nossas periferias. Diante de tamanho ataque, publicizamos, enquanto profissionais de saúde, estudiosas/os e da saúde mental e trabalhadoras/es do SUS, nosso posicionamento contrário a este golpe disferido contra os direitos de cidadania de todas e todos os usuários da Política Nacional de Saúde Mental. Exigimos não só a manutenção, mas o fortalecimento da política que foi historicamente conquistada e coletivamente construída! Exigimos que qualquer mudança passe pelo crivo da democracia, ouvindo amplamente a sociedade e todos os envolvidos com as políticas públicas, por meio dos instrumentos consagrados do controle democrático, como as Conferências de Saúde.
Conclamamos os coletivos antimanicomiais de todo o país a se unirem na proposta da 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental! Aguardamos, ainda, um posicionamento da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal sobre o assunto, para garantir o impedimento de qualquer retrocesso na configuração da ainda tão deficitária saúde mental da capital do Brasil. Exigimos que a SES assuma formalmente o compromisso de ampliar a rede de atenção psicossocial local, inserindo no rol de seus equipamentos residências terapêuticas, centros de convivência e cultura, mais unidades de acolhimento e CAPS!