Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

terça-feira, 23 de novembro de 2021

Manifesto à Consciência Negra

Terça, 23 de novembro de 2021

 Maurício Kenyatta Barros da Costa


Manifesto à Consciência Negra
Dia 20 de Novembro de 2021

Esse é o meu primeiro Dia da Consciência Negra no qual me sinto integrante de um quilombo. Atualmente, estou na luta junto com parceiras e parceiros no ConexãoAfro e no Movimento Negro Unificado. De um certo lado, uma melancolia me invade por não poder participar dos 2 anos de CA e de seus eventos, assim como não estar junto das manifestações e celebrações promovidas pelo MNU DF. Estou do outro lado do Atlântico, não, não é do lado africano, infelizmente, mas um pouquinho mais acima, do outro lado do atlântico norte, na Europa.

Essa data de lutas junto a esse contexto de estar na Europa fazem-me recordar do movimento inverso feito pelos europeus para estarem na África, nas Américas, na Ásia. Hoje os corpos migrantes e refugiados são vistos como uma ameaça por muitos ao estilo de vida europeu.

Na formação do que conhecemos por Brasil hoje, houve a importação de instituições, da política, da economia, da religião e da cultura portuguesa em específico, mas europeia de maneira geral, para esse território que era governado por uma imensa diversidade de povos originários. A mão de obra escravizada foi sequestrada para ser a cor do trabalho no Brasil. O trabalho por essas bandas nunca foi visto como virtude, mas como coisa de preto, de pobre. Até hoje, a vida de boa parte da população trabalhadora gira em torno de transporte público lotado, de má qualidade, horas de trânsito, vulnerabilidades trabalhistas (tanto na perspectiva dos diversos tipos de assédio até a falta de direitos básicos). Tudo isso, direitos e dignidades, dizem que encarecem o produto. Entretanto, esquecem-se que uma população mal remunerada tem poder de compra inferior para fazer a roda do capital girar. Se o povo não tem dinheiro, como compra? Como consome?

Mesmo nesse mundo capitalista, onde tempo é dinheiro, o ódio fala mais alto. Tive boas (e sou grato a isso) e também más recepções por parte da cidade de Bruxelas. No primeiro bar com música mais animada que fui tentar ir sozinho, eu fui barrado ao entrar por estar com uma calça jogger. Uma calça como se fosse de malha, comum para quem faz atividades físicas, dança, comum também no hip hop. Com essa calça pude entrar em vários estabelecimentos em Bruxelas, inclusive mais “refinados” que esse, mas não pude entrar nesse. Quando fui olhar os comentários do estabelecimento, muitas pessoas denunciando o racismo dos seguranças.

Esse meu exemplo, eu trago para dizer que o racismo não é invenção capitalista. Ele vai além do capitalismo. Entretanto, empresas e países utilizam-se ainda hoje de escravidão e sub-remuneração para colher vantagens competitivas e lucrar mais. Ainda assim, o meu ponto é que esse é um péssimo negócio, pois, como eu disse, o capitalismo precisa de consumidores que queiram e possam consumir.

O ódio étnico e racial é um instrumento poderoso, pois ao mesmo tempo que ele retira a dignidade do outro, ele aumenta a dignidade de quem odeia por meio de uma falsa ideia de superioridade.

Vejamos bem, se, por séculos, eu exploro, mato e destruo um povo, sua cultura e instituições por meio da força, o mínimo que eu posso ser é mais próspero materialmente, não? É tipo um jogo de tabuleiro ou videogame, se eu tenho como “trapacear” nesse jogo ou se tenho força o suficiente para “roubar” e fazer os outros continuarem no meu jogo, o mínimo que se espera é que eu ganhe. A escravidão, o colonialismo e o imperialismo foram os instrumentos de aprofundamento das desigualdades no mundo e a manutenção deles dependeu da consolidação de teorias, culturas e práticas religiosas racistas que demarcassem bem essas desigualdades.

Voltando ao caso brasileiro, a instrumentalização das práticas de ódio étnico e racial surgidas na Europa são exportadas via colonização e imperialismo. Os povos originários e os povos sequestrados são violentados física, sexual, cultural, social, política e religiosamente. A morte é a pena da não-conversão, a não conversão a teoria da superioridade racial, a não conversão ao comportamento submisso, a não conversão a religião da EUROPA, não a de Cristo de Nazaré, a não-conversão à branquitude, ao ocidentalismo. Daí vem as políticas de branqueamento e a grande população parda de nosso Brasil, o povo filho da violência. Não à toa, somos uma das sociedades mais violentas no mundo.

Ser brasileiro é ser violentado diariamente, por não brasileiros que nos querem subjugados e por brasileiros da elite branca que insistem em resguardar seus privilégios, fora também a própria violência de seu povo contra si, o que novamente corrobora com os desígnios de quem quer manter o poder. Dividir para governar é a regra básica da política. Só uma sociedade tão fragilizada e cheia de ódio como a nossa para eleger quem elegemos afinal.

O povo negro brasileiro é a junção de pretos e pardos. Nesse Dia da Consciência Negra, eu rogo pelo fortalecimento de uma nova consciência. A consciência da negritude enquanto referência valiosa, imprescindível e central à nossa sociedade, assim como também a indígena. Rogo por mais atenção às camadas mais vulneráveis da negritude, às retintas, às que estão em situação socioeconômica mais vulnerável, às pessoas negras PcD. Rogo também por mais consciência das pessoas pardas que se esquecem ou não se interessam por conhecer suas referências pretas quando não foram ainda apagadas totalmente. Ser pardo também é ser filho da mistura, a vida e sentimentos pardos precisam ser mais resgatados e estudados. A referência parda, quando for curada socialmente de seus processos de violência, pode ser uma potência muito grande de conexão com a América Latina, a conexão por meio desse processo que esteve na formação de nossas sociedades, ainda que não falemos castelhano, temos em comum a experiência colonial.

No Dia da Consciência Negra, botemos a mão na consciência de que não é mimimi essa ser a população mais morta, mais presa, mais sub-remunerada, mais explorada sexualmente, em menos cargos de alto escalão e sub-representada politicamente. Coloquemos a mão na consciência, se é para ser dia da consciência humana, seja humano, não nos trate de maneira desumana, respeite e fortaleça a luta por direitos e tratamentos justos e igualitários. Isso não é um pedido, é um aviso, uma recomendação em prol da construção de uma sociedade mais digna e justa, pois as vidas e vozes negras importam, gritam e lutam. Os grilhões não nos cabem mais.