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(Millôr Fernandes)

quarta-feira, 1 de junho de 2022

Lugar de criança é na escola

Quarta, 1º de junho de 2022

Professora Fátima Sousa*

A Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei (PL) 3.179/2012, que regulamenta o ensino domiciliar no Brasil (homeschooling), em uma tramitação que dispensou previsões regimentais e não passou por comissões, sendo votado em regime de urgência urgentíssima. O projeto de lei altera o sistema educacional brasileiro; a escolarização é colocada no mesmo patamar da educação em casa, situando-se, portanto, na contramão das demandas sociais da educação, solidamente reconhecidas por todas e todos os maiores especialistas em educação do Brasil e do mundo, por mais escolas e pela ampliação do tempo de permanência, sobretudo diante da realidade socioeconômica da maioria das famílias de países em desenvolvimento.

O projeto aprovado fere, também, recomendações da UNESCO e o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) ao permitir que a educação básica seja ofertada, sob decisão e orientação dos pais ou responsáveis, na própria residência, mediante uma “comprovação de aptidão”. Os pais ou responsáveis, assim, seriam transformados em uma espécie de tutores educacionais com obrigação de cumprir componentes curriculares mínimos referentes ao ano escolar da criança. De uma forma que podemos considerar confessional, a base política do projeto exime-se de responsabilidade ao incluir no texto uma alteração do Código Penal para que pais ou responsáveis optantes pela educação domiciliar não incorram em crime de abandono intelectual de seus filhos ou dependentes – “esquecimento” que expõe, quase obscenamente, o desprezo daqueles que elaboraram o projeto e votaram em sua aprovação pela garantia da educação infantil de qualidade.

Ao equiparar o ensino domiciliar ao ensino escolar, o governo demonstra desconhecer que a formação escolar não é apenas cognitiva, de oferta e aquisição de informação. A escola é elemento fundamental no processo de socialização das crianças, por colocá-las em relação com crianças de outras famílias, com outros valores, por fazê-las perceber diferenças e aprender a respeitá-las. Isso, sabe-se bem, precisa começar cedo. O governo desconhece, portanto, que a escola é o espaço primordial da formação cidadã. Ou talvez seja exatamente por isso que pretende enfraquecê-la.

É preciso ainda resguardar o papel da escola como uma instituição central para a rede de proteção de crianças e adolescentes. Nas escolas, através da assistência social fornecida aos estudantes, identifica-se a presença ou não de trabalho infantil, se há ausência de garantias nutricionais, se ocorre violência doméstica, abusos ou agressões sexuais. Com a escolarização faz-se a inserção de estudantes com deficiências, que são acompanhados por profissionais capacitados. É por meio da escola que se podem aplicar programas para o desenvolvimento de habilidades e saberes especiais, a exemplo do Programa Saúde na Escola, que visa a uma educação para a promoção da saúde, o autocuidado e o cuidado de cada um por sua comunidade.

Segundo um recente levantamento do CESOP/Unicamp e do Datafolha, 8 em cada 10 pessoas defendem o direito de frequentar a escola; 78% consideram que os pais não devem ter o direito de tirar seus filhos da escola e ensiná-los em casa. Nove em cada dez pessoas concordam que as crianças devem ter o direito de frequentar a escola mesmo que seus pais não o queiram. Mas nada disso importa aos defensores do homeschooling, os quais cinicamente usam o termo inglês para dar um ar de internacionalidade à proposta, ao tempo que afirmam tratar-se de um modelo já aceito como opção em muitos países desenvolvidos. Omitem, contudo, que nesses países o que se fez antes foi garantir escola em tempo integral para todas as crianças, e que na maioria deles o homeschooling representa raras exceções, rigorosamente avaliadas por um sistema competente.

Remover as crianças da escola em sua primeira fase de aquisição de conhecimentos é privá-las de interações fundamentais vividas na escola para seu desenvolvimento cognitivo e relacional, com graves consequências futuras. Mas parecem ser exatamente tais consequências o que busca mais essa ferramenta ideológica do atual governo, que em seu apagar das luzes se apressa em “urgência urgentíssima” para deixar mais um triste legado.

O projeto representa o desfecho de um governo que desde as primeiras semanas atuou para destruir um já fragilizado sistema educacional brasileiro, congelando salários de professores, perseguindo aqueles que se insurgiam contra os desmandos, subtraindo direitos, reduzindo de forma nunca vista no período democrático os investimentos em educação. Do ponto de vista de seus fundamentos, o projeto serve como declaração de ignorância da ciência educacional e como declaração política explícita da intenção de transformar o país em um reservatório humano de mão de obra inculta, barata, acrítica e submissa.

Não haverá outra eleição como esta. Será o ano da superação de um flagelo político que se abateu sobre nossa história. Para isso, será preciso eleger para o corpo legislativo candidatas e candidatos sensíveis e compromissados com uma educação pública de qualidade e que tenham também grande capacidade de articulação e mediação. Pois não sairemos deste lodaçal de obscurantismo sem construir um amplo pacto social, com um profundo estudo das possibilidades de financiamento e envolvimento de todos os setores da sociedade, públicos ou privados, para que, enfim, toda e cada criança brasileira tenha a chance de vivenciar a riqueza que a educação escolar, e só ela, é capaz de oferecer. Lugar de criança é na escola.

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*Fátima Sousa

Paraibana, mais de 40 anos dedicados a saúde e a gestão pública; 
Professora e pesquisadora da Universidade de Brasília;
Enfermeira Sanitarista, Doutora em Ciências da Saúde, Mestre em Ciências Sociais; 
Doutora Honoris Causa;
Implantou o ‘Saúde da Família’ no Brasil, depois do sucesso na Paraíba e em São Paulo capital; 
Implantou os Agentes Comunitários de Saúde;
Dirigiu a Faculdade de Saúde da UnB: 5 cursos avaliados com nota máxima;
Lutou pela criação do SUS na constituinte de 1988;
Premiada pela Organização Panamericana de Saúde, pelo Ministério da Saúde e pelo Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde.