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(Millôr Fernandes)

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

ENTREVISTA COM A PROFESSORA FÁTIMA SOUSA, CANDIDATA A DEPUTADA FEDERAL PELO DF, Nº 5050

Segunda, 26 de setembro de 2022
Professora Fátima Sousa, candidata a deputada federal pelo PSOL, 5050


ENTREVISTA COM A PROFESSORA FÁTIMA SOUSA


Fátima Sousa é uma paraibana, professora da Universidade de Brasília, onde foi Diretora da Faculdade de Ciências da Saúde-FS/UnB, na qual coordenou o Núcleo de Estudos de Saúde Pública-NESP/UnB, implantou o Mestrado Profissional em Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências da Saúde, e ajudou a criar o campus da UnB na Ceilândia. Mestra, Doutora em Enfermagem e gestora pública, Fátima Sousa foi uma das criadoras do SUS, pelo qual lutou para que fosse criado na Constituinte de 1988. Ela coordenou, em todo o Brasil, o Programa de Agentes Comunitários de Saúde-PACS e contribuiu para a implantação da Estratégia Saúde da Família-ESF. Fátima Sousa dedica-se, há mais de quarenta anos, à saúde e à gestão pública. Em 2018, foi candidata a Governadora do Distrito Federal pelo PSOL e, atualmente, é candidata a Deputada Federal pelo mesmo partido político.


No decorrer desta entrevista ao Gama Livre, concedida a Salin Siddartha, a Professora Fátima Sousa falou a respeito da defesa dos direitos das mulheres e da carga de machismo que recai sobre elas, alertando para a necessidade de assegurar-lhes empregabilidade, de investir na participação da mulher como protagonista no desenvolvimento da ciência e como força-de-trabalho qualificada, incluindo as mulheres trans, que, infelizmente, não têm acesso a emprego nem a educação, haja vista a discriminação social que sofrem. Disse que, se for eleita deputada federal, se propõe a enfrentar o Centrão a fim de aprovar mais recursos para a saúde, já que esse setor vem sendo constantemente desfinanciado na execução dos orçamentos anuais.


Fátima Sousa apontou-nos o fato de que as universidades públicas vivem uma crise crônica e profunda que se agudiza cada vez mais, assim como narrou os problemas que envolvem a dificuldade de acessibilidade e permanência dos estudantes no ensino superior; na opinião dela, falta democratização nos espaços de gestão das universidades públicas. Declara-se uma mulher democrática, humanista, que preza pela paz, dialógica, competente e agregadora que, como deputada federal, irá dedicar-se a contrapor-se ao negacionismo ultradireitista, apresentando propostas civilizatórias.


Para Fátima Sousa, não se pode abrir mão do dispositivo constitucional que consagra o Estado brasileiro como um Estado laico; portanto, deve-se respeitar a fé de cada um às diferentes formas de expressão religiosa, dizendo não a qualquer tipo de violência resultante de intolerâncias. Segundo ela, o presidente Jair Bolsonaro enuncia uma indigna falsidade ao falar que governa apenas para a maioria, pois, ao assumir essa posição, ele omite que só governa é para o seu grupo de interesse. A seu ver, é preciso requalificar o Congresso Nacional para que os parlamentares votem a favor daqueles que ainda não têm acesso permitido na inclusão social, como é o caso da população negra, das mulheres desempregadas, das mulheres do campo, dos agricultores familiares, e que se pare com essa confusão conceitual de que são minorias as populações negras, LGBTQI+ e as mulheres, que sempre foram colocadas em situação de vulnerabilidade, porque essas populações são, em si mesmas, maiorias pela própria recepção social que elas angariam em suas lutas.


Fátima Sousa inclui a questão do meio ambiente na sua agenda histórica, salientando que o projeto de reforma sanitária brasileira tem no meio ambiente seu eixo estruturante e desenvolve o raciocínio de que não ocorre desenvolvimento do País com a destruição de nossas matas, com a poluição de nossos mares e rios. Cita que o Congresso Nacional e o governo é que criam essa polêmica falsa e desmedida de que é preciso acabar com a Amazônia e com o cerrado para garantir o progresso.


A entrevistada falou sobre sua presença, há décadas, no movimento que estabeleceu o modelo de atenção diferenciada à saúde, contou como o SUS foi construído e narrou a importante participação dela nessa construção que trouxe diversos avanços; mas ela também expôs que existem diversos desafios que traduzem o SUS como uma obra ainda incompleta, que clama para que os governos parem de desfinanciá-lo. Fátima Sousa destaca, também, o desmantelo que acontece quando se põe alguém para gerir um sistema de saúde que lhe é desconhecido, tal qual ocorreu com o mau exemplo de o governo atual ter nomeado para o cargo de Ministro da Saúde um militar que nunca tinha, sequer, ouvido falar em sistema de saúde.


A seguir, publicamos a entrevista na íntegra.


Salin Siddartha — Como você vê uma política de inclusão da defesa dos direitos da mulher?


Fátima Sousa — Essa é uma agenda central para qualquer governo democrático e popular, qual seja a de ter a mulher na centralidade das políticas públicas. Quando eu coordenei o Núcleo de Estudos de Saúde Pública, criamos dois observatórios dedicados às políticas públicas das mulheres: o da mulher negra e o das mulheres que viviam no plantio da cana-de-açúcar, ou seja, na agricultura familiar em geral, mas com destaque para a da cana-de-açúcar; então, defendo a centralidade da política da mulher, tanto para a empregabilidade quanto para os processos educacionais (desde as creches até o ensino superior). Porque a mulher, não só do ponto de vista quantitativo, pois somos mais de cinquenta por cento da população brasileira, inclusive as mulheres idosas também constituem a maioria, o que deve levar o Estado brasileiro a ter de prestar-lhe a devida atenção com relação a políticas públicas para elas. Isso, sem falar nos desafios que estão postos em nossa condição de gênero; por exemplo, a mulher ganha menos do que o homem, embora exercendo o mesmo ofício, e tem uma carga de trabalho triplicada, porém, na representação política, seu papel é, ainda, ínfimo.


Então, respondo que a centralidade de qualquer política pública, em qualquer Estado de Direito, tem de ser da mulher, tanto sob o ponto de vista quantitativo quanto qualitativo, e na defesa de que a mulher exerça diversos papéis na sociedade brasileira.


Salin Siddartha — Infelizmente, nota-se que ainda existem mulheres que introjetam em si muito machismo. Por exemplo, é comum verem-se mulheres dizerem para o filho que chora, quando, ainda criança: “O que é isso?! Homem não chora!” Isso também é uma forma de machismo, pois, desde cedo, começa a colocar o machismo na cabeça do menino. Que trabalho você acha que tem de ser feito, uma vez eleita deputada federal, a fim de mudar a consciência dessas mulheres que ainda introjetam muito machismo em si?


Fátima Sousa — É importante destacar que não se pode culpar a mulher pela carga cultural desse machismo, que é estrutural. Logo, ela acaba reproduzindo aquilo que foi construído pela sociedade, afinal ela foi formada com essa visão de mundo pelos próprios pais. Para a resolução desse problema, a saída é que se invista na educação, melhorando a formação dos jovens desde a creche, de maneira que meninos e meninas convivam sabendo que são diferentes, contudo, levando em consideração que essa diferença é física, todavia tenha de haver igualdade na sua construção societária. Por isso, não podermos culpar a mulher pela reprodução do machismo, porque ela é um tanto quanto vítima dos homens por essa cultura estruturada há milênios.


Esse é o caminho a que eu me dedico, qual seja o de produzir essa formação que, como dizia Paulo Freire, deve ser feita de maneira igualitária, agregando todos, juntos, na compreensão dessas diferenças, já que homens e mulheres são iguais perante não só à lei, mas também com relação aos valores e acesso aos bens da sociedade, porém diferentes nas suas escolhas e condições de vida. A mulher precisa sair do lugar de vítima, formar-se a ponto de não ser reprodutora do machismo, e precisa ter uma escola emancipatória, que compreenda as questões de gênero e de igualdade.


Salin Siddartha — Cite alguns projetos de lei que você já tem em mente propor, caso seja eleita deputada federal.


Fátima Sousa  Em primeiro lugar, assegurar empregabilidade para as mulheres, principalmente para as mulheres do campo, quilombolas, ribeirinhas, ou seja, formular políticas que deem conta das iniquidades, inclusive territoriais regionais; essa é uma proposta que me agrada muito. Em segundo lugar, investir enormemente na participação da mulher na ciência, obter recursos para que a mulher preta possa ter acesso, desde o ensino básico, fundamental, médio, superior, e as universidades públicas, para ser compreendidas no processo da ciência e do seu desenvolvimento, com o compromisso de ampliar nossa soberania nacional e nossas relações internacionais, ocupando a mulher um lugar de protagonismo. Em terceiro lugar, assegurar uma agenda, que me é muito cara, pois nela eu milito há décadas, que é ser a mulher, cada vez mais, a maior força-de-trabalho, que, inclusive, nós somos na área da saúde, na qual destaco sermos a principal força de trabalho na enfermagem, cuja maioria é constituída de mulheres (somos dois milhões e quinhentas mil trabalhadoras).


Portanto, eu pretendo formular essas leis e cobrar, por parte do Poder Executivo, suas execuções, bem como recursos para o fortalecimento da saúde, tendo a mulher como protagonista.


Salin Siddartha — Os transexuais e travestis sofrem uma imensa carga de discriminação, especialmente com relação a vagas de emprego. Como você vê a possibilidade de um projeto de lei que obrigue o poder público a oferecer uma cota, mesmo que pequena, de obrigatoriedade de contratação de transexuais e travestis?


Fátima Sousa  Essa também é uma agenda necessária. As mulheres trans estão na rua, colocando-se à disposição, inclusive, das candidaturas, Brasília tem até mesmo uma mulher trans como candidata, assim como o nosso coletivo do PSOLdispostos a se apresentar e colocar sua cara e a disputar espaço na sociedade das cidades brasileiras. Assim, essa é uma agenda que nós temos de enfrentar.


Recentemente, fizemos uma pesquisa, que ainda não foi publicada, sobre a população trans, sobre as mulheres trans, e os dados resultaram sendo um horror; eu ainda não posso antecipar porque a pesquisa ainda está em análise, mas eu posso dar algumas pistas: as mulheres trans não têm acesso a emprego nem a educação, elas são discriminadas quando chegam ao atendimento dos serviços de saúde e quando buscam atendimento nos serviços de assistência social como um todo. Por isso, uma vez eleita deputada federal, certamente esta será uma agenda a que eu vou-me dedicar, com três questões mínimas que eu acho que precisam ser destacadas no Congresso: acesso à educação, ao emprego e à saúde.


Salin Siddartha — Como deputada federal, como você pretende agir com relação aos cortes na saúde?


Fátima Sousa — Todos sabem que o Orçamento é aprovado no Congresso Nacional, e que a disputa para a sua aprovação é muito renhida, muito difícil, em razão de que ela é comandada, hoje em dia e historicamente, pelo Centrão e pelo baixo clero. Todavia, espero que a nossa nova bancada seja forte no campo democrático e progressista, e com a qual vou reunir-me para que possamos enfrentar o Centrão e aprovar no Congresso mais recursos para a saúde. Eu digo mais recursos para a saúde porque, desde a criação do Sistema de Saúde do SUS, que ela é subfinanciada. Nós temos na Constituição Brasileira a necessidade de trinta por cento da seguridade social destinados à saúde, isto é, trinta por cento do Orçamento da União destinados à seguridade social e parte dos recursos para a saúde. Isso nunca foi cumprido. Por isso, eu vou mexer nessa questão, quando deputada eu for.


Ano após ano da execução do Orçamento, nós não vamos deixar que eles efetuem cortes na saúde, posto que já somos desfinanciados e, com a pandemia, essa situação foi cada vez mais agravada, visto que nós estávamos tratando dos problemas já existentes e, agora, sobrevieram as sequelas da pandemia e um conjunto de problemas reincidentes, como endemias que permanecem fortemente no Brasil e que precisam ser excluídas do mapa brasileiro, a exemplo da dengue, zicavírus, chicungunha. Brasília mesmo é um exemplo disso, pois ela convive diariamente com sequelados da pandemia, com a qual conviveu gravemente durante sua vigência, e convive com as doenças crônicas, como câncer e tantas outras doenças, motivo pelo qual vou ficar de olho para disputar um Orçamento da União dedicado à saúde e evitar que haja cortes cada vez mais graves. Logicamente, isso não é tarefa de uma única parlamentar, no entanto nós vamos fazer uma frente ampla em defesa da saúde na Comissão de Seguridade Social e Família, para que possamos assegurar, no mínimo, dez por cento da receita bruta da União dedicada à saúde — isso é uma luta histórica nossa.


Salin Siddartha — Como deputada federal, como você pretende agir com relação à gestão da universidade pública?


Fátima Sousa  As universidades públicas, no momento, vivem uma crise profunda, que é crônica e se agudiza cada vez mais pelo fato de que, assim como acontece na saúde, a cada exercício orçamentário, o Congresso Nacional, não obstante aprovar a peça do Orçamento, o governo corta os recursos da saúde e da educação. Consequentemente, as universidades públicas brasileiras, e, nesse particular, eu falo com mais propriedade em relação à Universidade de Brasília, ficam sem nenhuma margem de recursos para levar a efeito suas gestões, sobretudo nos mais diversos investimentos — alguns deles vitais para a existência da universidade.


É importante ter o acesso dos estudantes ao ensino superior, mas também é importante que eles  permaneçam, contudo os estudantes não têm condição de permanência em razão de pagarem caro no restaurante universitário —de modo que é importante haver uma política de acesso à alimentação—, vivem em condições precárias nas residências universitárias — já que eles precisam ter condições dignas de moradia, em um ambiente confortável, onde eles possam estudar — e eles tenham uma biblioteca, de certa forma, com um acervo que, no caso da UnB, é considerável em comparação com as demais universidades, porém que precisa acompanhar o desenvolvimento tecnológico que se impõe ao mundo e ao Brasil. Então, nós não podemos deixar que ocorram mais cortes, a gestão fica complicada por não ter recursos para investimentos e porque não atende ao que é a nossa razão de ser, que são os estudantes.

 

Outra questão que, para nós, e, para mim, em especial, é muito cara, é a da democratização nos espaços de gestão das universidades públicas. As reitorias, neste período de pós-golpe institucional, têm sido, cada vez mais, geridas por pessoas da direita, por conta de um expediente que já deveria ter sido extinto há décadas, que é a tal da lista tríplice. Eu, por exemplo, me submeti, no último pleito, a votação para ser reitora da Universidade de Brasília, tendo ficado proporcionalmente no terceiro lugar; entretanto, se eu não fosse uma mulher do campo da esquerda, convicta de que tenho o papel de aprofundar a democracia da nossa Universidade, o Presidente da República poderia ter-me nomeado ou nomeado o terceiro da lista. Durante aquele pleito, os dois últimos posicionados assinaram a assertiva de que o reitor ou reitora eleita iria tomar posse, no entanto nem todos assim o fizeram nas diversas universidades públicas, e eu dou como exemplos a Universidade Federal da Paraíba, que tem um interventor na reitoria, a Universidade Federal do Espírito Santo, que também é gerida por um interventor, o mesmo ocorrendo no Mato Grosso e em várias reitorias, no mapa do Brasil, que tiveram como reitor o que foi escolhido como terceiro da lista, alguns sequer obtiveram cem votos, e, no entanto, mesmo assim, o Presidente da República efetuou tais nomeações. Desse modo, uma das pautas que terei, caso eleita seja deputada federal, é a de acabar com esse expediente da lista tríplice.


Salin Siddartha — De alguns poucos anos para cá, no Brasil, extremismos começaram a apelar para uma divisão entre as pessoas, tentando desconsiderar quem não seja partidário do bolsonarismo, de modo tal que, hoje em dia, existem pessoas que têm medo de sair à rua com a bandeira ou adesivo plástico do seu candidato no carro, particularmente do Lula, com medo de serem agredidos ou, até mesmo, mortos. Como você enxerga essa situação? Você acha que isso irá persistir? Você acha que, com o fim do governo de Bolsonaro isso tenderá a acabar? Enfim, o que uma deputada federal poderá fazer no decorrer do mandato para ajudar a que isso seja extinto?


Fátima Sousa – O deputado federal tem que estar no lugar certo, representando os que o elegeram. Assim sendo, quem votar na Professora Fátima sabe que vai votar numa mulher democrática, humanista, que preza pela paz, numa mulher que é capaz de integrar as pessoas, numa mulher dialógica e, portanto, uma mulher com competência, que exercita esses valores desde sua presença em sala de aula, em suas pesquisas e na prática da cidadania, em suma, esses são os valores que a Professora Fátima tem em sua vida e vai levá-los para o Congresso Nacional e para onde ela estiver, seja na sala de aula, seja nas suas pesquisas, seja nas ruas, seja na militância, ou, melhor dizendo, eu tenho uma raiz de formação cristã que me conduz para esses valores; em todos os passos que eu assumo, eu sou uma pessoa assim, e sempre aprofundarei esses valores em que acredito. Agora, quando se fala no conjunto da sociedade brasileira, Salin, é importante entender que, às vezes, confundem o extremismo com relação ao lugar que a pessoa ocupa; por exemplo, você e eu estamos num lugar em que todos têm de ter saúde, educação, emprego, oportunidades na sociedade. A riqueza da sociedade tem de ser distribuída, todavia o lado oposto acha que não, haja vista ele prezar pelo mercado, por uma falsa ideia de meritocracia, pela ilusão de que o indivíduo é capaz de superar, sozinho, suas próprias desigualdades — que são criadas pelo Estado. Logo, o lado que se nos opõe cria uma narrativa com o intuito de confundir o pensamento da sociedade a ponto de que ela pense que nós somos extremistas —nós de um lado, eles de outro—, todavia, opositores somos, mas com relação aos projetos que queremos criar para a sociedade, diferente do que eles cogitam estabelecer, isso é o que nós somos; nossos projetos têm um conjunto de valores que eles não querem, pois o mercado, para eles, é a mola central do desenvolvimento do País, e nós temos, como mola central, a educação —com as pessoas bem educadas—, com capacidade de pensar e entender a diversidade de pensamentos existentes e a diversidade que a sociedade brasileira apresenta com suas variadas cores e condições. Portanto, são, nesse sentido, polos opostos.


Isto posto, a sua pergunta me leva também a fazer o seguinte comentário: carregados dessa incapacidade de dizerem, claramente, que país eles querem, nota-se que o que nossos opositores têm em vista é a vontade de fazer o Brasil ser o país da violência, que busque eliminar a população LGBTQI+, que elimine o maior partido político que o País construiu no Brasil, na América Latina e no restante do mundo, que é o Partido dos Trabalhadores, que não respeite o nosso partido, o PSOL, que é um partido necessário aos tempos atuais, que não respeite a necessidade de repensar o processo da industrialização nos tempos de hoje e novas escolas aptas para este tempo atual, que não aceite novos processos formativos pedagógicos necessários a esta época, que não admita nova mentalidade de inserção de trabalhadores no mercado de trabalho compatível com a atualidade. É esse negacionismo que nossos opositores têm em mente.


Assim, o PSOL está na Câmara Federal dedicando-se a contrapor-se a esse negacionismo, porém não disputando ódio, discórdia vazia, misoginismo, machismo. Com esse intuito, nós vamos apresentar propostas civilizatórias, reafirmando nossos valores. Por conseguinte, polarizações desde sempre existiram, mas, acima de tudo, deve-se perguntar que país queremos construir junto aos mais diferentes espectros da sociedade brasileira, aceitando a todos que estão compreendidos na diversidade, fazendo-o de forma generosa para com todos, pacificamente, de maneira empática, acolhedora, ainda que eles, nossos opositores, comportem-se de maneira adversa.


Desse modo, meu comportamento como parlamentar será o de levar para a Câmara dos Deputados quem eu sou.


Salin Siddartha — Nunca se viu no Brasil tanta intolerância religiosa como a que se vê sendo praticada hoje em dia, substancialmente com relação às religiões afrodescendentes: quebras de estátuas e imagens de orixás, depoimentos mentirosos sobre essas religiões, precipuamente por parte de determinado segmento de uma determinada religião, que prefiro não declarar aqui. Como candidata a deputada federal, como você acha que isso pode ter fim ou, pelo menos, ser minimizado?


Fátima Sousa — Em primeiro lugar, não se pode abrir mão do dispositivo constitucional que consagra que o Estado brasileiro é um Estado laico. Em segundo lugar, temos que respeitar a fé de cada um e as diferentes formas de expressão religiosa, e dizer não a qualquer tipo de violência. Observamos o governo atual levar para as suas diversas instituições, como para o Palácio do Governo, para o Congresso Nacional como um todo pessoas que vão lá celebrar cultos, apesar de não poder, pela própria razão de que o Estado é laico. Em cada momento do exercício do meu mandato, vou reafirmar que as religiões são necessárias, por causa de as pessoas precisarem expressar suas mais variadas crenças, e que o Estado precisa acolher as crenças religiosas e protegê-las. A fé de cada um é um direito individual e o Estado não pode pôr mão firme na crença das pessoas, de suas famílias e de suas comunidades. O que quero dizer é que temos de respeitar essa diversidade.


Salin Siddartha – O Presidente Jair Bolsonaro disse várias vezes que governa apenas para a maioria, que é o que importa para ele, e que a minoria não deve ter direito a voz; querendo dizer, praticamente, que a minoria deve-se resumir à sua pseudoinsignificância. Como candidata a parlamentar, como você se posiciona quanto a essa visão do Presidente?


Fátima Sousa – Essa afirmação dele é falsa quando fala que governa apenas para a maioria. Até porque ele dá a entender que governa é para seu grupo de interesses. Nesse sentido, o Parlamento precisa ser requalificado. Quando se procura compreender os atuais representantes da Câmara Federal e do Distrito Federal, vê-se que eles são totalmente dedicados a cumprir os ditames de Bolsonaro e, no DF, de Ibaneis, devido ao fato de que todas as matérias que chegam àquelas Casas são aprovadas com muita facilidade. Oitenta por cento dos parlamentares do Distrito Federal votaram com a PEC do Veneno, com a PEC da Reforma Trabalhista, votaram mal na demarcação das terras indígenas, isso significa que eles têm compromissos com esse governo que diz que “está administrando para a maioria”, mas, na verdade, ele está é agradando o seu próprio grupo político.


Outro aspecto que tem de ser colocado aqui é que precisamos requalificar o Congresso, em especial a representação do DF (por isso é que coloquei o meu nome como candidata) para que votemos a favor daqueles que ainda não têm acesso permitido na inclusão social, ou seja, nós precisamos estar do lado de todas as políticas dedicadas à população negra, temos que estar a favor de todas as políticas apresentadas, naquela Casa, em prol das mulheres desempregadas, das mulheres do campo e da agricultura familiar. Temos que ter sensibilidade para a pauta ligada a todas as políticas favoráveis à população LGBTQI+, às mulheres e homens trans. Por isso é que eu digo que esses segmentos da população, que alguns dizem ser minoria, são, em verdade, maioria quando querem se apresentar para a sociedade, colocando-se da seguinte forma: “Eu existo, eu tenho direitos! Eu vivo em um país cuja Constituição me assegura ter saúde, moradia, educação, alimentação, vestuário e eu não vou abrir mão desses direitos!”. Em dizendo isso, nós temos que considerá-los como maioria. Este Presidente os trata como minoria para poder eliminá-los, tirando-lhes todos os espaços que poderiam fazer com que eles tivessem seus desenvolvimentos de forma integrada, legando-lhes uma participação ativa na sociedade.


Então, tem-se que parar com essa confusão conceitual de que essas populações, que sempre foram colocadas em situação vulnerável, sejam minorias. Elas são pessoas que fazem jus a um direito igual na sociedade, para as quais temos que ficar atentos, dispostos a não deixá-las cada vez mais à margem da produção da riqueza, do desenvolvimento, da ciência, da educação, isto é, da vida viva na sociedade brasileira. Digo isso, afirmando que esse segmento da população é a maioria em si mesma. É importante reafirmar essa pauta.


“Ah! A população LGBTQI+ é uma minoria!”


Não!


Ela é, em si mesma, maioria pela sua própria condição.


Salin Siddartha — Como você pretende tratar a questão do meio ambiente?


Fátima Sousa — Essa é uma agenda histórica nossa. Eu não compreendo como há governos e parlamentares que dão as costas para a pauta do meio ambiente. Em primeiro lugar, pelo motivo de nós termos nossa Amazônia como o pulmão do Brasil e do mundo, e também pelo fato de nós termos, aqui, nosso cerrado, que já tem mais de cinquenta por cento de seu bioma destruído, em um processo de destruição que se dá governo após governo — nossos governos não ficam atentos para a questão do meio ambiente.


Salin, é importante destacar que o projeto da reforma sanitária brasileira tem o meio ambiente como eixo estruturante, e nós sempre enunciamos a seguinte proposição: “Dize-me onde moras que nós te diremos quais são os processos de saúde e doença pelos quais a população local passa. Então, quando nós falamos do meio ambiente, nós estamos falando da água, do lixo, de uma política correta de coleta dos dejetos, em razão de a ausência dessas medidas provocarem doenças; nós estamos falando do verde, das árvores, do ar que respiramos, logo, qualquer parlamentar que se preze não pode dar as costas para a questão do meio ambiente. Inclusive essa pauta é importantíssima para a reafirmação de um conceito que é muito caro ao nosso partido: o ecossocialismo.


Não há desenvolvimento do País com a destruição das nossas matas, do nosso cerrado, com a poluição de nossos rios e mares. Portanto, qualquer país que procure ter um desenvolvimento sustentável e integrado tem que prezar pelo planejamento de uma política de meio ambiente, no sentido de que ele não somente seja preservado, mas também ser cuidado de forma sustentável.


O Congresso Nacional e os governos criam essa polêmica falsa e desmedida de que é preciso acabar com a Amazônia para garantir o progresso da vida dos próprios indígenas e de que se tem de acabar com o cerrado porque esses são impedimentos para o progresso. Ao contrário, o Brasil pode ser desenvolvido de forma sustentável, sem destruir coisa alguma do nosso meio ambiente.


Assim, parlamentares que se prezem por ter uma visão de mundo não podem entrar no Congresso, sequer na Câmara Legislativa, e ocupar espaço no Poder, sem ter a questão do meio ambiente como um aspecto que estrutura o desenvolvimento do nosso país.


Salin Siddartha — Tendo pertencido à equipe que instituiu o SUS, você teve papel fundamental e de muita importância na criação dele. Assim sendo, eu lhe pergunto se você acha que o SUS seja um projeto que já está totalmente finalizado ou crê que ainda tenha algo nele que mereça ser melhorado?


Fátima Sousa — Antes de tudo, quero demarcar que estou há quase quarenta anos no movimento que estabeleceu o modelo de atenção diferenciada à saúde. Ainda quando eu era secundarista, eu entrei no movimento de formação de um projeto de reforma sanitária brasileira, pois se via que o modelo que existia, naquela época, não funcionava, posto que era uma equação geometricamente invertida, que procurava cuidar da doença em vez de cuidar da saúde. Devo afirmar que estou nesse movimento de reforma sanitária brasileira, há décadas; basicamente desde o final da década de 1970, quando realizamos, na Câmara Federal, o primeiro simpósio que definiu os valores e princípios do que seria o Sistema Único de Saúde no Brasil, mas possuidor de princípios orientadores, e participei ativamente da 8ª Conferência Nacional de Saúde, ainda na condição de estudante de enfermagem.


Isto posto, nós construímos o SUS a partir da Constituição Federal (como se sabe, lá tem um Capítulo dedicado à saúde, mas o que é mais forte nesse Capítulo é o artigo 196, que dispõe ser a saúde um direito de todos e dever do Estado); depois vieram as leis infraconstitucionais, como a Lei Orgânica, que define o modo de organizar o sistema de saúde dentro do território brasileiro (em si mesmo tão diverso e complexo) e a Lei 8.142, que orienta o repasse dos recursos de forma descentralizada, a organização das conferências de saúde e os processos de planejamento, programação e ordenação do sistema em seu conjunto. Por conseguinte, avançamos em tudo isso, ou seja, o SUS é um avanço quando implanta agentes comunitários de saúde (que eu tive a honra de coordenar na Paraíba e, depois, no Brasil inteiro), é um avanço quando implanta as equipes de saúde da família, que, no Distrito Federal, é chamado de Saúde em Casa, é um avanço quando se descentraliza neste nosso país, por si mesmo tão diverso e complexo, é um avanço quando as universidades públicas brasileiras enfrentam um processo de reforma na formação dos trabalhadores da saúde, é um avanço quando se tem uma gestão qualificada, é um avanço quando cria o Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde e o Conselho Nacional das Secretarias Estaduais de Saúde. Desse modo, o conjunto da obra do SUS é um avanço, além disso é um avanço em termos da aplicação de tecnologias de organização do serviço, como o Programa Nacional de Imunização —que tentaram, agora, acabar, mas, por ele ser tão forte e enraizado, não conseguiram extingui-lo. 


Então, o SUS nos trouxe diversos avanços, não obstante tenhamos diversos desafios, o que me leva sempre a dizer que o SUS é uma obra incompleta e que, por isso, como tudo que está em construção, ainda é um dever a ser cumprido, haja vista ter apenas 32 anos de existência, se comparando com o que tem Cuba, Canadá ou o Reino Unido, que são sistemas universais que vêm sendo construídos há muito mais décadas.


Afinal, o que se precisa fazer no SUS? Principalmente, é preciso que os governos tomem a decisão política de não mais desfinanciar o SUS (é necessário ter recursos para o SUS, como têm esses países que mencionei, e que sejam sustentáveis, no sentido de ninguém mexer no orçamento da saúde, e seja de forma tendente a crescer e não decrescer —ano após ano, nas peças orçamentárias, sempre são feitos cortes na verba destinada à saúde). É preciso seguir investindo na formação dos trabalhadores da saúde (não é compreensível que se formem trabalhadores da saúde nas instituições de ensino superior públicas, ou mesmo nas particulares, visando atender ao mercado espoliador do SUS, é necessário ter clareza de quem são os médicos, quem são os enfermeiros, quem são os assistentes sociais, quem são os odontólogos, quem são os farmacêuticos, quem são os nutricionistas; e formados para quem? Será que são formados para servir ao maior sistema de saúde do mundo, que é o SUS?)


Nosso Sistema Único de Saúde é um desafio no que tange à sua gestão, não só com relação ao mau gerenciamento, pois não se deve pôr alguém para gerir um sistema de saúde que lhe é desconhecido. E, aí, eu queria destacar o mau exemplo da nomeação, em plena pandemia, de um Ministro que era militar, que nunca tinha ouvido falar em sistema de saúde, e, mesmo assim, foi colocado para gerenciar a maior máquina sistêmica responsável por dar as diretrizes, o ordenamento, a orientação, o planejamento e estabelecer como o sistema iria funcionar naquela crise pandêmica. Foi a mesma coisa que me colocar para pilotar um jato ou para eu ser responsável pela segurança das fronteiras do Brasil: eu não vou saber nem chegar perto. Os gestores do SUS precisam saber o que é o SUS, e têm que ser trabalhadores da área da saúde, precisam ter sensibilidade com relação à gestão do SUS, e precisam saber acolher essa gestão, tanto para cuidar dos recursos humanos quanto para cuidar das relações interinstitucionais e da interação do sistema com as outras políticas públicas, porque não é possível gerir o SUS por si mesmo, em razão de o SUS precisar fazer essa integração com a educação, com a seguridade social, com o meio ambiente e com outros ministérios do governo federal e com outras tantas secretarias estaduais e municipais.


Em resumo, Salin, eu digo a você que o SUS tem obtido vários ganhos nesses seus 32 anos de existência: descentralizou o atendimento à saúde, implantou agentes de saúde da família, organizou a atenção básica, revitalizou os hospitais, ampliou a força-de-trabalho na saúde com a concepção de um novo modelo de atenção. Mas, por outro lado, temos desafios quanto ao financiamento, à gestão, à formação profissional, à integração com as diversas políticas públicas.