Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)
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quarta-feira, 2 de julho de 2025

O labirinto do Brasil por ser

Quarta, 2 de julho de 2025

“Nós, brasileiros, somos um povo em ser, impedido de sê-lo.”
– Darcy Ribeiro, O povo brasileiro.
 

Por Roberto Amaral *
 
A ordem político-institucional herdada da reconstitucionalização de 1988 foi posta em recesso com o impeachment de Dilma Rousseff. Morria ali a Nova República anunciada por Ulysses Guimarães e Tancredo Neves. O golpe de Estado de 2016 se consolidou com o regime-tampão do vice perjuro, ponte para a ascensão do neofascismo, pela vez primeira no Brasil a escalar o poder pela via eleitoral.

O presidencialismo espatifa-se como bola de cristal caída ao chão e, com seus estilhaços, a direita concerta o quebra-cabeça como novo Leviatã: poderoso mostrengo que devora as instituições republicanas e impõe a ingovernabilidade como estágio preparatório do caos, indispensável para a revogação do que ainda podemos chamar de “ordem democrática” – frágil, nada obstante sua permanente conciliação com o grande capital, no que se esmera o atual Congresso, implacável no desmonte do que quer que seja que possa sugerir um Estado de bem-estar social.

Esta é a circunstância que nos domina: um Poder Executivo acuado, impedido de exercer o dever da governança; um Legislativo que não arrecada, mas é senhor dos gastos; uma democracia representativa que prescinde da soberania popular. Um Executivo se esvaindo numa sangria de poder que parece não ter fim, prisioneiro de um Congresso abusivamente reacionário, na tocaia contra qualquer sinal de avanço civilizatório. Em seu nome fala e age sua escória, chorume poderosíssimo que não cessa de crescer em número de militantes, em ousadia e em chantagens contra o governo. O quadro funesto se completa com uma Faria Lima descolada do país e de seu povo: seus interesses deitam raízes em Wall Street.

sexta-feira, 12 de julho de 2024

Saúde privada: poder, captura e rédea solta

Sexta, 12 de julho de 2024

Sete Irmãs dominam a medicina de negócios no Brasil. Quem são. Como estão presentes na teia que controla a economia do país – e quais seus laços com fundos e corporações globais. Por que o Estado precisa reduzir drasticamente seu poder


OUTRASAÚDE                              SAÚDE E NEGÓCIO

Publicado no OUTRASAÚDE em11/07/2024

Imagem: Michael Byers (Mother Jones)

Por Eduardo M. Rodrigues e Ladislau Dowbor

“Não é nada pessoal, são apenas negócios”. Essa frase contribui para sintetizar a ideia central do artigo: uma análise da estrutura e da dinâmica, sob o ponto de vista do controle acionário em rede, dos principais grupos de saúde privada que atuam em território brasileiro. A dimensão e a capacidade estratégica desse setor econômico resultam de um comportamento empresarial onde os negócios em si, e os interesses específicos de seus proprietários, são o ponto central. Eufemisticamente chamados de “saúde suplementar”, transformaram-se justamente no inverso, isto é, a saúde privada converteu-se em campo hegemônico no país. Como veremos, a razão e os valores se invertem e a Saúde Pública, com toda sua essência Coletiva, passa a ser suplementar: o Sistema Único de Saúde (SUS) aprofunda sua queda na disputa da política de saúde no país. Perde principalmente, como sempre, a maioria, o povo que depende do atendimento público para se manter vivo (nota 13). Por outro lado, corporações da saúde privada acumulam lucros1 e seguem operando fusões colossais que resultam em poder e concentração ainda maiores (notas 2,3).

Nesse cenário, prevalece o oligopólio de sete holdings, que domina não só a saúde privada no Brasil, mas também compõe reduzidíssima e poderosa classe na liderança e comando decisivo da economia brasileira. Como dito, os movimentos do setor nos últimos anos são preocupantes no sentido de aprofundarem a oligopolização. No momento da finalização da redação do presente artigo, a Amil e a Dasa consolidam fusão de hospitais (nota 4), o que fez com que as ações dessa última disparassem 13,69% (nota 5). Outras operações, também em data próxima à exposta anteriormente, que envolvem a Oncoclínicas, Banco Master, Alliança, Amil, Dasa, Rede D´Or e Bradesco (nota 6), confirmam a tendência de concentração ainda maior (notas 7,8). O problema é que não se trata da produção de perfumes, mas de um serviço essencial. Da mesma forma que não vemos efetivas políticas nacionais e globais para evitar o apocalipse climático que se aproxima, a Saúde Coletiva é tratada como passatempo de programa dominical de auditório.

Em 2011, o instituto de pesquisa suíço ETH publicou o estudo “A rede de controle corporativo mundial” (notas 9,12), no qual analisava quanto poder de controle cada corporação exerce sobre outras corporações, por meio de aquisições de ações e tomadas cruzadas de participação. O resultado é que surgiu a cadeia de controle de cada corporação, dentro de uma rede interativa. E os números impressionaram muito: 737 corporações apenas, no nível mundial, controlam 80% do mundo corporativo; 147 delas, o “núcleo duro” do poder, controlam 40%, com destaque para o setor financeiro.

No Brasil, uma das surpresas foi a descoberta de que o setor mais poderoso, sempre sob o ponto de vista do controle acionário em rede, é o de energia elétrica, sendo a principal empresa a Eletrobrás, agora controlada pelo trio LST (os bilionários Lemann, Sicupira e Telles). Outra surpresa foi constatar que o setor de intermediação financeira, os bancos, não estão em primeiro lugar, mas em segundo, o que é não uma posição desprezível. Na sequência de surpresas, verificamos que o setor de Saúde Privada está entre os primeiros mais poderosos na economia corporativa brasileira, que representa 63,5% do PIB. São 200 holdings que significam apenas 0,03% dos CNPJs ativos. Nessa elite das 200 corporações há grupos ainda mais privilegiados. O primeiro nível de concentração dessa rede de 6.235 empresas (que compõem as 200 holdings) é constatado quando vemos que apenas 20% delas (1.247 empresas) controlam 80% (5.820) de todas as conexões acionárias da rede (7.257). E a concentração continua: 1% (um por cento: 62 corporações ou holdings) das 6.235 empresas, dos 200 grupos, controla quase ¼ (21,7%) de toda a rede, de todas as 7.257 conexões acionárias. O presente artigo, sob essa lógica, busca entender a importância e o papel da saúde privada.

Métodos

Os dados são de natureza quantitativa e coletados do anuário “Grandes Grupos – 200 maiores” elaborado e publicado pelo jornal Valor Econômico (Valor Econômico, 2020). Foram estruturados em duas diferentes planilhas do tipo Excel para processamento relacional dos 7.257 vínculos acionários existentes entre as 6.235 unidades empresariais que formam os mencionados 200 grupos e processados pelo software Gephi para a produção dos grafos e estatísticas relacionais. No presente artigo, aplicamos a Análise de Redes Sociais (ARS) no nível do território brasileiro, além de inovarmos com um indicador sociométrico a mais (centralidade de intermediação), não empregado no estudo de Vitali (nota 9). Com esse fim, fizemos uso de estatísticas relacionais para medirmos e entendermos a economia corporativa modelada em rede, bem como para a visualização de sua topologia. Dessa forma, são três, essencialmente, as métricas aplicadas (nota 10): grau de saída, grau de saída ponderado e centralidade de intermediação. O grau de saída mede a quantidade de conexões que parte de cada nó de uma rede para outro(s); o grau de saída ponderado faz o mesmo, considerando o peso de cada conexão; a centralidade de intermediação calcula a capacidade que em uma rede o nó tem de ligar outros nós e até subgrupos, servindo como ponte. Todos esses três índices mediram o controle acionário da rede corporativa em território brasileiro composta pelos já mencionados 7.257 vínculos, pertinentes a cada uma das 6.235 unidades empresariais encontradas em nosso estudo. É importante sublinhar que os graus de saída fazem menção ao controle acionário direto de cada nó e a centralidade de intermediação consegue captar o controle indireto na medida em que identifica os nós-ponte. No exemplo abaixo, caso o nó central (no meio do grafo), deixe a rede ou perca uma conexão, a própria rede em si deixa de existir. Tal hipótese ilustra o potencial da centralidade de intermediação.
Figura 1 – Grafo com destaque para o grau de saída e centralidade de intermediação. Fonte: https://acesse.one/1EssN

O nó central (que está no meio da rede), na figura ao lado, se desaparecer ou perder, por exemplo, sua conexão, provocará o desaparecimento da rede e o surgimento de duas novas. Esse é um dos cenários possíveis para a compreensão da importância da centralidade de intermediação. A centralidade de intermediação é baseada na ideia do controle exercido por determinado ator a respeito das relações sobre outros atores. Quando, por exemplo, dois atores não são adjacentes (diretamente conectados), eles dependem de outros atores do grupo para suas trocas ou eventuais relações, especialmente de atores que se encontram no caminho entre eles e que têm a capacidade de interromper a circulação dos recursos (qualquer tipo de relação ou comunicação). Quanto mais um ator se encontra “no meio”, como ponto de passagem obrigatório por caminhos que outras pessoas (ou atores ou empresas) devem tomar para se encontrar, mais central ele será, desse ponto de vista. O nó com elevada centralidade de intermediação é um ator-ponte, é aquele que controla a comunicação na rede e a comunicação é a própria rede, isto é, sem comunicação não há rede. É o nó que controla os fluxos da rede; e quem controla os fluxos da rede, controla a rede. Um nó, com esse tipo de controle, pode ameaçar a rede e, eventualmente, coagi-la ou pressioná-la. Ainda na figura 1, observamos que o nó da parte superior do grafo possui cinco conexões, a mesma quantidade do nó que está no meio da rede, um pouco mais abaixo. Entretanto, este possui um poder maior na rede, pois controla seu fluxo, unindo os dois principais subgrupos da rede. Portanto, possuir poucas conexões não significa, necessariamente, ser um nó pouco importante. Transportando o raciocínio para nossa rede corporativa, a unidade empresarial que tiver a maior centralidade de intermediação e grau de saída será aquela que, individualmente, maior controle exercerá sobre a economia corporativa. Em outras palavras, podem chantagear o país, controlar e manipular a economia (corporativa) nacional de acordo com os próprios interesses privados.

Resultados

No grupo de 200 corporações há, no total, 16 ligadas à área da saúde: Aché Laboratórios, Amil, Bayer, DASA, Eurofarma, Fleury, Grupo NC, Hapvida, Hyperama Pharma, Notre Dame Intermédica, Novartis, Prevent Senior, Profarma, Raia Drogasil, Rede D’Or e Unimed-Rio. Dentre estas, há 7, que nomeamos como as Sete Irmãs da Saúde (SIS), no topo da área da saúde privada (Rede D´Or, DASA, Eurofarma, Notre Dame Intermédica, Amil, Hapvida e Aché Laboratórios) e, especialmente, também fazem parte do 1% que controla acionariamente quase ¼ de toda a economia corporativa brasileira14,15. Quer dizer, em conformidade com a dimensão do controle acionário em rede, constituem um oligopólio não só no próprio setor, mas na economia como um todo. As Sete Irmãs da Saúde (SIS), integrantes de um seleto clube, possuem esse poder no mercado da saúde privada e na economia corporativa nacional.

O petit comité da saúde privada e da economia nacional

As Sete Irmãs da Saúde (SIS) ao integrarem o 1%, por óbvio, também estão no topo dos 10% e 20%, conforme a tabela 1 abaixo. Nela, apontamos a lista com as principais em ordem de importância, de acordo com a centralidade de intermediação e o grau de saída ponderado.

Tabela 1 – As Sete Irmãs da Saúde (SIS) – Centralidade de Intermediação e Grau de Saída Ponderado


A combinação entre as posições das SIS, a partir dos dois indicadores na tabela 1, evidencia sua participação privilegiadíssima no controle corporativo em rede da economia brasileira. Elas fazem parte da elite dos 10% das holdings (623 nós) que controlam 68,77% (4991 arestas) de todos os vínculos acionários da rede e, consequentemente, também pertencem aos 20% (1.247 nós) que controlam 80% (5820)11 de todas as conexões. Na tabela em questão, primeira e segunda colunas do lado esquerdo, tratamos da centralidade de intermediação. As SIS estão muito bem colocadas, com destaque para a Rede D´Or, que nesse importantíssimo quesito pertence ao 0,5% entre as 6.235 empresas que compõem as 200 holdings. Destaca-se que 25,93% de seu capital pertence à Pacific Mezz, empresa localizada em Singapura, um dos mais importantes paraísos fiscais e que, ainda, conta com sigilo fiscal. Esses últimos dois termos: paraíso fiscal e sigilo fiscal são expressões elegantes para quem não deseja pagar impostos. Ainda sobre a Rede D´Or, 11,88% está sob o controle do The Carlyle Group, um dos maiores fundos financeiros especulativos do mundo. Em 2022 administrava US$ 375 bilhões, o equivalente a metade do orçamento federal do Brasil. São muitas as notícias de operações, para dizer no mínimo, controversas e lesivas do grupo, incluindo a área da saúde. Por exemplo, está no leque de ações danosas da Carlyle a diminuição da qualidade e redução de serviços, bem como aumento de preços de medicamentos. Para maiores detalhes, o leitor pode pesquisar os casos relacionados à HCR ManorCare, LifeCare Holdings, Pharmaceutical Product Development, Albany Molecular Research, Acrotech Biopharma, Covis Pharma e Ortho-Clinical Diagnostics. Outro exemplo de empresa global, cujas estratégias empresariais não são exatamente dignas de constarem nos livros de boa governança é o caso da United Health, controladora da Amil no momento da confecção do presente artigo. Entre as denúncias sobre essa corporação, constam fraudes, reclamações falsas, acusações de faturamento excessivo, recusa de tratamentos, táticas agressivas para o não-pagamento de reembolsos e formação de monopólio. Práticas que tem lhe custado, nos Estados Unidos, processos judiciais e investigações governamentais.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Quem tem medo da reconstrução industrial

Quarta, 24 de janeiro de 2024

Programa de Lula e Alckmin propõe-se a interromper quatro décadas de regressão econômica. Elite rentista o rejeita, porque acumula riquezas sem produzir. E aposta que contará com os aliados no ministério e as contradições internas do governo

OUTRASPALAVRAS

 
Imagem: Sentretvector/ Freepik 

“Subdesenvolvimento não se improvisa — é obra de séculos”, escreveu certa vez Nelson Rodrigues. Entre 1930 e 1980, o crescimento contínuo e acelerado da indústria brasileira tornou-a a mais diversa e avançada entre os países do Sul Global. Fazia inveja aos chineses, que vieram conhecê-la de perto. Mas este breve lapso, em meio à maldição colonial do país, foi desde então meticulosamente sepultado.

O Brasil sofreu “a desindustrialização prematura mais brutal do capitalismo”, nas palavras do economista Paulo Morceiro, especialista no tema. Entre 1984 e 2022, a participação da indústria no PIB despencou de 27,3% para 12,9% — abaixo do que fora em 1947. E a produção industrial brasileira reduziu-se a apenas 1,32% da mundial – atrás de países como Índia, México, Rússia e Indonésia. Ainda assim, na última terça-feira (22/1), quando o governo federal apresentou, depois de muito tempo, uma nova proposta de política industrial, a elite econômica do país reagiu com frieza. O real e a Bolsa caíram. Nos jornais e TVs, afirmou-se que os recursos necessários para recuperar a indústria “geram uma incerteza muito grande no curto prazo”. O ministro da Fazenda faltou ao ato de lançamento da nova política.

O plano — denominado Nova Indústria Brasil e disponível na íntegra aqui — tem virtudes, limites e sobretudo incertezas. Elas serão resolvidas pela força política que cada setor social souber exercer, nos próximos meses. O economista Marco Antonio Rocha, professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Núcleo de Economia Industrial e Tecnologia da mesma universidade, construiu uma síntese que talvez possa ser apresentada em quatro pontos:

1. Ideia central supera antigos problemas…:

A proposta tem concepção avançada. Está em sintonia com mudanças na concepção de política industrial que estavam latentes desde a crise financeira de 2008 e se consolidaram no pós-pandemia. Já não se trata de lançar programas pontuais, como o apoio a setores industriais específicos (ou, no Brasil, a aposta nos “campeões nacionais”). Aposta-se numa visão sistêmica segundo a qual a emergência de uma indústria forte depende de um feixe de ações: desenvolvimento de Ciência e Tecnologia, apoio de bancos públicos, formação e infraestrutura, entre outras. Já não se acredita numa globalização sem barreiras. Busca-se a construção de cadeias produtivas resilientes, capazes de persistir mesmo diante de choques externos relevantes.

Na formulação da nova política, participou a economista Mariana Mazzucato (leia seu artigo a respeito). Conhecida por suas opiniões contra-hegemônicas, ela destaca com insistência o papel central dos Estado na indução e no direcionamento das políticas econômicas. Zomba dos que creem na “mão invisível dos mercados”. Construiu um projeto baseado em sua conhecida opção por “missões” – ou seja, objetivos que as sociedades devem dar a si mesmas, e nos quais a indústria tem papel relevante. No caso brasileiro, são seis: a) cadeias agroindustriais sustentáveis; b) Complexo Econômico e Industrial da Saúde; c) Infraestrutura, saneamento, moradia e mobilidade sustentáveis; d) transformação digital da indústria; e) bioeconomia, descarbonização e transição e segurança energéticas; e f) soberania e defesa nacionais.

Mazzucato trabalhou em bases férteis, ressalva Marco Antonio. O pensamento econômico brasileiro – em especial em universidades como a Unicamp e a UFRJ – é profundo, profícuo e atualizado, em relação ao debate e formulação de políticas industriais.

sábado, 22 de abril de 2023

Lula entre a Selic e o calabouço fiscal

Sábado, 22 de abril de 2023
Lula entre a Selic e o calabouço fiscal

Escrito por Paulo Kliass
Publicado em A-Destaque

Mais um 21 de abril no "labirinto de juros elevados e 'austeridade suave', em vez de despesa pública para a reconstrução do país"

Dentre as inúmeras aberrações que marcam o processo de tomada de decisões do Banco Central (BC) encontra-se a famosa pesquisa Focus. A cada segunda-feira, as páginas da instituição divulgam um relatório contendo as chamadas "expectativas de mercado" a respeito de algumas das variáveis mais relevantes para a conformação dos cenários macroeconômicos futuros. O "pequeno detalhe" é que os questionários elaborados pelo órgão responsável pela regulação e fiscalização do sistema financeiro só são respondidos por pouco mais de uma centena de pessoas. Trata-se de um seleto grupo escolhido a dedo, formado por dirigentes e integrantes do alto escalão de bancos e de empresas que atuam no financismo.

Assim a direção do BC ausculta apenas o que esse pessoal tem a dizer sobre o crescimento do PIB, sobre os níveis de inflação, sobre a taxa de câmbio e sobre a própria taxa oficial de juros. E a partir de tais opiniões nada descomprometidas e tampouco ancoradas em alguma neutralidade técnica, os nove membros da diretoria do BC se travestem de membros do Comitê de Política Monetária (Copom) a cada 45 dias e definem o patamar da Selic. O nível de captura do órgão regulador é absolutamente flagrante e não apresenta a menor cerimônia em revelar a que tipo de interesse se prestam seus dirigentes.

Nunca são ouvidos ou chamados a debater e emitir opiniões aqueles economistas e/ou profissionais que não rezem fielmente pela cartilha do dogma conservador. As posições de professores universitários ou pesquisadores não são levadas em consideração, pois talvez incomodem ao questionarem os fundamentos da política monetária equivocada e contrária aos interesses da maioria da população. Tudo se passa como se não houvesse alternativa à ortodoxia e ao arrocho da taxa de juros. Trata-se de um enorme engodo, pois é mais do que sabido que a economia não é uma ciência exata. É um campo do conhecimento que pertence ao ramo das ciências humanas e sociais. Sempre existem diferentes opções, em especial quando se trata de decisões de política econômica e de políticas públicas a serem adotadas pelos governos.

Copom e financismo: uma ação entre amigos

Pois o Relatório Focus divulgado no começo desta semana traz uma informação interessante. Pela primeira vez, a pesquisa aponta para uma redução nas avaliações da taxa de juros. Os questionários revelam uma expectativa de que a Selic talvez possa sofrer uma ligeira diminuição, uma vez que os 12,75% esperados no relatório anterior transformaram-se nos 12,50% divulgados atualmente. Esse dado é um indicador de que o Copom possa realmente promover uma ligeiríssima, quase imperceptível, queda na taxa, depois de um longo período em que a mesma não sofreu esse tipo de mudança para baixo. Muito pelo contrário, em 5 de agosto de 2020 ocorreu a última reunião em que o comitê havia optado por baixar a taxa. À época, ela desceu de 2,25% para 2% anuais. Desde então, o colegiado apenas veio promovendo uma escalada criminosa para os atuais 13,75%, que foram atingidos em agosto do ano passado, patamar de onde não mais saiu até o presente momento.

quarta-feira, 1 de junho de 2016

O Mito do Déficit da Previdência: a fatia que faltava para o mercado financeiro

Quarta, 1º de junho de 2016

* Piatã Müller
Com o novo governo e o novo Ministro da Fazenda, fica escancarado que a solução vendida para a mídia para solucionar a crise financeira é a reforma da previdência.

A falácia é que o rombo da previdência é enorme e sua estrutura insustentável para os anos que virão.

Trata-se de um mito criado para justificar a privatização da previdência e dos serviços assistenciais, e destinar ainda mais recursos para o setor financeiro. Pois, do orçamento federal gasto, os 22% investidos na Previdência (em 2014) correspondem ao maior gasto social do governo, superado apenas pelo pagamento dos juros e amortizações da dívida pública.

O déficit da previdência é a mentira tornada verdade depois de tantas vezes repetida.

Como isso é possível? Realizando manobras contábeis que se esquivem do que a Constituição Federal determina.

Portanto, para esclarecer o assunto, vamos à Constituição.


O primeiro ponto a se observar é que, antes de tudo, o correto, constitucionalmente, é transferir a discussão da “Previdência Social” para a “Seguridade Social”, sendo a previdência apenas uma parte dela.

CAPÍTULO II DA SEGURIDADE SOCIAL SEÇÃO I DISPOSIÇÕES GERAIS

Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.

A Seguridade Social obtém superávits todos os anos. Veja a tabela com números da Associação Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil (ANFIP)

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Lembrando, a previdência social faz parte da Seguridade Social. Portanto, reduzir a discussão apenas à previdência é esconder os superávits da Seguridade Social. Trata-se de “desonestidade constitucional”, pois afinal, convenhamos, o que importa é se conseguiremos financiar a saúde, a assistência social e a previdência social.

E sim, mesmo no péssimo ano de 2014, a Seguridade Social obteve R$ 53 bilhões de superávit.

Vamos agora a outro erro monumental, que é considerar a contribuição feita pelo governo federal como uma despesa.

Voltemos à Constituição Federal.

Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:

I – do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre:

a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício;

b) a receita ou o faturamento;

c) o lucro;

II – do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social de que trata o art. 201;

Ou seja, o caixa da Seguridade Social é composto por contribuições do governo, das empresas e do trabalhador.

A contribuição do governo não acontece para cobrir um rombo, mas para contribuir com sua parcela constitucional, assim como trabalhadores e empresas também o fazem.

Em momento algum foi pensado que apenas as contribuições de trabalhadores e empresas devem financiar a seguridade social ou a previdência social. Isso é cometer outra grave “desonestidade constitucional”.
[clique na imagem para ampliá-la]


Gráfico elaborado pela MetalRevista, edição 9.

Por último, vamos a um fator extremamente agravante: o governo federal destina recursos da Seguridade Social para o orçamento fiscal, ou seja, para contribuir com a formação do “superávit primário”, que significa, em bom português, a reserva de recursos para o pagamento da questionável dívida pública.

Para arrematar, como retoque final, o governo federal descumpre mais uma vez a Constituição Federal ao conceder desonerações que iriam diretamente para o caixa da Seguridade Social. Em 2013, por exemplo, R$ 10 bilhões deixaram de ser arrecadados e poderiam aumentar, ainda mais, o superávit da Seguridade Social daquele ano, que foi de R$ 76 bilhões.

Fica uma pergunta no ar…?

Algo como: mas qual seria o motivo para a insistente divulgação do Rombo da Previdência?

Ora… basta olhar o gráfico do Orçamento da União Executado em 2014:

[clique na imagem para ampliá-la]


Já gastamos 45% com juros e amortizações da dívida. Educação, saúde e trabalho não chegam aos 4% cada. Cultura recebe 0,04% do orçamento, direitos da cidadania 0,03%. Não há mais de onde extrair riquezas do país e transferir ao setor financeiro.

A não ser…

A Previdência Social! Que representa 21,76% dos gastos nacionais.

Sim, a Previdência é a fatia que faltava.

* Piatã Müller é presidente do Instituto Sócrates, jornalista, educador social e um dos coordenadores do núcleo curitibano da Auditoria Cidadã da Dívida

Você pode se aprofundar mais no assunto nestes links:

Tese de Doutorado de “A Política Fiscal e a Falsa Crise da Seguridade Social Brasileira”, de Denise Lobato Gentil, pela UFRJ: http://goo.gl/E8R0VR

Análise da Seguridade Social de 2013, feita pela ANFIP: http://goo.gl/H4bZIA


Análise da Seguridade Social de 2014, feita pela ANFIP: http://goo.gl/VQ0ABJ


MetalRevista #9: http://simec.com.br/docs/revistas/9.pdf