Quinta, 10 de novembro de 2016
Da Abrasco
Associação Brasileira de Saúde Coletiva
Especialista em planejamento e gestão em saúde e
professor da Faculdade de Medicina da USP, Mário Scheffer, faz um grave
alerta: “Com a PEC 241, é possível prever a maior crise do SUS nesses 28
anos de existência, desde que foi criado na Constituição de 1988”.
Nesta entrevista exclusiva à ABIA, Scheffer faz um balanço sobre a
situação da saúde pública no país e avalia os estragos que a população
irá enfrentar na saúde (incluindo as pessoas que vivem com HIV e AIDS)
caso a Proposta de Emenda à Constituição se torne uma realidade. A PEC
241 já foi aprovada pela Câmara dos Deputados e está em análise no
Senado. Confira a seguir:
Armadilha
A polarização passou a integrar o nosso cotidiano, a sociedade
brasileira está murada e tem sido assim também na defesa ou na oposição à
PEC 241. Como tantos economistas têm afirmado, o que causou o rombo nas
contas públicas, foram o aumento do gasto com a dívida e a diminuição
da arrecadação devido a economia fraca. Portanto, a PEC parte de um
diagnóstico equivocado de que o problema fiscal vem do suposto excesso
de gastos públicos, inclusive com políticas sociais, no nosso caso com
saúde.
Perdas I
As despesas com saúde estavam vinculadas a um percentual da
arrecadação de impostos. A grande discussão era que esse percentual
federal era muito pouco, daí a luta, na qual fomos derrotados, pelos 10%
da receita corrente bruta da União para saúde. Vejamos as regras que
vigoram desde 2000. De 2000 a 2015 valia a Emenda Constitucional 29, a
saúde recebia o executado no ano anterior mais variação do PIB. Em 2015,
com Dilma, a regra mudou para pior, a Emenda Constitucional 86 previa
percentuais escalonados sobre a receita corrente líquida da União. Eram
contas ruins? Eram, mas garantiam minimamente a estabilidade do
financiamento do SUS, ainda que com crescimento lento, em patamares
muito baixos, insuficientes. Quer dizer, no momento em que crescia a
arrecadação, o mínimo garantido da saúde também aumentava. A péssima
notícia é que esse mínimo passa a ser a ser reajustado apenas pela
inflação do ano anterior.
Perdas II
Com a desvinculação de recursos da saúde, nos 20 anos de congelamento
previsto pela PEC 241, há cálculos que demonstram que o SUS pode perder
mais de R$ 600 bilhões. Alguns estão argumentando que nada impedirá de o
governo gastar mais que o mínimo com saúde. O problema é que o
congelamento global dos gastos públicos não vai segurar o aumento de
despesas obrigatórias que crescem mais que a inflação, caso da
previdência cujas possíveis reformas vão atravessar gerações. Ou seja,
não sobrarão recursos adicionais para serem disputados pela saúde, além
do mínimo.
Sem controle social
O que a PEC 241 vai fazer é retirar da sociedade e do Legislativo que
a deveria representar, a possibilidade de definir o tamanho do
orçamento público para a saúde, que passa a ser definido pela taxa da
inflação. Substitui-se o controle social sobre o orçamento, deliberado
em conselho de saúde e sugerido ao Congresso Nacional, por uma variável
meramente econômica.
Privatização do SUS
O subfinanciamento do SUS não é nenhuma novidade, muito menos a
privatização por meio de incentivo aos planos de saúde, entrada de
capital estrangeiro para expansão da rede hospitalar privada, entrega da
gestão às Organizações Sociais. A diferença está na intensidade das
ações e no perfil de quem está no comando, o jogo a favor dos interesses
particulares e contra o SUS agora é jogado às claras, não é mais
dissimulado, com a entrega da saúde ao PP, com um ministro que mais
parece um homem de negócios da saúde.
Redistribuição
Em 2015 a União destinou pouco mais de R$100 bilhões ao SUS, os
municípios gastaram R$ 72 bilhões com saúde e, os estados, R$ 60
bilhões. Para se ter uma ideia do quanto isso é pouco (somando os três
níveis, é pouco mais de três reais por dia por brasileiro), os planos de
saúde, que só cuidam , e mal, de assistência médica e hospitalar para
um quatro da população , tiveram receita de R$ 140 bilhões em 2015.
Racionamento
Estados e municípios, embora já apliquem mais do que a lei exige com
saúde, 12% para governos estaduais e 15% para prefeituras, desde o
início da recessão em 2015 , como a arrecadação menor, estão racionando a
rede pública de saúde, diminuindo capacidade de consultas e exames,
fechando leitos, deixando de repor pessoal, cortando convênios . Ações
de prevenção, então, foram abandonadas.
Orçamento
Do orçamento do Ministério da Saúde, hoje 65% são transferidos a
municípios e estados, para custear parte da atenção básica, da média e
alta complexidade, da assistência farmacêutica, da vigilância, entre
outras ações.
Crise anunciada
Com o congelamento por 20 anos dos gastos e repasses federais, e com a
retração do orçamento de estados e municípios, é possível prever a
maior crise do SUS nesses 28 anos de sua existência, desde que foi
criado na Constituição de 1988.
Epidemias
Como o recurso mal dará para custeio da assistência, será
praticamente impossível investir em prevenção, não só do HIV, mas do
controle das epidemias como as de Zika, dengue e Chikungunya, que exigem
investimentos em saneamento, pesquisa, vacinas etc.
Idosos
Enquanto diminuem os recursos crescem as demandas, com uma população
cada vez mais idosa e doente. Justo no momento que o SUS mais precisa de
novos aportes, para reverter nossos péssimos indicadores de saúde e
altas prevalências de doenças infeciosas, transtornos mentais,
obesidade, diabetes, hipertensão, uso de álcool e tabaco, cânceres de
pulmão, próstata, colo, mama, acidentes e violência, além de abortos
desassistidos, nascimentos prematuros e alta taxa de cesarianas.
Planos populares
Sobre planos de saúde populares ou “acessíveis”, ideia do atual
ministro, nunca serão solução para a saúde no Brasil. Essa é uma
proposta formulada por alguns empresários de planos próximos do
ministro, para abrir um novo nicho de mercado, os tais planos
individuais baratos de cobertura reduzida, para compensar as empresas de
planos de saúde pela queda do número de clientes. Como mais de 80% dos
planos hoje são coletivos, com o desemprego as empresas de planos perder
a clientela. Planos baratos ou populares já existem e não deram certo,
são motivo de denúncias nos Procons, na mídia e na Justiça. A população é
sábia, compreende que as necessidades de saúde são imprevisíveis e não é
possível customizar o risco de adoecer, por meio de um plano
promocional que não dará cobertura em doenças crônicas, saúde mental,
AIDS, hemodiálise, transplante, promoção da saúde etc.
AIDS
A resposta à AIDS no Brasil foi concebida no SUS, implementada pelo
SUS. Então, se o SUS vai mal, a nossa luta contra a aids terá ainda mais
retrocessos do que os recentemente acumulados. O Brasil no passado
chegou a receber recursos de fora, do Banco Mundial, mas hoje 100% dos
antirretrovirais, da assistência e da prevenção são garantidos pelo SUS.
Pessoas que vivem com HIV
Neste cenário pós PEC 241, há riscos de piora nos serviços, de demora
na incorporação de novos medicamentos e de baixo investimento em
prevenção. Muito importante lembrar que as pessoas que vivem com HIV tem
outras necessidades de saúde, como hepatites, problemas cardíacos, etc,
cujos serviços serão igualmente afetados.
AIDS e o SUS
Nunca precisamos tanto do SUS. Não só para manter o que conquistamos,
como o acesso universal a tratamento, mas porque a epidemia segue mais
forte nas novas gerações, temos cada vez mais infectados sem conhecer a
sorologia, o que leva ao diagnóstico tardio que prejudica a saúde das
pessoas, contribui para a mortalidade elevada e persistente e não
interrompe a corrente de transmissão do HIV. É alta a prevalência em
algumas populações. O que estamos permitindo que aconteça com a AIDS
entre os jovens homossexuais é um crime de omissão de saúde pública. Os
nossos serviços estão lotados, de pior qualidade, há muita gente com
perda de seguimento clinico e tem sido difícil o acesso das pessoas com
HIV a outras especialidades como cardiologia, neurologia, psiquiatria
etc.
Conservadorismo
Sofremos as consequências de uma péssima e autoritária condução da
política nacional nos últimos anos que em parte reproduziu condutas que
levaram , em maior grau, à crise política na qual nos metemos. No campo
técnico também foram erráticas algumas escolhas, centradas apenas no
“testar e tratar”, com focalização no HIV e não na vida das pessoas; com
alianças conservadoras e moralistas que interditaram a prevenção
inclusiva, jogaram para debaixo do tapete a sexualidade e até mesmo a
existência dos mais vulneráveis.
Mudanças
Os avanços, se um dia foram comemorados, já foram suplantados pelos
retrocessos que se amontoam. O êxito da resposta brasileira à AIDS não
se distribuiu de maneira equitativa no país e entre as populações mais
atingidas. Estamos desperdiçando as oportunidades do momento. Chegamos a
um ponto que, se não mudarmos a resposta, se continuarmos fazendo da
mesma forma que fazemos, vamos assistir passivamente o aumento do número
de infecções e de mortes.
Tempos difíceis
Juntemos nossas forças, o momento histórico é de provação. Pois temos
ao mesmo tempo combater o desmonte do SUS e retomar a luta contra a
aids que arrefeceu. Tempos difíceis, pois se a crise do SUS pode afetar a
assistência, a nova onda conservadora pode dificultar ainda mais a
prevenção e a promoção dos direitos humanos, e mesmo impedir políticas
que enfrentem as formas persistentes e múltiplas de discriminação
relacionadas à sexualidade, orientação sexual e identidade de gênero,
violações de direitos que são determinantes da epidemia da AIDS.
Por onde recomeçar?
Por onde recomeçar? Superando essa frágil e inconsequente estratégia
discursiva, esse ativismo de facebook, de eventos e manifestos feitos
por nós para nós mesmos, ou de atos isolados sem repercussão, ainda que
bem intencionados em defesa do SUS e pelos direitos das pessoas que
vivem com HIV. Nós, defensores do SUS e das populações vulneráveis,
ativistas da luta contra a aids, sempre fomos minoria. Não somos governo
nem multidão, embora muitos tenham caído nessa tentação. Como minoria, o
que sempre nos moveu foi a resistência e o impulso de transformação.
Temos que voltar a transformar nosso ativismo em um potente dispositivo
simbólico, com intencionalidade ética e política, que foi o que nos
garntiu avanços. Para isso teremos que reaprender a nos posicionar e
expressar publicamente, além de fortalecer as nossas ONGs, fóruns e
redes, além de nos juntar a outros movimentos em defesa do SUS e da
democracia.
(Mario Scheffer, entrevista exclusiva à ABIA – Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids)
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