Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Abel, Caim e o plebiscito


Sexta, 15 de abril de 2011
 Por Ivan de Carvalho
No princípio, filhos do primeiro casal, já expulso do Jardim do Éden, existiam dois irmãos. Naquele tempo, ainda não haviam inventado a faca. Nem o punhal, a espada, o arco e flecha, a espingarda, o mosquetão, o revólver, o fuzil. Mas, por gostar Deus das orações de Abel e não fazer muito caso das suas – Ele sabia o que havia em cada um dos corações –, Caim ficou enciumado e matou Abel.

            Em síntese, sem nenhuma arma elaborada – talvez com um certeiro soco, uma esganadura, ou empunhando um pedregulho, o fêmur de algum animal, como poderia sugerir um antropólogo, ou a queixada de um asno, como bem mais tarde inspirou Deus a Sansão –, Caim matou a quarta parte da humanidade. Sansão foi mais modesto e misericordioso, matou apenas 1 mil filisteus.


            Mas, voltando aos primórdios, ainda bem que Eva era, eu presumo, ninfomaníaca, sexualmente compulsiva como se diria hoje em linguagem politicamente correta. Então, após a morte de Abel, teve certamente (não havia contraceptivos nem clínicas de aborto) muitos filhos e filhas que se espalharam e depois se reencontraram para certas coisas que seus pais haviam descoberto. Isto nos terá livrado do infortúnio de sermos todos descendentes de Caim, o assassino.


            Bem, adiantando outra vez o relógio, ao longo da história terão sido incontáveis os casos em que uma tribo extinguiu a tribo vizinha no tapa e na pedrada, até que os menos bobos resolveram usar também varapaus e armas de ossos. Depois, continuaram fazendo a mesma coisa com tacape, borduna, o sofisticadíssimo arco e flecha, a machadinha, o varapau pontiagudo chamado de lança, que no futuro daquele tempo ganharia ponta de pedra e depois de metal. E a soberana espada. Depois, o soberaníssimo canhão.


Mas só a partir de 1945, conforme a História da carochinha cultivada na academia e ensinada nas escolas regulares do mundo inteiro, a humanidade cometeu a façanha de inventar (reinventar seria mais veraz) uma arma capaz de destruir a quarta parte dela mesma, humanidade. E até toda ela, caso os apertadores de botões que disparam as armas nucleares se descuidem. É poder demais nas mãos de uns poucos que não podemos controlar. Mas se pudéssemos exercer esse controle, será que algum dia, em alguma circunstância, não mandaríamos apertar os botões?


Estas, seria bom que não existissem, ainda que não se lancem sozinhas sobre cidades, centros industriais e concentrações militares. Mas o pedregulho, o varapau, o fêmur descarnado, a queixada de jumento, a faca, a espada, nenhuma dessas armas ataca sozinha. Quem ataca é o homem. É a mente e o coração do homem, e da mulher, compete salientar, uma vez que cumpre proclamar a igualdade e está ela, a mulher, cada vez mais empodeirada (que palavra, meu Deus, será que não encontraram no idioma de Camões algo menos escaleno e precisaram inventar “empodeirada” e seus derivados, como o tal do “empodeiramento”, um troço muito prá lá de lá).


Mas, bem, vamos ao assunto, afinal. Em 2005, maciçamente, o povo brasileiro, representado pelo eleitorado, rejeitou, em plebiscito, a proibição do comércio de armas no país, que era um desejo quase unânime dos políticos. Entendeu que o bandido não compra suas armas nas lojas, mas do contrabando e no mercado negro e que se estaria proibindo que o cidadão comum pudesse se defender em sua casa.


Com o massacre da semana passada no Rio de Janeiro (usados dois revólveres comprados no mercado negro), o presidente do Congresso Nacional, senador José Sarney, achou o pretexto para, cavalgando a comoção popular, propor outra vez o mesmo plebiscito para a mesma coisa. Ironia? Falta de respeito ao povo e a uma decisão popular recente e inequívoca? De certo modo, sim. Porque o que se consegue com o plebiscito ou, no mínimo, o debate que se estabeleceu em torno dele é escamotear o problema principal. É fingir que está se cuidando no país da insegurança pública, que está em estágio absolutamente crítico, já considerado por muitos de “guerra civil”.


Parem de enganação e façam alguma coisa séria. Ou então chamem logo Caim.
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Este artigo foi publicado originalmente na Tribuna da Bahia desta sexta.
Ivan de Carvalho é jornalista baiano.
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Caim matando Abel, em pintura do italiano Bartolomeu Manfredi. A briga entre os dois irmãos foi, de fato, a  Primeira Grande Guerra Mundial.