Sábado, 3 de março de 2012
Por
Ivan de Carvalho

Em princípio, os comunistas
não acreditam em Deus. Mas há os que acreditam. Não sei em qual das duas
categorias eu poderia enquadrar Fernando Sant’Anna. Até me parece que ele
integrou um certo grupo de pessoas que não podem ser enquadradas. De qualquer
sorte, acreditando ele em Deus ou não enquanto esteve entre nós, não tenho
dúvida de que Deus acreditou nele. E Deus não erra.
Haverá quem faça biografias
muito melhores do que seria eu capaz de fazê-las. Haverá também quem escreva
sobre ele com muito mais conhecimento do que eu tenho sobre essa verdadeira
legenda da política baiana e nacional. Assim, não quero atrapalhar.
Faço apenas dois registros, que me envolvem
pessoalmente. Em uma das minhas poucas, mas sempre longas conversas com
Fernando Sant’Anna – era impossível ter conversas breves com ele, não era de
sua natureza e era difícil decidir parar de ouvi-lo – havia motivo para
preocupação da minha parte.
Em 12 de novembro de 1982, dois dias depois da
morte de Leonid Brezhnev, fossilizado em vida, fora escolhido secretário geral
do Partido Comunista da União Soviética Yuri Andropov, ex-chefe da KGB e
principal instigador das intervenções armadas contra a revolução libertária
húngara de 1954 e contra a primavera de Praga.
“Outro Beria, Fernando?”, provoquei, para saber
sua opinião. Ele me olhou, sério, mas com evidente expressão de desgosto. “Pois
é, Ivan. Outro Beria”. Lavrentiy Beria integrou a Tcheka, chefiou sua
sucessora, a NKVD e finalmente a sucessora desta, a KGB. Beria é considerado
uma das figuras mais sinistras do regime soviético, nisso rivalizando com
Stalin, que lhe tinha confiança absoluta.
Já fazem muitos anos que vi
pela última vez meu amigo (sou difícil de cultivar amizades) Fernando
Sant’Anna. Ele não me viu e eu preferi não me apresentar, pela surpresa que a
sua presença ali me causou. Afinal, tratava-se de um comunista da Era Gorbachev
(não apenas de um ex-comunista como meu pai, que àquela época já havia morrido,
cristão).
Foi no Salão Yemanjá do
Centro de Convenções da Bahia. Década de 90. Uma palestra bastante concorrida. Palestrante,
Giorgio Bongiovanni, um italiano, portador dos estigmas de Jesus (que sangram
diariamente). Bongiovanni sustenta que teve uma visão de Maria, mãe de Jesus,
em plena rua, numa cidade italiana, por volta do meio dia. A visão lhe indagou
se aceitaria uma missão e advertiu que não seria fácil. Ele aceitou e recebeu
orientação para ir a Fátima, em Portugal. Lá, raios de luz o atingiram,
produzindo os quatro estigmas nas mãos e pés e mais um na testa, representando
a coroa de espinhos, ao invés da ferida da lança, no lado esquerdo.
A tese de Giovanni na
palestra (e antes dela e depois, até hoje) foi a de que recebeu o inteiro teor
do Segredo de Fátima (distribuiu o texto), que a Terra passa por um grande
processo de transição. Sustentou a realidade dos UFOs (discos voadores) e uma
relação de colaboração profunda entre seus ocupantes e a elite espiritual da
Terra, inclusive nesse processo traumático de transição.
Perdi a oportunidade de
conversar mais uma vez com Fernando Sant’Anna com a ideia de que seria melhor
preservar a sua “privacidade” de comunista, ainda que estivesse ele ali em
público. Tolo que fui. Ele, comunista de mente totalmente aberta, buscava ali
conhecimento e quem tem coragem para buscar conhecimento não se constrange quando
apanhado em flagrante.
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Este artigo foi publicado originalmente na Tribuna da Bahia deste sábado.
Ivan de Carvalho é jornalista baiano.
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Fernando Santana, o velho comunista baiano, ex-deputado federal pela Bahia, morto quinta-feira aos 96 anos.