Segunda, 24 de fevereiro de 2014

A
arquitetura é uma expressão artística que interage no cotidiano da comunidade,
funcionalizando o inconsciente coletivo da sociedade onde se situa. A cognição
que transparece da cidade é uma associação comparativa de experiências
históricas possibilitadas pelas evocações semióticas contidas na sua produção
arquitetônica. Como produto do conhecimento construtivo materializado em suas
formas, ela é uma configuração psico-histórica pronta para ser interpretada,
com todas as entropias daí decorrentes.
Por
exemplo, ao observar Nova Iorque, aflora de sua matéria construtiva organizada
a energia e o esforço de uma sociedade para erguer um ícone do funcionamento do
capital em sua forma dinâmica, qual seja, no processo produtivo e no
estabelecimento de contratos que ordenam juridicamente o capitalismo. Do Empire
State Building até Times Square, da Estátua da Liberdade ao prédio da
Organização das Nações Unidas, existe a expressão de uma tentativa de melhorar
a condição do ser humano em conflito com as relações materiais de produção
impostas pelo próprio capital.
Assim
também, Brasília foi planejada e construída como uma obra de arte viva, com uma
concepção avançada, libertária. Sua forma de avião, partindo do centro do País,
clama a liberdade de ousar um céu azul (representado pelo Lago Paranoá), tendo
como cockpit a Praça dos Três Poderes. Seus diversos monumentos, bastante
semióticos, realçam o simbólico ante uma moldura de paisagem plana, explorando
representações possibilitadas pelo concreto armado. Há, nela, uma sintaxe
setorializada, com cada parte da tessitura urbana dedicada a uma atividade
social: setor bancário, comercial, de diversões, de clubes, de embaixadas etc.
Embora
tenha sido idealizada e estabelecida como um projeto artístico representativo,
ela foi decompondo-se pela ganância especulativa de empreiteiros sem decência
nem compromisso com o bem-estar civilizatório e de uma elite oligárquica que se
formou no processo acumulativo do capital local, preocupada em locupletar-se
pela via do poder político. Aliado a isso, o traçado sensual das linhas curvas
da Capital da República não conseguiu prever os efeitos do intenso trânsito
que, hoje, castiga a cidade.
Brasília
se esfacela em sua arquitetura e em seu urbanismo, pela forma atabalhoada com
que vem crescendo, construindo monstrengos em desarmonia com sua escala, como a
tentativa do GDF de transformar clubes em hotéis na orla do Lago Paranoá, de
construir de um novo setor hoteleiro na 901 Norte (espaço cuja destinação é
originalmente residencial). Há iniciativas de irresponsabilidade completa, tal
qual a péssima ideia que teve o atual governo do Distrito Federal de incluir,
no PPCUB, áreas comerciais ao longo do centro do Eixo Monumental.
A
cada momento, vai-se incluindo uma expressão da decadência civilizatória da
cidade, como espelho de um caos urbano e artístico emparedador do humanismo com
que ela foi pensada. Tudo isso, com certeza, ficará para a posteridade, não
como ícone ou símbolo semiótico, mas como semiose indicial de desagregação
urbana, social e psico-histórica, demonstrando uma vocação mal resolvida da
cidade para com ela mesma.
A fuga da simetria
brasiliense é, de certo modo, um subterfúgio à sua razão de origem, e revela a
desorganização de sua humanidade citadina. Para não perder a consciência da
própria identidade, Brasília precisa mergulhar periodicamente na análise do
projeto subjacente do Plano Piloto que lhe trouxe à luz. E recuperar, de tempos
em tempos, a semântica do traçado e da matéria que lhe organiza a feição.
(Cruzeiro-DF, 23 de fevereiro de 2014)