Sábado, 20 de dezembro de 2014
Da Tribuna da Internet
Anita Leocádia Prestes
Estamos diante de um livro, escrito por um historiador[1],
que poderia ser usado em sala de aula de um curso de História como
modelo para os estudantes do que não deve ser um trabalho de
historiador. Para E. Hobsbawm[2],
o historiador deve ter um compromisso com a evidência e, portanto,
escrever uma História não só apoiada em documentos como também baseada
na comparação do maior número possível de fontes documentais que lhe
permitam obter os elementos necessários para uma aproximação confiável
dessa evidência. Caso contrário, o historiador ficará sujeito a
reproduzir e difundir informações falsas, assim como interpretações
errôneas e parciais da realidade que pretende retratar.
Nada disso é considerado por Daniel Aarão Reis. No seu livro, não se
apresentam as fontes documentais das afirmações veiculadas. Em notas,
presentes no final da obra, são citados livros ou arquivos de maneira
genérica (por exemplo, “Fundo PCB no Arquivo da Internacional
Comunista”, no qual existem milhares de documentos), deixando, portanto,
o leitor privado da possibilidade de consultar o documento ao qual o
autor se refere. Dessa forma, o leitor é induzido a aceitar como
verdades indiscutíveis afirmações cuja origem dificilmente poderia ser
comprovada.
Tal metodologia adotada por D. A. Reis, marcada pela incompetência e a
irresponsabilidade do pesquisador, contribui para que nos encontremos
diante de um texto repleto de erros factuais e de informações falsas,
assim como de análises supostamente psicológicas de Prestes e dos demais
personagens retratados no livro, embora não conste que o autor possua
formação de psicólogo.
Entre inúmeros erros, constantes da obra de D. A. Reis, para citar
apenas alguns – se fossem listados todos, seria necessário escrever
outro livro -, pode-se apontar, por exemplo, o de antecipar o episódio
da campanha da “Reação Republicana” de Nilo Peçanha de 1921-1922 para o
ano de 1919 (p. 26), quando foi eleito presidente da República Epitácio
Pessoa. Outro exemplo: o autor afirma que os dirigentes comunistas
Ramiro Luchesi e Fragmon Carlos Borges foram assassinados (p. 347), no
início dos anos 1970, quando na realidade faleceram de morte natural; da
mesma maneira, escreve que o general Miguel Costa já teria falecido em
março de 1958 (p.279), sem indicar quando, o que só veio a ocorrer em
dezembro de 1959; também afirma que, em março de 1990, entre as quatro
irmãs de Prestes, só Lygia restara viva (p. 480), enquanto, na
realidade, Lúcia faleceu em 1996 e Eloiza em 1998. Em diversos pontos da
obra, o autor cita documentos constantes dos anexos no livro A Coluna Prestes, de A. L. Prestes, mas a referência incluída na bibliografia é de outro livro da mesma autora (Uma epopéia brasileira: a Coluna Prestes).
Em diversos momentos, D. A. Reis, que se considera entendido nas
obras dos clássicos do marxismo, ao abordar a luta constante de Prestes
tanto contra o oportunismo de direita quanto contra o oportunismo de
esquerda, lhe atribui posições centristas (p. 330, 333, 358, 437),
revelando desconhecimento dessa temática no marcos da teoria marxista.
Segundo tal interpretação, V. I. Lenin, que sempre combateu os desvios
de esquerda e de direita no seio dos movimentos socialistas e
comunistas, teria sido um político de centro…
LEGENDAS ERRADAS
No que se refere às legendas das fotos reproduzidas no livro,
verifica-se que inúmeras estão erradas: o tenente Victório Caneppa,
carcereiro de Prestes (à época diretor da Casa de Correção), é
apresentado como sendo o diplomata Orlando Leite Ribeiro, amigo de
Prestes; a foto da formatura de Prestes no Colégio Militar (aos 18 anos)
figura como se fosse da formatura da Escola Militar (aos 22 anos); as
fotos de Anita, filha de Prestes, não correspondem às datas que lhes são
atribuídas; o retrato da mãe de Prestes, tirado em Londres, em 1936, é
atribuído ao período do exílio no México, etc.
Estamos diante de um texto eivado de fofocas, mexericos, intrigas e
mentiras, em que se reproduzem as invencionices da viúva de Prestes,
assim como de antigos dirigentes do PCB e de comandantes da Coluna
Prestes, que viraram inimigos de Prestes. Este foi o caso de João
Alberto Lins de Barros, autor de memórias publicadas três décadas após a
Marcha, em que revela ressentimentos por seu antigo comandante haver se
tornado comunista. Da mesma maneira, vários ex-dirigentes do PCB, em
depoimentos prestados ao autor do livro, recorrem à falsificação dos
fatos para justificar seus ressentimentos por Prestes ter rompido, em
1980, com a direção do partido da qual faziam parte.
Trata-se de um livro anticomunista, cujo objetivo é a desqualificação
de Prestes, da sua mãe, de suas irmãs e também da sua esposa, Olga
Benario Prestes; a desqualificação dos comunistas em geral.
AFIRMAÇÃO MENTIROSA
O autor tem a canalhice de tentar desmoralizar minha mãe, ao afirmar
que ela teria abandonado um filho em Moscou (p. 171, 205, 495), como se
Olga fosse capaz de semelhante gesto. Os documentos citados – e pior
ainda, o autor não cita documento algum, mas apenas o “Fundo PCB no AIC”
– não são verdadeiros, pois conheço a documentação da Internacional
Comunista, inclusive a pasta referente a Olga. Se alguém, em algum
lugar, afirmou tal coisa a respeito de Olga, é mentira; conheci muitos
amigos e amigas da minha mãe da época em que ela viveu em Moscou e a
afirmação do autor é mentirosa.
O anticomunismo, disfarçado sob a capa de uma suposta objetividade
histórica, é revelado a cada página da obra de D. A. Reis, tanto através
das numerosas informações falsas que divulga quanto da repetição de
juízos de valor questionáveis. Assim, a adoção por Prestes de posições
políticas em que, incompreendido, ficou só, e as derrotas, enfrentadas
por ele e pelos comunistas durante sua longa vida, seriam episódios
desmerecedores da sua trajetória como homem público e revolucionário,
que se empenhou na conquista de um mundo sem explorados e exploradores,
sem oprimidos e opressores.
OPRIMIDOS E OPRESSORES
Ao rebater os juízos de valor adotados por D. A. Reis, vale lembrar
William Morris, o revolucionário inglês do final do século XIX, cuja
biografia constitui o primeiro trabalho importante de E. P. Thompson.
Conforme foi assinalado por Josep Fontana, W. Morris, em 1887, “ao
comemorar uma dessas grandes derrotas coletivas”, escreveu:
A Comuna de Paris não é senão um elo na luta que teve lugar ao longo
da história dos oprimidos contra os opressores; e, sem todas as derrotas
do passado, não teríamos a esperança de uma vitória final.[3]
Também Paul Eluard, o poeta da Resistência francesa, pronunciou-se a respeito das derrotas:
Ainda que não tivesse tido, em toda minha vida, mais do que um único
momento de esperança, teria travado este combate. Inclusive, se hei de
perdê-lo, outros o ganharão. Todos os outros.[4]
Embora os intelectuais a serviço dos interesses dominantes,
comprometidos com a preservação do sistema capitalista, como é o caso de
D. A. Reis, empreendam todo tipo de esforços para desmoralizar e
destruir a imagem de lutadores pelas causas populares, como Luiz Carlos
Prestes e Olga Benario Prestes, não o conseguirão, desde que as forças
democráticas e progressistas se mantenham alertas e atuantes na
preservação do legado revolucionário desses homens e mulheres que deram a
vida por um futuro de justiça social e democracia para toda a
humanidade. (artigo enviado por Sergio Caldieri)
Anita Leocádia Prestes é doutora em História Social pela UFF,
professora do Programa de Pós-graduação em História Comparada da UFRJ e
presidente do Instituto Luiz Carlos Prestes
[1] REIS, Daniel Aarão. Luís Carlos Prestes. Um revolucionário entre dois mundos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
[2] HOBSBAWM, Eric. Sobre a História; ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.286-287.
[3] MORRIS, William. Why we celebrate the Commune of Paris. Commonweal, 3, n. 62, p. 89-90, Mars 1887, apud FONTANA, Josep. A história dos homens. Bauru, SP: EDUSC, 2004, p.490.
[4] ELUARD, Paul. Une leçon de morale, prefácio, em Ouvres complètes. Paris: Gallimard, 1984. II, p. 304, apud FONTANA, Josep. Obra citada, p. 490.