Sábado, 20 de dezembro de 2014
Ter um sistema de Ensino Superior composto por universidades públicas
com um leque maior de opções de cursos e universidades privadas não
lucrativas seria bem mais adequado e produtivo. Nos países mais
desenvolvidos, esse é o modelo dominante. O Brasil possui ambas, mas
elas são minoria, justamente porque se elas fossem maioria não haveria
espaço para esse setor voltado estritamente para o lucro, sem
preocupação maior em ofertar educação de qualidade.
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Sociólogo Wilson de Almeida questiona incentivos públicos à inclusão de estudantes de baixa renda em universidades privadas que ofertam ensino "pasteurizado"
Criado em 2004, o Programa Universidade para Todos (ProUni) já garantiu
mais de 2 milhões de bolsas de estudo parciais e integrais em
universidades privadas a estudantes brasileiros de baixa renda. Ao lado
do Financiamento Estudantil (Fies), o programa é uma importante maneira
de assegurar qualificação profissional a jovens que, historicamente,
dificilmente conseguiriam espaço em universidades públicas, seja pela
forma como os vestibulares se estruturam, seja por problemas em sua
formação básica...
A lógica emergencial do Prouni, construído para suprir a baixa oferta
de vagas em universidades públicas, tem reflexos diretos no modelo e na
qualidade do ensino universitário brasileiro. Para o sociólogo Wilson
Mesquita de Almeida, o Prouni ajudou a consolidar um modelo de Ensino
Superior que prioriza o lucro em detrimento da qualidade. "Hoje, os
fundos de investimento de educação reestruturam as instituições,
reduzindo custos, com o corte de professores e outras medidas que
influenciam na qualidade", afirma o sociólogo. "O resultado é evidente: o
maior grupo educacional não usa livros, mas apostilas, que saem mais
barato. Existe uma pasteurização dos conteúdos didáticos oferecidos aos
alunos."
Autor de Prouni e o Ensino Superior Lucrativo em São Paulo, Almeida
afirma que os incentivos fiscais oferecidos às universidades privadas
pelo Prouni transformaram pequenas universidades em grandes grupos de
educação com ações comercializadas na Bolsa de Valores. “A transferência
de dinheiro público continua a pleno vapor, agora fazendo novos
milionários que vendem seus grupos a investidores estrangeiros e
nacionais", argumenta.
Fonte: Blog do Sombra / Carta Capital, por Marcelo Pellegrini
Em 2014, os valores destinados ao Prouni, via renúncia fiscal,
cresceram 166%. Já o orçamento na rede pública do Ensino Superior
aumentou 86%. Os dados reiteram a opinião do sociólogo de que houve
omissão do governo federal. Para Almeida, a política de estímulos
estatais para universidades privadas "ocorreu paralelamente a uma
omissão em desenvolver um sistema de Ensino Superior que combinasse
instituições de pesquisa de ponta com um sistema público de ensino de
massa, indo em direção oposta àquela de países desenvolvidos". Confira
abaixo a entrevista de Wilson de Almeida a CartaCapital.
CartaCapital: O que diferencia o “ensino privado lucrativo” de outras instituições privadas de ensino?
Wilson Mesquita de Almeida: Trata-se de um setor voltado para extrair
lucros com a venda de serviços educacionais em nível superior, tocado
por empresários e suas mantenedoras. Qualifico-o como ensino privado
lucrativo para diferi-lo das instituições privadas comunitárias,
confessionais, fundações de direito privado, autarquias municipais,
dentre outras, que cobram mensalidades, mas cujo lucro não é revertido
para os proprietários e seus herdeiros. Esse é o ponto essencial.
CC: Quando surge este modelo?
WMA: Esse setor surge durante o regime militar, no contexto da Reforma
Universitária de 1968. Para a sua consolidação, contou com o auxílio do
aparato estatal do período por meio da concessão de incentivos e
subvenções e mediante a interferência do Conselho Federal de Educação,
órgão na época responsável pela autorização de abertura dos cursos em
prol do segmento privado lucrativo. Os governos posteriores à ditadura
não conseguiram mudar o desenho desse sistema privado lucrativo de
Ensino Superior, ao contrário, continuaram estimulando-o. Por isso, hoje
ele é hegemônico em termos de vagas na graduação.
CC: O modelo brasileiro de “ensino privado lucrativo” é único no mundo?
Qual a diferença entre este modelo e o modelo americano, por exemplo,
com universidades privadas de excelência?
WMA: Não é só no Brasil que existe, mas aqui teve estímulos estatais
para desenvolvimento e consolidação. Isso ocorreu paralelamente a uma
omissão em desenvolver um sistema de Ensino Superior que combinasse
instituições de pesquisa de ponta com um sistema público de ensino de
massa, indo em direção oposta àquela de países desenvolvidos como
França, EUA, Inglaterra, Holanda e Austrália.
Nos Estados Unidos, por exemplo, universidades com fins lucrativos
constituem uma parcela baixíssima. São quase inexistentes. As únicas que
há são justamente os grupos que investiram ou fizeram parcerias com
universidades privadas lucrativas brasileiras. Em geral, não há
universidade que vise ao lucro na França, nos Estados Unidos, na
Inglaterra, na Alemanha, na Suécia.
CC: O Prouni é importante para garantir que estudantes de baixa renda
tenham acesso ao Ensino Superior. Mas ele é lucrativo para as
universidades privadas?
WMA: Sim. Segundo o MEC [Ministério da Educação], 40% do faturamento do
maior grupo educacional formado pela fusão entre Kroton e Anhanguera
são provenientes de recursos públicos das isenções fiscais do ProUni e
do financiamento obtido por meio do FIES [Financiamento Estudantil]. Com
o ProUni, as instituições com fins lucrativos ficam isentas de tributos
que antes recolhiam. Isso em troca de um número de bolsas muito baixo
em relação ao número de alunos pagantes.
Caso emblemático foi a adesão da Universidade Estácio de Sá ao ProUni.
Na época, ela era a maior privada do País, com mais de 100 mil alunos, e
mudou seu estatuto de filantrópica para entidade com fins lucrativos.
Com isso, obteve uma série de privilégios e benefícios: isenção de
impostos, redução da concessão de bolsas de estudo gratuitas, não
precisou pagar de forma retroativa alguns tributos devidos, além de ter
alargado o tempo para pagar a cota patronal do INSS.
Ao retirar a carga de impostos, o ProUni contribui para o lucro das
universidades. É como se uma empresa que vende um produto não precisasse
pagar o governo ou se do salário bruto do trabalhador não precisasse
extrair o imposto de renda.
CC: Dessa forma, pode-se dizer que há um financiamento indireto do governo federal a instituições privadas de Ensino Superior?
WMA: Sim, o financiamento se deu e se dá por meio das isenções fiscais.
As universidades privadas lucrativas não são financiadas apenas com
recursos vindos diretamente das mensalidades pagas pelos estudantes. É
preciso considerar também a forma indireta, pela não cobrança de
impostos ao longo do tempo e, agora, por meio do ProUni.
Nos anos 70, eram faculdades isoladas, pequenas. Hoje, são impérios,
possuem o maior número de matrículas na graduação e as maiores
faculdades já estão na Bolsa de Valores. O lobby das universidades
lucrativas, que possuem articulações políticas em todos os partidos,
conseguiu o fôlego necessário para hoje se dar ao luxo de entrar na
Bolsa de Valores. A conta, a imensa maioria dos brasileiros paga. Ou
seja, a transferência de dinheiro público continua a pleno vapor, agora
fazendo novos milionários que vendem seus grupos a investidores
estrangeiros e nacionais.
CC: A profissionalização da gestão das universidades privadas as
tornaram corporações despreocupadas com o seu produto, que é a qualidade
do ensino e a formação do aluno?
WMA: Mais ainda. Intensificou algo que já era bem complicado. Desde o
seu surgimento, durante o regime militar, a qualidade de ensino das
universidades estritamente voltadas ao lucro está comprometida. Por
exemplo, no que se refere ao corpo docente, há a contratação de
professores pagos por hora, sem um plano de carreira, e dedicados a
circular entre as várias unidades para somente dar aulas.
Algo como um “professor-feirante” que não tem tempo para pesquisar,
estudar, produzir conhecimento novo e transmitir esse conhecimento novo
para as gerações vindouras. Há problemas mais graves com universidades
que utilizam “cooperativas” para não pagarem direitos sociais
assegurados ao trabalhador formal.
Hoje, os fundos de investimento de educação reestruturam as
instituições, reduzindo custos pelo corte de professores e outras
medidas que influenciam na qualidade do ensino oferecido, para maximizar
suas ações na Bolsa de Valores, visando um alto retorno financeiro. O
nome disso é “desinvestimento” ou “saída do investimento”.
O resultado é evidente: o maior grupo educacional não usa livros, mas,
sim, apostilas, que saem mais barato. Existe uma pasteurização dos
conteúdos didáticos oferecidos aos alunos.
CC: O Brasil carece de mão de obra qualificada e de vagas no Ensino
Superior público. Programas como o Prouni e o Fies são um incentivo no
curto prazo do governo federal. Na sua opinião, o “ensino privado
lucrativo” responde a essa demanda proporcionando um aluno com os
padrões de qualificação desejados?
WMA: Não. Na verdade, sem a inversão da lógica atual predominante,
esses programas tendem a ser ainda mais prejudiciais. No entanto, para
inverter a lógica atual, tem que mexer em privilégios. Ou a sociedade
brasileira enfrenta o lobby das universidades lucrativas, regulando-o de
fato, ou ficaremos nos discursos. É importante ampliar o acesso ao
Ensino Superior, mas deve-se garantir a qualidade dos cursos ofertados. O
desafio é que a rede privada e lucrativa atualmente possui mais de 70%
de participação no Ensino Superior brasileiro.
CC: O senhor poderia comentar o lobby que a Frente Parlamentar fez pela
adoção do Prouni pelos grupos como a Anhanguera e o Kroton?
WMA: No Congresso, o lobby privatista é representado pela Frente
Parlamentar de Apoio ao Ensino Superior Privado. Ela é composta por
senadores e deputados, tanto da oposição quanto da situação, o que
demonstra a força do segmento privatista incrustado também no Poder
Legislativo. Em 2008, a frente era formada por 171 deputados e 36
senadores. Ela já chegou a pleitear, sem sucesso, mudanças na lei para
inclusão do setor de Ensino Superior privado lucrativo entre as áreas de
aplicação do FGTS.
Quanto ao ProUni, a influência pode ser constatada a partir do total de
emendas propostas pelos deputados ao Projeto de Lei do ProUni. Ao todo,
foram 292 propostas de emenda. No livro, faço uma análise comparativa
que revela a existência de claras mudanças decorrentes das
interferências do segmento privado lucrativo por meio de suas entidades
representativas e dos deputados e senadores que as apoiam.
CC: Qual é a forma de garantir padrões mínimos de formação do aluno pelas universidades?
WMA: Assegurar padrões mínimos de formação passa obrigatoriamente pela
atração de bons professores. Isso depende de uma carreira digna, com
condições de trabalho decentes e salário condizente com suas funções.
Também é preciso fornecer tempo para o professor se dedicar a estudos e
pesquisas, evitando que o profissional vire um papagaio repetindo coisas
velhas.
Além disso, é preciso que o aluno passe por um crivo mínimo, que o
possibilite acompanhar, de modo mais pleno, o curso superior. Educação
não é só com ter o diploma na mão. Sabemos há muito tempo que grande
parte das universidades privadas não faz um vestibular de verdade. É
mais para preencher formalidades junto ao MEC. Não é à toa que os
bolsistas do ProUni, geralmente, tendem a possuir desempenho igual ou
superior que os alunos pagantes.
Isso porque, além de ser uma oportunidade que ele agarrou para
conseguir fazer o Ensino Superior, o aluno do Prouni também teve de
passar por um crivo mínimo que é o Enem (Exame do Ensino Médio).
Logicamente, há outros fatores a considerar: redesenho do sistema de
Ensino Superior para um modelo que reverta a lógica de curtíssimo prazo,
currículo, forma de avaliação do estudante, complementação de conteúdos
para alunos de baixa renda, interface com o mercado de trabalho, dentre
outros. Porém, o essencial é a qualidade do professor e em uma seleção
mínima do estudante.
CC: O descredenciamento do MEC funciona?
WMA: Não. Os prazos são muito largos. Efetivamente, conta-se nos dedos
as instituições que, de fato, foram descredenciadas. Os advogados dessas
instituições utilizam-se de brechas na legislação para protelar o
processo na Justiça e, no fim, fica por isso mesmo. O MEC passa muito a
mão na cabeça de gente que não cumpre a lei. Ou seja, é omisso. O
correto seria o descredenciamento imediato de quem não cumpriu com seus
compromissos. Infelizmente, empresa, no mundo e no Brasil, só muda
quando dói no bolso, quando perde mercado. Ou muda ou desaparece.
CC: Políticas como o Plano Nacional de Educação podem ecoar num salto de qualidade no Ensino Superior?
WMA: Planos são delineamentos e propostas de metas e objetivos. É
importante, mas o que muda, de fato, é a política adotada, com estímulos
e desestímulos a determinado setor, investimentos ou a falta deles,
enfim, ações concretas.
É preciso redesenhar o sistema de ensino superior brasileiro. Uma
alternativa concreta, viável e mais sólida seria fazer o que eu chamo de
um modelo público diversificado e amplo, pois o modelo público de
Ensino Superior atual, centrado nas universidades públicas, ainda é
muito restrito, com poucas vagas e com baixo número de estudantes de
baixa renda.
Ter um sistema de Ensino Superior composto por universidades públicas
com um leque maior de opções de cursos e universidades privadas não
lucrativas seria bem mais adequado e produtivo. Nos países mais
desenvolvidos, esse é o modelo dominante. O Brasil possui ambas, mas
elas são minoria, justamente porque se elas fossem maioria não haveria
espaço para esse setor voltado estritamente para o lucro, sem
preocupação maior em ofertar educação de qualidade. Mexer nisso é
contrariar interesses e mudar o desenho do sistema de Ensino Superior
brasileiro, tanto na sua parte privada quanto na sua parte pública. Ao
fazê-lo, penso, estaríamos bem mais próximos de ter um Ensino Superior
mais democrático e de qualidade. Se o Brasil souber utilizar os novos
recursos destinados à educação nessa direção, abrirá novas perspectivas
de avanço educacional.
Fonte: Carta Capital, por Marcelo Pellegrini / Blog do Sombra
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Leia também: A desnacionalização do ensino no Brasil
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