Domingo, 7 de dezembro de 2014
Edmilson Costa
Diretor
do Instituto Caio Prado Junior e um dos editores da revista Novos Temas.
Indignação.
Frustração. Decepção. Este é o sentimento da maior parte da esquerda brasileira
que votou útil nas últimas eleições presidenciais, após o anúncio da nova
equipe ministerial do governo do Partido dos Trabalhadores (PT). Não se deve
esquecer que foi exatamente o voto da esquerda, o voto no mal menor, que fez a
diferença e tornou possível a apertada vitória da candidata Dilma Roussef na
mais acirrada disputa eleitoral dos últimos 30 anos, sem o qual estaria
encerrado o ciclo do PT na presidência da República, iniciado em 2002, com a
eleição de Lula.
Em sintonia
com o tradicional imaginário político brasileiro, herdado do período da
ditadura militar, quando todas as forças progressistas convergiam para o
candidato comum contra o regime militar, a maior parte dessa esquerda votou na
presidente Dilma, não porque concordasse com a trajetória dos governos
petistas, mas para derrotar Aécio Neves, o mal maior, cujo partido governou o
Brasil no período 1994-2002 e foi o responsável pela implantação das políticas
neoliberais, pelas privatizações, pela corrupção generalizada e pela ofensiva
contra os direitos e garantias dos trabalhadores.
No entanto,
o prêmio por este gesto generoso, uma espécie de última oportunidade ao PT, foi
muito além daquilo que o mais pessimista dos observadores da política poderia
imaginar. Menos de um mês após a vitória, o governo aumentou a taxa de juros
duas vezes e depois anunciou a nomeação do banqueiro ultra-ortodoxo Joaquim
Levy para o Ministério da Fazenda, da senadora latifundiária Katia Abreu para a
pasta da agricultura e de Armando Monteiro, presidente da Confederação Nacional
da Indústria.
Essas
indicações não significam um recuo tático de um governo sitiado pelo
conservadorismo e pela crise econômica, como poderia parecer à primeira vista.
Pelo contrário, essa foi a lógica do PT desde o primeiro mandato de Lula
quando, após a vitória em 2002, nomeou Henrique Meirelles, ex-presidente do
Banco de Boston, para a presidência do Banco Central, aumentou o superávit
primário e a taxa de juros e manteve no governo Joaquim Levy, que era da
administração de Fernando Henrique Cardoso. Tudo muito semelhante ao que está
acontecendo agora. Só não vê quem não quer ou quer se auto-enganar.
Quem
imaginava que o governo social-liberal do Partido dos Trabalhadores seria capaz
de realizar alguma mudança de rumo com o segundo mandato de Dilma ou que
votando útil estaria evitando o retorno das forças do atraso, deve estar
acumulando mais um rosário de frustrações. O que devemos esperar desse novo governo
é uma guinada mais à direita, não só porque é incapaz de romper com o modelo de
governabilidade estruturada desde Lula, como também porque as forças mais
reacionárias aprenderam que é só aumentar a pressão que o governo cede aos seus
interesses, fato que se alia à intensificação da crise econômica mundial para a
qual o Brasil não está blindado.
Uma
campanha emocional
Para
compreendermos a conjuntura na qual se realizou as eleições no Brasil, é
necessário dizer que a grande maioria dos companheiros de esquerda que votou
útil nas últimas eleições o fizeram de maneira sincera, na boa fé, com
esperança de que este voto não só evitaria o retorno do governo do PSDB, como
poderia haver ainda a possibilidade de um giro à esquerda do novo governo,
afinal no segundo mandato Dilma já não teria mais compromissos com reeleição e
na própria campanha a candidata prometeu um governo novo, com novas ideias e
nova política.
Vale
lembrar ainda que os operadores de marketing da campanha Dilma foram muito
competentes e hábeis em criar um clima medo e pânico entre as forças
progressistas, em função da possibilidade real de volta do PSDB ao governo.
Essa operação, muito bem sucedida, foi aos poucos, quebrando resistências,
dobrando os espíritos mais críticos e envolvendo até parte da militância que
estava adormecida em conseqüência das frustrações e da passividade semeada pelo
PT ao longo dos 12 anos de mandato.
À medida em
que a eleição se aproximava e que o perigo de derrota do PT se tornava um dado
da realidade, a operação pânico e medo se tornou mais aberta, estimulada
diga-se de passagem pela postura da candidata Dilma que, vestida de vermelho e
com o dedo em riste, radicalizava o discurso contra os banqueiros, contra as
elites, contra o arrocho salarial, contra a independência do Banco Central, em
defesa do desenvolvimento, do emprego, da renda, dos pobres e oprimidos.
Criou-se
assim um clima emocional como se esquerda e direita estivessem numa disputa
acirrada. A partir daí, intelectuais progressistas, personalidades, sindicatos,
movimentos sociais, ONGs, todos começaram a se manifestar abertamente pelo voto
útil. Passou–se da avaliação crítica ao voto apaixonado e adesista. Esqueceu-se
as privatizações mascaradas de parcerias público-privadas, o financiamento a
juro real zero aos grandes grupos privados para formar oligopólios
internacionais, o financiamento aos grupos educacionais privados, através do
Prouni e Pronatec, o leilão privatista do campo de petróleo de Libra, a
privatização dos hospitais universitários, o fundo de previdência dos
funcionários públicos e o pagamento exorbitante dos juros da dívida interna.
Nessa
conjuntura emocional e irracional, aqueles que ainda mantinham o senso crítico
eram criticados nas redes sociais e alguns espaços da mídia corporativa. Eram
os radicais, os politicamente irresponsáveis e insensíveis à correlação de
forças, a ultra-esquerda fazendo o jogo da direita em função de sua cegueira
política. Buscava-se assim ofuscar a análise de classe e apagar da memória a
política real dos governos petistas, como a cooptação do movimento sindical e
social, o apassivamento dos trabalhadores e a despolitização da sociedade
promovida nestes últimos 12 anos. Poucos mantiveram a postura crítica, mesmo
tendo que navegar temporariamente contra a maré.
Na verdade,
avaliando agora mais friamente, sem as paixões conjunturais, os companheiros da
esquerda que votaram útil estão se dando conta de que não estava em disputa
esquerda e direita coisa nenhuma. Essa era apenas a aparência de como o
fenômeno se apresentava para as forças progressistas, um enredo que as classes
dominantes impuseram através da mídia corporativa. O que estava efetivamente em
disputa eram os projetos de duas variáveis das frações do bloco dominante. Uma,
representada por Aécio Neves, queria governar com liberdade total para o
mercado e o capital financeiro e a outra, representada por Dilma, queria
governar com um pouco mais de Estado para que o mercado funcionasse de maneira
mais eficiente e com pouco riscos.
Quando o
PCB reuniu o Comitê Central, duas semanas antes do segundo turno, e se decidiu
pelo voto nulo, sabíamos que iríamos enfrentar uns três meses críticas de
muitos setores de esquerda, assim como fomos criticados quando abandonamos o
governo Lula em 2005 e quando rompemos com o etapismo com o XIII Congresso.
Naquele período, passamos algumas dificuldades momentâneas, mas depois a
realidade nos deu razão. Assim também aconteceu com as recentes eleições
presidenciais. Pensávamos que ao longo de três meses remaríamos contra a maré, mas
sabíamos que 90 dias não é um tempo longo para uma organização revolucionária.
Basta ter paciência e esperar o veredito da realidade.
Sem nenhum
exercício de arrogância, só um partido revolucionário, que faz uma leitura
concreta da realidade baseada no marxismo, tem segurança para tomar uma posição
política tão difícil, num momento de tanta emocionalidade, de tanta tensão da
luta de classes, de tanta confusão entre os revolucionários, remar contra a
maré do voto útil e dizer abertamente que está na hora de acabar com o baile de
máscaras, com esse ritual masoquista de sempre optar pelo mal menor nas
disputas acirradas e continuar sofrendo obsequiosamente pelos próximos quatro
anos, até a questão voltar novamente como se nada tivesse acontecido.
No entanto,
desta vez a realidade se impôs mais depressa. Alguns dias após o resultado das
urnas a presidente aumentou a taxa de juros e o preço da gasolina. Bom, mas
juros altos é algo que a sociedade brasileira já está acostumada e a gasolina
não aumentava há bastante tempo, diziam os eternos otimistas. Mas enquanto
crescia a expectativa e as pressões do mercado financeiro e da mídia para que o
governo anunciasse logo os responsáveis pela área econômica, cresciam também os
boatos de que a presidente Dilma, aconselhada por Lula, estaria cogitando
ninguém menos do que o presidente do Bradesco, o segundo maior banco privado do
País, para ministro da Fazenda. Mas uma vez a esquerda que votou útil creditou
essas notícias a boatos que comumente aparecem à vésperas de decisões
importantes.
Para quem
ainda nutria alguma ilusão em relação aos governos petistas, o golpe de
misericórdia veio com o anúncio da equipe econômica. Poucos poderiam imaginar
que, depois de uma eleição na qual a esquerda e os movimento sociais jogaram um
papel decisivo para a vitória de Dilma, seria anunciada uma equipe econômica
tão ortodoxa e conservadora, liderada por um banqueiro, como o trio constituído
por Joaquim Levy, Kátia Abreu e Armando Monteiro Filho, o primeiro
representante dos banqueiros nacionais e internacionais, o segundo representa
os latifundiários mais atrasados do País e o terceiro representante do grande
capital. Quem são esses personagens?
Joaquim
Levy é o típico Chicago Boy e um quadro de ideias neoliberais: formado em
engenharia naval pela UFRJ, fez doutorado na Universidade de Chicago. Depois
trabalhou no FMI e no Banco Interamericano de Desenvolvimento. Foi secretário
de Política Econômica na administração de Fernando Henrique Cardoso, secretário
do Tesouro do governo Lula no período do ultra-ortodoxo Antônio Palocci. Quando
foi nomeado ministro da Fazenda era superintendente do Bradesco Asset
Management. Foi ativo participante da equipe do programa de Aécio Neves,
coordenado por Armínio Fraga, e certamente estaria nesse governo caso tivesse
vencido a disputa presidencial.
Kátia Abreu
é a representante típica dos latifundiários e do agronegócio, ex-integrante do
DEM, um partido de direita, ela é contra a reforma agrária, contra a demarcação
das terras indígenas e quilombolas, inimiga do MST e favorável a um código
florestal que libera os proprietários de terra a não rematarem as propriedades
devastadas. Armando Monteiro é presidente da Confederação Nacional da Indústria
e foi candidato derrotado do PTB ao governo de Pernambuco. Um homem ligado aos
negócios do grande capital. Como é a área econômica que manda efetivamente na
política geral do governo, então já se pode imaginar o que vem pela frente.
Um
estelionato eleitoral
Por mais
que se queira manter as aparências, a nomeação da equipe econômica liderada por
Joaquim Levy significa, na prática, um estelionato eleitoral. Todos lembram da
campanha recente, quando Dilma esbravejava contra os banqueiros, contra as
elites, contra os juros altos, prometia um governo novo com ideias novas, conclamava
a militância a barrar o retorno do PSDB e capital financeiro ao poder. Tudo
isso se esvaiu no ar como uma bruma passageira. Pode parecer irreal,
incompreensível, mas esta é a realidade concreta da trajetória do PT no
governo.
Muitos
companheiros de esquerda imaginavam que, diante de um gesto tão generoso da
militância nas eleições, que acreditou ser verdade as mensagens da presidente,
Dilma poderia tomar algumas medidas para compensar aqueles que lhe salvaram o
mandato. Mas a presidente fez exatamente o contrário: com seu “coração valente”
esnobou seus companheiros e os que lhe salvaram da forca, trocou de roupa, e
foi se refastelar nos braços dos banqueiros, dos latifundiários, agronegócio e
do grande capital, justamente os principais inimigos do povo brasileiro, que
tanto Dilma jurou combater.
Agora,
resta aos companheiros de esquerda que votaram no mal menor apenas lamentar a
capitulação política e moral, a hipocrisia, a sencerimômia e a forma com que
foram tratados. Ou então fazer manifestos moralmente corretos, mas sem nenhum
efeito prático, como um que está circulando nas redes sociais, assinados por
personalidades sociais e políticas e movimentos sociais, como o economista Luiz
Gonzaga Beluzzo, o coordenador do MST, João Pedro Stédile e o teólogo Leonardo
Boff.
No
manifesto eles afirmam que a presidente ganhou não porque cortejou as forças do
rentismo e do atraso, mas porque milhares de militantes voluntários, dos
movimentos sociais e dos sindicatos foram capazes de reverter a ameaça de
regressão que seria o governo Aécio Neves. “A presidente parece levar mais em
conta as forças cujos representantes derrotou do que dialogar com as forças que
a elegeram … A sociedade brasileira não pode ser surpreendida depois das
eleições e tem o direito de participar dos rumos do governo que elegeu”. Com
todo respeito, é muita ingenuidade política acreditar que esse governo pode
mudar de direção com um simples manifesto político. Fica registrado o direito
de espernear!
Essas
nomeações podem ser consideradas tão esdrúxulas, que o próprio mercado foi
tomado de surpresa com a indicação de Joaquim Levy e da senadora Katia Abreu,
tanto que logo após o anúncio a Bolsa de Valores subiu 5% e a mídia mudou de
posição e passou a elogiar a escolha. De tão inusitado, até mesmo Aécio Neves,
o candidato derrotado, resolveu ironizar a escolha presidencial. “Como disse
meu amigo Armínio Fraga, escolher Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda no
governo do PT, é o mesmo que convidar um quadro da CIA para comandar a KGB”.
Com esta
equipe econômica Dilma jogou na lata de lixo não só as promessas de campanha,
mas na prática irá implementar a agenda do candidato derrotado, com todas as
consequências sociais e políticas para os trabalhadores. Mas essa opção pode
ser também perigosa para os interesses do PT, pois a estratégia de adular o
mercado financeiro, o grande capital e o agronegócio pode se constituir numa
canoa furada, pois esses setores vão continuar pressionando por mais
concessões, mais medidas antipopulares. Até o momento em que resolverem deixar
de terceirizar o Planalto. Vender a alma ao diabo nunca foi um bom negócio.
Pelo menos,
esse episódio deixou uma grande lição: o voto útil, o voto no mal menor, está
com seus dias contados no Brasil. A partir de agora, as pessoas estrão
vacinadas, mais espertas quanto as verdadeiras intenções do Partido dos
Trabalhadores. Essa talvez tenha sido a última oportunidade em que o PT teve
condições de se apresentar como organização capaz de ainda sensibilizar setores
de esquerda a lhe dar um voto de confiança. O estelionato eleitoral não terá
muito futuro a partir de agora.
Isso será
melhor para toda a esquerda que quer realmente as transformações sociais no
Brasil. Agora, as ilusões com o caminho puramente institucional estão chegando
ao fim. Torna-se necessário construir outras alternativas para enfrentar o
período duro que se aproxima. E essa alternativa não passa mais por miragens
como o “governo em disputa” ou que em algum momento do futuro o PT mudará em
função da crise. Quando maior a crise, maior será sua guinada à direita,
maiores serão as concessões feitas aos inimigos do povo brasileiro. Quem quiser
se enganar pode continuar lutando por dentro do PT, mas a partir de agora isso
representará acomodação e oportunismo político.
A
alternativa que se desenha com este novo governo, com a crise mundial e suas
repercussões no Brasil, é a organização dos trabalhadores, a reconquista dos
sindicatos dirigidos pelos pelegos cor-de-rosa da CUT e os pelegos amarelos da
Força Sindical, as greves à revelia das direções sindicais, como já ocorreu com
os garis do Rio de Janeiro, os operários do Complexo Petroquímico também do Rio
e os motoristas de ônibus de São Paulo, apenas para citar os três casos mais
emblemáticos. É hora de retomar as manifestações de rua como as de junho, só
que agora mais organizadas e com direção política, e trabalhar pela construção
da Frente Pelo Poder Popular, de forma a reunir condições para colocar o
proletariado em movimento e transformar em plataforma política o grande
descontentamento da população contra a ordem do capital em frangalhos, apesar
de sua aparência monolítica.
Para esta
tarefa cremos que é possível contar com a imensa maioria dos companheiros de
esquerda que votaram útil para barrar o mal maior. Como podemos ler na
resolução do Comitê Central do PCB, elaborada duas semanas antes da eleição:
“Respeitamos aqueles companheiros de esquerda que consideram que as diferenças
entre PSDB e PT ainda são relevantes e que votarão em Dilma como um “mal
menor”. Contamos com esses companheiros nas acirradas lutas que se aproximam”.
Esta é a tarefa que o proletariado espera de suas organizações!
* Diretor
do Instituto Caio Prado Junior e um dos editores da revista Novos Temas.