01/12/2016 11h29
O presidente da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (AMPCON), Wallace Paiva Martins Junior, divulgou uma carta aberta à sociedade em que fala sobre a votação, na Câmara dos Deputados, do projeto de lei 4.850/2016 – que continha as propostas das 10 Medidas de Combate à Corrupção. De acordo com a carta, o projeto foi desfigurado pelos deputados e, assim, pode abrir espaço para a impunidade.
Leia a carta na íntegra.
O FANTASMA DA IMPUNIDADE
por Wallace Paiva Martins Junior*
Um fantasma ronda o Brasil. É o fantasma da impunidade. Num país em que grassam em nível endêmico a corrupção e a improbidade, a Câmara dos Deputados ao apreciar o pacote denominado “10 Medidas contra a Corrupção”, projeto de lei oriundo do Ministério Público e respaldado pela população (PL 4.850/2016), desfigurou-o completamente na calada da noite e acabou aprovando a responsabilização de magistrados e membros do Ministério Público cuja função constitucional é reprimir ilícitos (entre eles, a corrupção). Soaria como anedota se não fosse dura a realidade. Trata-se de investida de imunidade do poder que já foi tentada antes através da Medida Provisória n. 2.088-35, de 27 de dezembro de 2000, e que não foi reeditada antes de sua conversão em lei em razão da firme resistência havida.
Mas, as inovações não cessam aí: além da perspectiva de responsabilidade pessoal, há a imposição de ônus de sucumbência e de verdadeira mordaça – medida que se afigura incompatível com a transparência que se exige também dos órgãos de controle do poder. Se à Câmara dos Deputados não convinha aprovar integralmente as “10 Medidas contra a Corrupção”, que o fizesse assumindo os ônus junto ao eleitorado. Porém, o que sobressai como enredo de tragédia é a adoção de cerceio à independência do Poder Judiciário e do Ministério Público, fulminando um dos pilares da democracia republicana: a responsabilidade no exercício do poder.
Decerto, tal se consumou como estratégia alternativa de recuo à acre tentativa de anistia do “caixa 2” eleitoral. Em essência, o que se denota nesse complexo processo é a mais completa subversão da ordem lógica das coisas: em vez de se aprimorar a luta à corrupção, projeta-se a punição dos controladores. Ora, tal medida se apresenta como supérflua e despicienda porque magistrados e membros do Ministério Público já respondem por eventuais abusos e disfunções perante órgãos criados pela Reforma do Judiciário operacionalizada pela Emenda Constitucional n. 45/04: o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e o CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público), cuja composição exógena com membros indicados por outros Poderes, e com a fiscalização da Ordem dos Advogados do Brasil, inibe o corporativismo. Fica no ar a azeda sensação de que se vive um pesadelo.
A Constituição de 1988 não por acaso elevou a moralidade no trato da coisa pública ao patamar de direito subjetivo público – isto é, direito de toda a pessoa e da sociedade – afirmando seu compromisso com o resgate de padrões éticos e republicanos. Corrupção e improbidade encontram suas raízes no patrimonialismo que sempre imperou nas relações entre os setores público e privado e cujos efeitos são deletérios. Além de convergirem ao solapamento das instituições são os responsáveis pela baixa qualidade de obras e serviços públicos, pelo enriquecimento ilícito, pelo desvio ou desperdício de recursos públicos, pelos diminutos índices de desenvolvimento social e econômico.
Aguarda-se que o Senado da República e o Presidente da República, atentos a essa contextura, não percam a oportunidade de contribuir para a higienização moral da nação, e ceifem essa lamentável iniciativa. Afinal, para se construir a nação esboçada na Constituição de 1988 depende-se muito do controle exercido pelo Poder Judiciário e pelo Ministério Público aos detentores do poder, principalmente para inibir ou reprimir condutas que nem de longe são predicadas como republicanas.
São Paulo, 30 de novembro de 2016.
*Procurador de Justiça (MPSP), Doutor em Direito do Estado (USP), Professor de Direito Administrativo (UNISANTOS) e Presidente da Associação dos Membros do Ministério Público de Combate à Corrupção (AMMPCOC).