Sábado, 10 de dezembro de 2016
Do Correio da Cidadania
www.correiocidadania.com.br
por Gabriel Brito, da Redação
Enquanto o país entra no último mês do ano sob intensa crise e o
governo tenta emplacar algum projeto como resposta, a onda de ocupações
de estabelecimentos de ensino segue na ordem do dia. Após a eclosão das
ocupações de escolas do ensino médio em vários estados, agora observamos
a extensão do fenômeno às universidades públicas, que já têm
experimentado os remédios do ajuste fiscal e do corte de investimentos
públicos nesses últimos dois anos. Sobre todo o contexto, entrevistamos
Roberto Leher, reitor da UFRJ.
“O diagnóstico elaborado pela Casa das Garças é simplório: a crise é
fiscal. É preciso cortar fundo os gastos sociais para proteger o
pagamento do serviço e dos juros da dívida assumida pelo Estado. Isso
não é novidade. Diferente é a profundidade dos cortes. Essa é a saída da
crise apontada pela área econômica e demandada por importantes frações
burguesas: a solução da crise exige o fim do pacto social expresso na
Constituição de 1988 e a volta ao padrão de acumulação vigente na
ditadura”, analisou, enfatizando na entrevista o peso do lobby de
institutos privados da área.
Além de criticar o predomínio da visão empresarial nas políticas em
educação em gestação no atual governo, Roberto Leher fala de uma
judicialização da política que, para além dos holofotes de Brasília,
atinge a educação em cheio. No fim das contas, infere-se que o país está
diante de uma plataforma que visa manter as estruturas de dependência
econômica e baixa inovação científica.
“A contrarreforma do ensino médio objetiva calibrar a formação na
educação básica às necessidades de força de trabalho no país. É parte do
movimento de volta ao pré-1988. A avaliação dos setores dominantes é de
que o grosso da força de trabalho irá desempenhar trabalho simples, por
isso, o empobrecimento da formação pretendida, algo muito semelhante à
formação do nível médio preconizada pela Lei 5.692/1971, vigente na
ditadura empresarial-militar”, analisou.
Dessa forma, e até pelos escassos resultados conquistados pelo
governo no sentido de radicalizar o ajuste fiscal de Dilma Rousseff,
Roberto Leher projeta um tempo de bastante movimentações de contestação,
agravado pela desmoralização geral da classe política e seus vínculos
com a corrupção.
“O governo perdeu seu núcleo político. Outros grupos ocuparão esse
espaço. E as delações do grupo Odebrecht irão agravar o quadro. Isso
gerará crises imprevisíveis, em particular em virtude do enigma da
reorganização da classe trabalhadora. Se as lutas ganharem densidade, a
saída será positiva, caso contrário, o cenário será tenebroso. A crise é
pesada demais para os que vivem do próprio trabalho e são explorados. O
desmonte da imagem projetada para o pós-impeachment ocorre de modo
muito forte”, afirmou.
A entrevista completa com Roberto Leher pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Primeiramente, como você tem vivido
esses primeiros meses de governo Temer e quais reflexos já seriam
visíveis no cotidiano do país?
Roberto Leher: Para utilizar o eufemismo do Ministro
Lewandowski, publicizado em um evento na USP em setembro, o atual
governo resulta de um tropeço na democracia brasileira. A rigor, um
processo dramático em que determinadas frações burguesas dominantes,
lideradas, entre outros, pela FIESP – e com o lastro ideológico dos
intelectuais vinculados ao setor rentista, especialmente o da Casa das
Garças, e de representantes do Judiciário – lograram hegemonia sobre
outras frações burguesas e, com apoio decisivo dos grandes meios de
comunicação e de grupos neopentecostais, hegemonia sobre importante
fração das classes subalternas.
Claro que tal hegemonia expressa, ao mesmo tempo, e logicamente, a
perda de capacidade hegemônica do PT e da CUT, situação evidente nas
Jornadas de Junho de 2013, na pífia reação ao impeachment, nas
eleições municipais de 2016 e nas lutas contra a PEC 241/16 (PEC
55/2016). É pueril afirmar que o tsunami político e econômico em curso
decorre apenas das corporações da mídia. Existe uma expressão material
que fundamenta a perda de apoio do governo Dilma: uma severa crise
econômica e social que já é mais longeva do que a terrível crise de
1982.
Estamos vivendo tempos de incerteza, tempos de indeterminação, tudo
isso temperado por inédita ação de setores do judiciário como partido,
incidindo, sobretudo, sobre a área da educação, ecoando vozes da Escola
Sem Partido. Até tortura de estudantes foi preconizada! Como vivemos
isso nas universidades? As reuniões com as autoridades dos ministérios
da Educação (MEC) e da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) estão
acontecendo, com altos e baixos, mas, objetivamente, o novo governo “se
atribui” uma legitimidade que pretensamente o torna uma esfera de poder
impermeável à soberania popular e ao debate realmente democrático. A
junção do MCTI ao Ministério da Comunicação nunca esteve em debate,
assim como as mudanças na SECADI (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão) e na reforma do Ensino Médio.
A área educacional é coadjuvante frente ao Planejamento e ao
Ministério da Fazenda, algo que, a rigor, não é de hoje. Tudo isso sob
um terreno movediço. A PEC 55/2016, se aprovada, irá promover a maior
contrarreforma do Estado da história. De fato, todas as áreas que
possuem interface com a universidade serão atingidas: as políticas de
conteúdo nacional da indústria de petróleo, o SUS, agricultura, meio
ambiente, Pesquisa e Desenvolvimento, educação básica pública,
seguridade social etc. O próprio conceito de universidade da
Constituição Federal estará em questão.
Correio da Cidadania: O que pensa dessas reformas propostas pelo novo governo como suposto caminho de saída da crise?
Roberto Leher: O diagnóstico elaborado pela Casa das
Garças é simplório: a crise é fiscal. É preciso cortar fundo os gastos
sociais para proteger o pagamento do serviço e dos juros da dívida
assumida pelo Estado. Isso não é novidade. Diferente é a profundidade
dos cortes. Somente um governo não eleito poderia dar conta dessa
tarefa: retirar todos os ganhos sociais da Constituição de 1988. Essa é a
saída da crise apontada pela área econômica e demandada por importantes
frações burguesas: a solução da crise exige o fim do pacto social
expresso na Constituição de 1988 e a volta ao padrão de acumulação
vigente na ditadura.
De fato, com a PEC 55 o governo pretende colocar um fim na vinculação
dos benefícios da seguridade ao valor do salário-mínimo, nas verbas
constitucionalmente asseguradas para educação e saúde, gratuidade do
ensino nos estabelecimentos oficiais, regime jurídico único para os
servidores, aposentadoria do serviço público, universalidade do Sistema
Único de Saúde, preservação de áreas indígenas, função social da terra,
tudo, enfim, que diz respeito aos direitos sociais. Tais medidas
aprofundarão a condição capitalista dependente, notadamente a exploração
e a expropriação dos trabalhadores, o saqueio dos recursos naturais, a
simplificação das cadeias produtivas. O país ficará mais vulnerável
frente à crise mundial.
Diferente dos prognósticos difundidos pelos setores dominantes, a
mudança de governo está acelerando as expressões da crise, como o
desemprego, a perda de poder aquisitivo do trabalho e o desmonte de
postos de trabalho mais complexos. Um Estado desprovido de ação
protagônica no financiamento à ciência, à tecnologia, à cultura e capaz
de promover políticas ativas na esfera econômica. Certamente, novas
configurações da crise acontecerão. Mas uma saída positiva para essa
crise, de longa duração, dependerá do protagonismo dos que vivem do
próprio trabalho e são explorados.
Correio da Cidadania: O que seria da universidade pública no contexto da PEC 55, chamada de Teto de Gastos?
Roberto Leher: Como disse, trata-se de uma reforma
não consentida do Estado. Modifica o fundamental da Seguridade Social,
desvinculando o valor dos benefícios do salário mínimo; quebrará a
universalidade do SUS; desvinculará os recursos constitucionalmente
assegurados para a educação e a saúde.... Trata-se de um congelamento
das despesas primárias correntes, ou seja, um congelamento do Estado
Social para proteger o pagamento do serviço da dívida que, seguramente,
seguirá em curva ascendente, e poderá ser redimensionado, a maior, com a
assimilação das dívidas dos estados e com o efeito Trump. Como já
sinalizei, todo o sistema de ciência e tecnologia e as universidades
federais e estaduais serão duramente atingidos. É o próprio futuro da
instituição pública, autônoma e crítica que estará em questão.
Correio da Cidadania: E a reforma do ensino médio, como entra neste contexto e como você a analisa?
Roberto Leher: A contrarreforma do ensino médio
objetiva calibrar a formação na educação básica às necessidades de força
de trabalho no país. É parte do movimento de volta ao pré-1988. A
avaliação dos setores dominantes é de que o grosso da força de trabalho
irá desempenhar trabalho simples, por isso, o empobrecimento da formação
pretendida, algo muito semelhante à formação do nível médio preconizada
pela Lei 5.692/1971, vigente na ditadura empresarial-militar.
Como parte desse processo de ajuste da formação às demandas do
capital, a contrarreforma objetiva incidir, também, sobre a socialização
ideológica da juventude, daí a extinção da formação em artes,
sociologia, filosofia, expressões corporais. É a negação da imaginação
inventiva, utilizando uma expressão cara a Florestan Fernandes.
Correio da Cidadania: Nesse sentido, o que comenta da onda de
ocupações de escolas e universidades que eclodiu em São Paulo em 2015 e
tomou proporções nacionais?
Roberto Leher: Ocupar o espaço escolar ou da
universidade é um gesto político. É o movimento de “tomar para si” e,
nesse caso, reivindicar legitimamente o espaço coletivamente,
objetivando assegurar que o mesmo possa ser o lócus das atividades
previstas no ordenamento constitucional e nos projetos sócio-históricos.
Por que ocupar? Como vimos em São Paulo, lutar para que as escolas
não fossem descaracterizadas como lugar de ensino minimalista à classe
trabalhadora. É emocionante encontrar nos atos e gestos da juventude
amor à ciência, à cultura, ao diálogo e, ainda, disposição militante de
fazer do ato educativo um ato vivo, participativo, em que os estudantes
não são coisa inerte, mas a verdadeira pulsação da escola!
Correio da Cidadania: Há perseguição política nos ambientes de ensino? O que você pode contar a este respeito?
Roberto Leher: Sempre os ambientes de ensino
comportam tensões, pois muitas vezes perspectivas teóricas distintas
estão presentes no ambiente acadêmico. Existe um determinado ethos
acadêmico que busca manter essas divergências como processos naturais da
vida acadêmica. Mas é certo que nenhuma instituição vive, plenamente,
um ambiente habermasiano, em que prevalece a pretensão de validade do
melhor argumento. Existem mecanismos sutis no campo científico que, como
mostra Bourdieu, é um campo de poder. O que é novo é a judicialização.
Entes externos, como setores do MPF, se acham no direito de se imiscuir
nos assuntos internos das instituições. Isso é um gravíssimo precedente.
Não há como aceitar a flexibilização da liberdade de cátedra.
Correio da Cidadania: Quanto à greve dos servidores públicos
do Rio, o que ela sinalizaria? O que estaria em jogo neste momento atual
para as forças em oposição?
Roberto Leher: A greve dos servidores públicos
incide sobre uma situação dramática e impensável há poucos anos: a
falência do estado do Rio de Janeiro. Foi o corolário de medidas que
aconteceram nos subterrâneos. A imensa isenção tributária, a má gestão
dos royalties do petróleo e os gastos não republicanos geraram uma crise
que é funcional ao grande capital, pois lastreia a ideologia da crise
fiscal, pavimentando as avenidas que conduzirão ao pacto da Constituição
de 1988. A esquerda no Rio demonstrou vigor nas eleições municipais,
mas ainda carece de capacidade convocatória e de organização para fazer
frente ao desmonte do estado. Mais do que o cálculo eleitoral, urge
ações que fortaleçam a defesa dos direitos dos trabalhadores.
Correio da Cidadania: Diante de todo esse quadro, acredita
que Temer terá estabilidade até 2018? O que imagina do país, em suas
mais importantes frentes, até lá?
Roberto Leher: Não creio em estabilidade. Os
indicadores econômicos e sociais pioram de modo rápido e destrutivo. O
governo perdeu seu núcleo político, em virtude das denúncias de
corrupção. Outros grupos ocuparão esse espaço. E as delações do grupo
Odebrecht irão agravar o quadro. Dificilmente, as forças aliadas não
serão golpeadas. Mas os setores dominantes entendem que esse governo
deve ser sustentado para levar adiante o desmonte da dimensão social da
Constituição. E isso gerará crises imprevisíveis, em particular em
virtude do enigma da reorganização da classe trabalhadora.
Se as lutas ganharem densidade, a saída será positiva, caso
contrário, o cenário será tenebroso. Penso que haverá um ciclo
ascendente de lutas. A crise é pesada demais para os que vivem do
próprio trabalho e são explorados. O desmonte da imagem projetada para o
pós-impeachment ocorre de modo muito forte. Isso exigirá debates
substantivos dos setores democráticos. Não basta dizermos “Não!” Será
preciso indicar outras possibilidades para forjar um outro porvir para
os povos.
Gabriel Brito é jornalista e editor-adjunto do Correio da Cidadania.
A publicação deste texto é livre, desde que citada a fonte e o endereço eletrônico da página do Correio da Cidadania