Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

domingo, 11 de agosto de 2019

‘Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro’

Domingo, 11 de agosto de 2019
Da

Se preferir, beba direto na fonte

11/08/19 por Mariana Ferrari

Em 2018, Sônia flertou de perto com a morte, exausta por carregar a família e a mãe enferma nas costas; a música foi o seu ‘refúgio do sofrimento’ 

‘Foi bem no ano passado. As coisas começaram a acumular e eu tive que resolver tudo sozinha e aquilo me trouxe aquela angústia por dentro’, disse Sônia em sua casa | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

“Uma vez eu senti uma vontade de sumir, de não aparecer mais para ninguém. Aquilo me trouxe uma perturbação na cabeça que eu falei: ‘Ah, eu vou sumir, sem rumo para voltar’. Isso deixa a pessoa sem rumo, para ver qual caminho ela começa tudo de novo. Foi bem no ano passado. As coisas começaram a acumular e eu tive que resolver tudo sozinha e aquilo me trouxe aquela angústia por dentro. Foi quando eu parei e falei depois: ‘Se eu fazer, vai ser um fracasso meu’”.

Foi no ano de 2018 que Sônia quis desistir. Parecia não suportar a dor de carregar sobre si a responsabilidade da vida. Sua mãe enferma e uma irmã menor de idade dividindo o mesmo teto em Americanópolis, uma das periferias da zona sul de São Paulo. O pai morto e as outras quatro irmãs longe de casa. A única garantia de um prato com arroz e feijão na mesa vinha da menina de sorriso largo e cachos volumosos. Como auxiliar de limpeza, Sônia garantia, e garante, a sobrevivência da família. Foi assim, com o chumbo nos ombros, que Sônia desejou a morte.

Com a voz rouca e os pés cobertos por uma meia branca, Sônia transforma sua vida em versos antes cantados por Belchior. Em 1976, o cantor cearense cantava sobre um “Sujeito de Sorte”, que a vida tinha escolhido matar, mas ele tinha escolhido não morrer: “Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro. Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morrer”.
Em Americanópolis, no ano de 2019, a canção ganha uma nova versão – entonada por uma mulher negra. Ainda que sem perceber, Sônia iguala sua narrativa de vida com a de Belchior. Sentada na única cama de casal da casa de concreto, dentro de um quarto que divide os metros quadrados com uma geladeira, uma pia e um fogão, Sônia protagoniza a narrativa de quem sabe como é morrer e continuar viva.

Sônia Moreira nasceu e foi criada na mesma casa que abriga enfermos. O pai, Joaquim Mario, diabético, morreu na mesma cama que a família encontra os sonhos. Aos 17 anos, Sônia soube que a desgraça de quem nasce pobre no Brasil não acaba com a morte.

‘As coisas começaram a acumular e eu tive que resolver tudo sozinha e aquilo me trouxe aquela angústia por dentro. Foi quando eu parei e falei depois: ‘Se eu fazer, vai ser um fracasso meu’, revela. Sônia | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

O pouco dinheiro das cinco filhas e da mãe, Maria Aparecida, serviu para proporcionar o pouco de dignidade que ainda restava para Joaquim. Quando ele começou a se aproximar do seu encontro com a morte, a família juntava os trocados para comprar um caixão “para fazer um velório digno”. Sônia sabia que a prefeitura queria enterrar o homem que lhe trouxe à vida em uma caixa de papelão e aquilo as seis mulheres de sobrenome Moreira não iriam tolerar.

Sônia descobriu o que era ser pobre aos nove anos, quando abandonou a infância para cuidar de carros estacionados. Daquele dia em diante, ela nunca deixou de trocar as horas do dia por dinheiro “para poder trazer, pelo menos, um arroz com feijão” para a família. Encaixando a infância, os estudos e o trabalho em um dia de somente 24 horas, Sônia ainda arrumava um espaço para sonhar.

A parede cinza da casa de concreto em Americanópolis é o lugar de lembranças da casa, dezenas de fotos estão pregadas na parede | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Passando a porta de entrada de três trancas, na parede em cima da cama, há um espaço que abriga lembranças. Entre as dezenas de fotos pregadas na parede cinza, um retrato com moldura dourada se destaca. Na foto, uma menina sorridente segura um bastão de veludo azul. Era Sônia na formatura da oitava série. “Eu tava bem mega feliz”, relembra.

Na foto, os olhos de Sônia brilhavam para além de uma emoção, brilhavam porque sonhavam. Naquela formatura, Sônia imaginava-se vestindo jaleco e estetoscópio. “Eu falava para o meu pai sempre: ‘Quando eu crescer eu vou ser médica’”. Para as filhas, Joaquim desejava o diploma universitário. Morreu sem nenhuma filha ter cursado uma faculdade. Sônia foi a única que terminou o ensino médio. A caçula da família, Vanessa, tem 17 anos e está seguindo os passos da irmã. “Minha mãe é analfabeta. Nunca foi para a escola”, completa.

Sônia mostra uma foto da caçula da família, Vanessa | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Pintando paredes em troca de dinheiro, Joaquim soube que vida dura mesmo era de quem não estudava. Dizia para as filhas que estudo era premissa de dignidade: “Estuda para não lavar banheiro”, bradava o pai.

Hoje, Sônia sustenta a mãe enferma e a irmã Vanessa com o registro de auxiliar de limpeza. Começou aos 18 anos. Entre um pano e outro, a medicina foi se distanciando a ponto de ser esquecida. Um novo sonho apareceu quando a mãe ficou entre a vida e morte. Foi no desespero que Sônia decidiu cantar – para fugir de uma vida que só lhe maltratava.   

Durante um tratamento de câncer de mama, Maria Aparecida descobriu outra enfermidade – a mesma que a amaldiçoara o marido. 600 foi o número que a glicose de Maria chegou. Como consequência, sofreu um AVC, dentro da mesma casa de concreto acostumada em presenciar doença e morte.   

Sem refúgio de ninguém, Sônia encarou a doença da mãe com uma braveza incomum para a maioridade recém completada. Para o tempo passar depressa e a dor não prevalecer, Sônia cantava um louvor triste que arrepia os ouvintes. A voz que saía sem ela nem pensar, passou a ser sua marca registrada. Nascia a vontade da própria voz. Cantar e existir.
   

Maria ficou dois meses internada. No começo, hospedou-se no Hospital Saboya e depois no Jardim Sarah, ambos da rede pública de saúde e na zona sul da cidade. No último, o médico deixara claro: “Não sei se sua mãe vai sair viva daqui e se sair vai ser com sequelas”. Sônia passou a acreditar no impossível, oferecendo a Deus o que tinha de melhor: sua voz. Cantava quase que sem parar.   

As noites de sono profundo desapareceram. Sônia praticamente não dormia. Já acordava com o relógio apontando o pouco tempo do dia. Despertava já com os braços em movimento, preparando o almoço da irmã caçula. Era de casa para o hospital, do hospital para o trabalho e do trabalho para casa. “É difícil você não ter com quem desabafar, com quem abraçar. Eu encontrei a música como um refúgio do sofrimento”, completa.   

Sônia sorri ao lembrar de boas lembranças | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Descobrir-se como mulher que canta não estancou a dor. Enquanto cantava, Sônia era rebaixada pela própria família. O receio passou a prevalecer o desejo. Ela queria a música, mas escutava um “você não canta bosta nenhuma” de pessoas que dividem o seu mesmo sangue. Foi deixando a coragem de lado e abrindo espaço para a amargura. “A rejeição deixa meio apreensiva de fazer as coisas. Porque eu acho que é da família que tem que vir o apoio e esse apoio eu não tive. Só do povo de fora”, desacredita.

E se o apoio deles [familiares] não vier?    

Eu nunca desisti das minhas coisas, sempre lutei pelo o que eu quis. E sempre vou continuar cantando por ali.    

Hoje, qual é a sua vontade?    

Cantar, trazer algo melhor para a minha mãe. Tirar ela desse lugar. Trazer uma coisa bacana, confortável. Como eu falei, minha casa é muito humilde e eu pretendo dar coisa melhor para a minha mãe.    

Como?   

Construir uma casa melhor. Trazer uma vida melhor. E como eu trabalho de auxiliar de limpeza não dá para mim trazer essa casa para frente. Conforto dela é conforto meu também.   

Isso você sempre pensou, desde que começou a trabalhar?   

Sempre.    

Suas irmãs pensam junto ou é uma coisa sua?   

Só minha só. Tudo que eu penso é só eu.    

Você tem vontade de pegar o microfone e cantar no meio do centro de São Paulo?   

Meu sonho.   

O que falta?  

O que falta em mim? Coragem e apoio. Apoio de vocês eu já tenho. Da família, se não tiver eu vou sozinha mesmo. Eu sempre pensei nisso. Já que falaram que eu não canto nada, que minha voz é feia. Até quando eu canto em casa o povo reclama.    

Você já pensou em como realizar esse sonho?  

Não.    

Você fala com alguém sobre o seu sonho?   

Eu guardo tudo pra mim.    

O que você guarda?   

Guardo os meus sonhos. Sempre peço para Deus que sejam realizados todos os meus sonhos. Dar um conforto melhor para a minha família e ser reconhecida, assim como eu fui por ti. 

‘Eu encontrei a música como um refúgio do sofrimento’, diz Sônia, emocionada | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Entre uma limpeza e outra, Sônia aproveita a brecha da janela da loja que trabalha para admirar os artistas de rua do centro de São Paulo. Com os olhos e ouvidos atentos, ela enxerga aquilo como o sopro de coragem. Vê nos outros o seu próprio desejo. “Queria ter a coragem que eles têm”.   

Vivendo na casa de enfermos, que divide o pouco espaço com uma galinha e um cachorro de estimação, Sônia não se livrou da praga da doença. Diagnosticada com problemas na tireoide e com epilepsia ela usa o pouco tempo do dia para cuidar de si. E a música vem como descarrego, como sopro de vida.

Sônia protagoniza a narrativa de quem sabe como é morrer e continuar viva, sonhando.