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(Millôr Fernandes)

domingo, 4 de agosto de 2019

Controlador-Geral do DF: O servidor público distrital não pode contratar, direta ou indiretamente, com os órgãos e entidades do governo do Distrito Federal

Domingo, 4 de agosto de 2019
Por
Aldemario Araujo Castro
Advogado, Mestre em Direito, Procurador da Fazenda Nacional, Secretário de Estado Controlador-Geral do Distrito Federal
Brasília, 4 de agosto de 2019

         O servidor ou dirigente de órgão ou entidade contratante ou responsável pela licitação não pode participar, direta ou indiretamente, da licitação ou da execução de obra ou serviço e do fornecimento de bens a eles necessários. Essa é a regra inscrita no art. 9o, inciso III, da Lei n. 8.666, de 1993 (lei nacional reguladora das licitações e contratos administrativos).

         Assim, o servidor público, efetivo ou ocupante de cargo em comissão/função gratificada, não pode firmar contratos com o Poder Público. A vedação compreende o ajuste direto com a pessoa física e o vínculo contratual formado por pessoa jurídica da qual o servidor participa do quadro societário.

         A lição de Marçal Justen Filho, um dos maiores especialistas na área, aponta: “8) Impedimento do servidor e o princípio da moralidade. 

Também não podem participar da licitação o servidor ou dirigente do órgão ou entidade contratante ou responsável pela licitação. Também se proíbe a participação de empresas cujos sócios, administradores, empregados, controladores, etc., sejam servidores ou dirigentes dos órgãos contratantes. Essa vedação reporta-se ao princípio da moralidade, sendo pressuposto necessário da lisura da licitação e contratação administrativa. A caracterização de participação indireta contida no §3º aplica-se igualmente aos servidores e dirigentes do órgão” (Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 10a edição. São Paulo: Dialética, 2004, p. 191).

         O Tribunal de Contas da União (TCU) decide reiteradamente no mesmo sentido. Eis alguns exemplos: a) “não passa pela avaliação de saber se os servidores (...) detinham ou não informações privilegiadas para que esteja impedido de participar, direta ou indiretamente, de licitação por ele realizada” (Decisão n. 133/1997, Plenário, Rel. Min. Bento José Bulgarin) e b) “não ocupar cargo público ou função de confiança, ao representar o ... como dirigente de um programa do Ministério, passou a exercer um múnus público que o obrigava a atuar de acordo com o interesse público e, consequentemente, o impedia de contratar com a Administração Pública” (Acórdão n. 601/2003, Plenário, Rel. Min. Augusto Sherman Cavalcanti).

         Na mesma linha é o posicionamento do Tribunal de Contas do Distrito Federal (TCDF). Observe-se o seguinte trecho da Decisão n. 5.089/2016: “V – alertar a Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal que o art. 9o, inciso III, da Lei n. 8.666/93 veda a contratação de entidades privadas cujos sócios ou parentes dos sócios até o terceiro grau sejam servidores da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal, ainda que afastados ou licenciados por qualquer motivo, além de 
não permitir que os executores de contratos trabalhem ou tenham 
trabalhado nos últimos 5 (cinco) anos com (sic) sócios, administradores 
ou não, responsáveis pelas entidades contratadas”.

         O Superior Tribunal de Justiça (STJ) também adota esse 
entendimento. A seguinte decisão menciona até a situação do servidor 
licenciado: “ADMINISTRATIVO - LICITAÇÃO - DESCLASSIFICAÇÃO - EMPRESA - 
SERVIDOR LICENCIADO - ÓRGÃO CONTRATANTE. Não pode participar de 
procedimento licitatório, a empresa que possuir, em seu quadro de 
pessoal, servidor ou dirigente do órgão ou entidade contratante ou 
responsável pela licitação (Lei nº 8.666/93, artigo 9º, inciso III). O 
fato de estar o servidor licenciado, à época do certame, não ilide a 
aplicação do referido preceito legal, eis que não deixa de ser funcionário o servidor em gozo de licença. Recurso improvido” (REsp 254115/SP, Rel. Ministro GARCIA VIEIRA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 20/06/2000, DJ 14/08/2000, p. 154).

         Ademais, a posição já sedimentada pelo TCU afirma que o vínculo de parentesco com servidores também configura hipótese de potencial influência sobre a licitante e sobre o próprio resultado dessa licitação (Acórdãos 1.170/2010, 607/2011, 1.019/2013 e 1.941/2013). Nesses casos, a aplicação do disposto no art. 9o da Lei n. 8.666, de 1993, antes destacado, impõe-se como um imperativo de moralidade e impessoalidade no seio da Administração Pública.

         Recentemente, por força da Decisão TCDF n. 27/2017, foram apuradas no âmbito da Controladoria Setorial da Saúde um conjunto de 125 servidores da Secretaria de Saúde que integravam os quadros societários de 72 empresas fornecedoras de bens e serviços para o Poder Público distrital. Os valores movimentados nesses contratos ultrapassaram R$ 600 milhões entre os anos de 2000 e 2018. Os primeiros levantamentos realizados pela Controladoria-Geral do Distrito Federal (CGDF) em 2019 apontam para várias ocorrências no mesmo sentido.

         Assim, para evitar a continuidade dessa deletéria prática, a necessidade de frequentes apurações de ilícitos nessa seara e as instaurações em massa de processos disciplinares e de fornecedores, o Governador Ibaneis Rocha editou o Decreto n. 39.860, de 30 de maio de 2019.

         O decreto em questão atribui a Controladoria-Geral do Distrito Federal (CGDF) a responsabilidade de definir as formas mais eficientes de atuar no combate a essas irregularidades. Nessa linha, a Portaria CGDF n. 356, de 29 de julho de 2019, foi expedida e publicada no DODF de 30 de julho seguinte. Esse ato entra em vigor no dia 12 de agosto de 2019.

         São três as definições a serem observadas no âmbito dos órgãos e entidades do GDF:

         a) nos procedimentos licitatórios de qualquer modalidade, inclusive pregões, será exigida a apresentação pelos licitantes da declaração constante no Anexo Único da Portaria CGDF n. 356/2019;

         b) a autoridade competente para formalizar contratos com o Distrito Federal, suas autarquias e fundações, determinará a verificação prévia de ocorrência definida no art. 1º do Decreto n. 39.860, de 30 de maio de 2019 (“Não poderá participar, direta ou indiretamente, de licitação, contratação ou execução de obra ou serviço e do fornecimento de bens a eles necessários, agente público de órgão ou entidade da Administração Pública Direta ou Indireta do Poder Executivo do Distrito Federal contratante ou responsável pela licitação”). A constatação de caso previsto no art. 1º do Decreto n. 39.860, de 30 de maio de 2019, impossibilita a formalização do contrato ou instrumento equivalente;

         c) a identificação de qualquer dos casos indicados no art. 1º do Decreto n. 39.860, de 30 de maio de 2019, implica a necessária e imediata: c.1) instauração dos procedimentos apuratórios pertinentes e c.2) comunicação à Controladoria-Geral do Distrito Federal;

         Sem prejuízo dos procedimentos antes mencionados, a Controladoria-Geral do Distrito Federal realizará, preferencialmente por meio eletrônico, o monitoramento dos casos indicados no art. 1º do Decreto n. 39.860, de 30 de maio de 2019.

         Importa esclarecer uma confusão frequente. A situação dos servidores que integram o quadro societário de uma empresa fornecedora ao Poder Público (vedada pela Lei de Licitações e Contratos Administrativos) é distinta da situação do servidor que participa de gerência ou administração de sociedade ou empresa privada, personificada ou não personificada (vedada pela Lei Complementar n. 840, de 23 de dezembro de 2011). No primeiro caso é preciso identificar o fornecimento de bens, serviços ou obras ao Poder Público. No segundo é necessária a constatação da prática de significativos atos de gestão da empresa com o servidor na condição de gerente ou administrador.

         Observe-se o teor do Enunciado n. 11 da Advocacia-Geral da União (AGU): “Configura a falta disciplinar prevista no art. 117, inciso X, da Lei nº 8.112/90, o exercício de fato da gerência ou administração pelo servidor público, de sociedade privada personificada ou não personificada, em concomitância com o desempenho de cargo público”. 
Assim, a pena de demissão somente é aplicada quando se constatar, no curso do processo disciplinar, o exercício de fato da administração da sociedade. Não basta, para aplicação da penalidade extrema, o simples registro do nome do servidor como sócio-gerente ou administrador nos atos constitutivos.