Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Bolsonaro escancara seu projeto golpista de índole fascista

Sexta, 24 de abril de 2020
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Não há o que festejar quando as forças armadas precisam vir a público dizer que respeitam a Constituição de seu país. Poderia ser diferente? Em termos gerais, não. Em um país de instituições políticas estáveis, não. Mas no Brasil, sim, lamentavelmente, porque entre nós os militares não são modelo de respeito às instituições republicanas que lá atrás ajudaram a implantar,  graças, aliás,  a um golpe de estado que apeou o velho império. Juras de amor jamais são desprezíveis, mas nunca será excessivo lembrar que o golpe militar de 1º de abril de 1964 foi antecedido de cânticos de louvor à legalidade. Ministros, generais, almirantes e brigadeiros se sucediam nas folhas repetindo odes de fidelidade legal. Aliás, o rompimento da legalidade que abriu caminho para a ditadura se deu em nome, justamente... da defesa da legalidade.

A boa cautela aconselha, portanto, pôr as barbas de molho.

O simples fato de a nota do ministro da defesa haver-se tornado necessária para o conforto espiritual dos liberais revela  os riscos que pesam sobre a ordem democrático-constitucional, restabelecida – a que custo! – pelo pacto de 1988. Dela precisamos cuidar, precatados contra a força das aparências. As ameaças, não apenas retóricas, precisam ser encaradas em sua periculosidade, pois se maquinam e se desdobram em circunstâncias jamais vividas na história republicana. A campanha contra a democracia e as instituições, os apelos à intervenção militar e ao golpe de estado são urdidos às claras, e impunemente, pelo próprio presidente da republica, e este fato, extremamente grave em si mesmo, torna-se ainda mais preocupante quando o capitão é, no governo, a representação dos militares. Não se trata, portanto, pura e exclusivamente, da volição de um mandatário desmiolado, mas, até prova em contrário, de projeto coletivo, com respaldo em forças tão poderosas que dão ao agente subversivo oficial condições de assim agir, sem ser chamado à responsabilidade por seus pares ou tutores ou pelas instituições da república.

O jornalista Merval Pereira (O Globo, 21/04/2020), colunista dos mais bem informados, traz-nos, como novidade, a informação segundo a qual “alguns ministros militares que trabalham no palácio do planalto, e até generais da ativa, mesmo que ainda minoritários no alto comando do exército, já assimilam os argumentos políticos de Bolsonaro, e concordam que há um movimento a partir da Câmara para neutralizar as ações do presidente da República, quem sabe, no limite, decretando seu impeachment”. E conclui, com espanto: “Impressionante é que o argumento usado por Bolsonaro – se não for eu será o PT – ainda encontre eco entre os militares”.

Convencidos dessa ameaça, quais serão os limites da caserna para salvaguardar seu governo?

Sabe-se, hoje, o óbvio: que o ato em frente ao quartel não foi improvisado: generais que frequentam o terceiro andar do palácio do planalto sabiam dele e do propósito do presidente – tanto que, convidados a participar do comício, dele teriam declinado.

De sua responsabilidade em face do trágico cenário político brasileiro as forças armadas não se divorciarão, como jamais serão absolvidas pelos crimes cometidos pela repressão aos patriotas que lutaram contra a ditadura.

O jogo está claro e as pedras estão dispostas no tabuleiro. A partir de agora toda inação será cúmplice e ninguém poderá, amanhã, alegar inocência.

O ministro Luís Roberto Barroso, um dos titulares do STF a protestar contra o discurso do capitão, considerou “assustador ver manifestações pela volta do regime militar, após 30 anos de democracia”, e concluiu citando Martin Luther King, mártir moderno da liberdade e do antirracismo nos EUA: “Pior do que o grito dos maus é o silêncio dos bons”. Ocorre que, entre nós, o mais atordoante dos silêncios é exatamente o do poder judiciário, olímpico, insensível à crise institucional da qual é uma das peças. É diante do “silêncio dos bons”, para continuar com a citação do pastor, que avança o projeto fascista que já empolga camadas consideráveis de nossa população, como dramaticamente atestam as manifestações açuladas pelo bolsonarismo.

O STF, porém,  em breve dirá à nação em que time joga, se entre os “maus” ou os “bons”, pois será tirado de seu conforto para deliberar diante da petição do Procurador Geral da República requerendo abertura de inquérito para apurar as responsabilidades pela convocação, financiamento e mobilização das hordas que em Brasília e em diversas capitais cometem seguidamente o crime de defender golpe de Estado, intervenção militar e ditadura. O supremo terá a oportunidade de corrigir a petição caolha do procurador geral da república, (pois tenta deixar de fora o presidente que o nomeou), nela promovendo  a responsabilidade não só dos financiadores da farra antidemocrática, mas, igualmente, dos que incitam as massas e fazem o discurso golpista, e, em face desse crime, o principal agente é o capitão reformado da reserva remunerada Jair Messias Bolsonaro.

O despautério do último dia 19, provocação que se insere em corrente bem planejada, não pode ser desqualificado como mais uma loucura de um néscio. Trata-se de ato lúcido, movido por cálculo e estratégia. O capitão escolheu o dia do exército para, às portas  do quartel general em Brasília, diante de uma horda de delinquentes (mas tendo atrás de si uma coluna de militares), apoiar, com sua presença e seu discurso, as provocações contra a democracia e suas instituições. O resto é conhecido. As instituições, desta feita mais consistentemente, revelaram seu incômodo, protestos das mais diversas entidades da sociedade civil foram divulgados, os governadores em sua esmagadora maioria, em manifesto de relevância histórica,  reiteraram o compromisso de defesa da democracia,  e no dia seguinte o capitão, na sua charla matinal na porta do alvorada, vem nos dizer que o que dissera no comício não foi exatamente o que se ouviu. É sua velha tática de morder forte um dia para no dia seguinte soprar leve e, assim, recuar um passo depois de avançar dois no projeto golpista, e dele não arredar pé. O candidato a déspota, ainda nesse encontro nos portões da residência oficial com gente de sua grei, declara sem rebuços: “Eu sou a constituição”. Não, não, é. Você, capitão Bolsonaro, é apenas um “mau oficial” (como lhe definiu o general-ditador Ernesto Geisel), que saiu do exército pelas portas dos fundos. Mau oficial e péssimo presidente, o pior de quantos já tivemos.

Diz o capitão que os que pedem o golpe estão no legítimo exercício da liberdade de opinião. De novo, não. Estão cometendo crime contra a ordem institucional e devem ser punidos.

O espetáculo do dia do exército, não pode ser aceito como apenas mais uma diatribe do presidente irresponsável. Para quem ainda tinha dúvidas, o capitão escancarou o projeto golpista de índole fascista (é isso mesmo; não temamos a classificação). Para estancá-lo, enquanto é tempo, pois a peçonha já saiu do ovo há muito tempo, é preciso mais do que notas de protesto e odes à democracia, que sempre serão bem vindas, pois animam os tristes, mas não alteram a correlação de forças. Aos preitos de boa vontade devem se seguir ações. Mais do que nunca se impõe a necessidade da formação orgânica de uma grande frente ampla de resistência ativa. O que fazer no imediato e no curto prazos, é o desafio que se coloca para as forças democráticas, valendo-se, com urgência, do espaço de luta de que ainda dispomos para desgastar  a imagem do capitão junto aos segmentos que o apoiam. As forças armadas não costumam dar abraço de afogados.

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Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência