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(Millôr Fernandes)

terça-feira, 28 de abril de 2020

BRASÍLIA: UMA OBRA DE ARTE EM DECOMPOSIÇÃO

Terça, 28 de abril de 2020
Do
https://porbrasilia.com.br/


Por Salin Siddartha
Brasília acabou de completar 60 anos de idade. Toda cidade é um texto que conserva uma memória histórica. É um símbolo, não só pelo que representa sociologicamente, mas também pelo que de concreto manifesta seu urbanismo e sua arquitetura. Sabemos mais a respeito de uma civilização por intermédio de sua arquitetura e urbanismo do que por meio de qualquer de suas realizações.
A arquitetura é uma expressão artística que interage no cotidiano da comunidade, funcionalizando o inconsciente coletivo da sociedade onde se situa. A cognição que transparece da cidade é uma associação comparativa de experiências históricas possibilitadas pelas evocações semióticas contidas na sua produção arquitetônica. Como produto do conhecimento construtivo materializado em suas formas, ela é uma configuração psico-histórica pronta para ser interpretada, com todas as entropias daí decorrentes.
Por exemplo, ao observar Nova Iorque, aflora de sua matéria construtiva organizada a energia e o esforço de uma sociedade para erguer um ícone do funcionamento do capital em sua forma dinâmica, qual seja, no processo produtivo e no estabelecimento de contratos que ordenam juridicamente o capitalismo. Do Empire State Building até Times Square, da Estátua da Liberdade ao prédio da Organização das Nações Unidas, existe a expressão de uma tentativa de melhorar a condição do ser humano em conflito com as relações materiais de produção impostas pelo próprio capital.
Assim também, Brasília foi planejada e construída como uma obra de arte viva, com uma concepção avançada, libertária. Sua forma de avião, partindo do centro do País, clama a liberdade de ousar um céu azul (representado pelo Lago Paranoá), tendo como cockpit a Praça dos Três Poderes. Seus diversos monumentos, bastante semióticos, realçam o simbólico ante uma moldura de paisagem plana, explorando representações possibilitadas pelo concreto armado. Há, nela, uma sintaxe setorializada, com cada parte da tessitura urbana dedicada a uma atividade social: setor bancário, comercial, de diversões, de clubes, de embaixadas etc.
Embora tenha sido idealizada e estabelecida como um projeto artístico representativo, ela foi decompondo-se pela ganância especulativa de empreiteiros sem decência nem compromisso com o bem-estar civilizatório e de uma elite oligárquica que se formou no processo acumulativo do capital local, preocupada em locupletar-se pela via do poder político. Aliado a isso, o traçado sensual das linhas curvas da Capital da República não conseguiu prever os efeitos do intenso trânsito que, hoje, castiga a cidade.
Brasília se esfacela em sua arquitetura e em seu urbanismo, pela forma atabalhoada com que vem crescendo, construindo monstrengos em desarmonia com sua escala. A cada momento, vai-se incluindo uma expressão da decadência civilizatória da cidade, como espelho de um caos urbano e artístico emparedador do humanismo com que ela foi pensada. Tudo isso, com certeza, ficará para a posteridade, não como ícone ou símbolo semiológico, mas como semiose indicial de desagregação urbana, social e psico-histórica, demonstrando uma vocação mal resolvida da cidade para com ela mesma.
A fuga da simetria brasiliense é, de certo modo, um subterfúgio à sua razão de origem, e revela a desorganização de sua humanidade citadina. Para não perder a consciência da própria identidade, Brasília precisa mergulhar periodicamente na análise do projeto subjacente do Plano Piloto que lhe trouxe à luz. E recuperar, de tempos em tempos, a semântica do traçado e da matéria que lhe organiza a feição. Essa é a reflexão que deve ser feita na comemoração do sexagésimo aniversário da Capital da República.
Cruzeiro-DF, 25 de abril de 2020
SALIN SIDDARTHA