Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

A Arte não tem idade

A Arte não tem idade

No ano de 1663, mais dia, menos dias, nasceu Gregório de Matos[*], o poeta que melhor sabia debochar do Brasil colonial.
Em 1969, em plena ditadura militar, o comandante da sexta região denunciou seus poemas, que dormiam o sono dos justos fazia três séculos na biblioteca da Secretaria de Cultura da cidade de São Salvador da Bahia, como sendo subversivos, e os atirou na fogueira.
Em 1984, num país vizinho, a ditadura militar do Paraguai proibiu uma peça que ia estrear no teatro Arlequin, por se tratar de um panfleto contra a ordem, a disciplina, o soldado e a lei. Fazia vinte e quatro séculos que a peça, As troianas, havia sido escrita por Eurípedes.
       Eduardo Galeano, no livro Os filhos dos dias (Um calendário histórico sobre a humanidade), 2ª Edição, L&PM Editores, 2012, página 385.
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[*]Gregório de Matos Guerra: o Boca do Inferno 
Gregório de Matos é amplamente conhecido por suas críticas à situação econômica da Bahia, especialmente de Salvador, graças à expansão econômica chegando a fazer, inclusive, uma crítica ao então governador da Bahia Antonio Luis da Camara Coutinho. Além disso, suas críticas à Igreja e a religiosidade presente naquele momento. Essa atitude de subversão por meio das palavras rendeu-lhe o apelido de "Boca do Inferno", por satirizar seus desafetos (do site Só Literatura)

Triste Bahia
Triste Bahia! Ó quão dessemelhante
Estás e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,
Rica te vi eu já, tu a mi abundante.

A ti trocou-te a máquina mercante,
Que em tua larga barra tem entrado,
A mim foi-me trocando, e tem trocado,
Tanto negócio e tanto negociante.

Deste em dar tanto açúcar excelente
Pelas drogas inúteis, que abelhuda
Simples aceitas do sagaz Brichote.

Oh se quisera Deus que de repente
Um dia amanheceras tão sisuda
Que fora de algodão o teu capote!

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O Boca do Inferno  define a sua cidade (bem que a poesia define também a Brasília de nossos tempos)

De dois ff se compõe
esta cidade a meu ver:
um furtar, outro foder.


Recopilou-se o direito,
e quem o recopilou
com dous ff o explicou
por estar feito, e bem feito:
por bem digesto, e colheito
só com dous ff o expõe,
e assim quem os olhos põe
no trato, que aqui se encerra,
há de dizer que esta terra
de dous ff se compõe.


Se de dous ff composta
está a nossa Bahia,
errada a ortografia,
a grande dano está posta:
eu quero fazer aposta
e quero um tostão perder,
que isso a há de perverter,
se o furtar e o foder bem
não são os ff que tem
esta cidade ao meu ver.


Provo a conjetura já,
prontamente como um brinco:
Bahia tem letras cinco
que são B-A-H-I-A:
logo ninguém me dirá
que dous ff chega a ter,
pois nenhum contém sequer,
salvo se em boa verdade
são os ff da cidade
um furtar, outro foder.


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EPÍLOGOS

Que falta nesta cidade? ... Verdade.
Que mais por sua desonra? ... Honra.
Falta mais que se lhe ponha? ... Vergonha.


O demo a viver se exponha,
Por mais que a fama a exalta,
Numa cidade, onde falta
Verdade, honra, vergonha.


Quem a pôs neste socrócio? ... Negócio.
Quem causa tal perdição? ... Ambição.
E o maior desta loucura? ... Usura.


Notável desaventura
De um povo néscio e sandeu,
Que não sabe que o perdeu
Negócio, ambição, usura.


Quais são meus doces objetos? ... Pretos.
Tem outros bens mais maciços? ... Mestiços.
Quais destes lhe são mais gratos? ... Mulatos.


Dou ao Demo os insensatos,
Dou ao demo o povo asnal,
Que estima por cabedal
Pretos, mestiços, mulatos.


Quem faz os círios mesquinhos? ... Meirinhos.
Quem faz as farinhas tardas? ... Guardas.
Quem as tem nos aposentos? ... Sargentos.


Os círios lá vêm aos centos,
E a terra fica esfaimada,
porque os vão atravessando
Meirinhos, guardas, sargentos.


E que justiça a resguarda? ... Bastarda.
É grátis distribuída? ... Vendida.
Que tem, que a todos assusta? ... Injusta.


Valha-nos Deus, o que custa
O que El-Rei nos dá de graça,
Que anda a justiça na praça
Bastarda, vendida, injusta.


Que vai pela clerezia? ... Simonia.
E pelos membros da Igreja? ... Inveja.
Cuidei, que mais se lhe punha? ... Unha.


Sazonada caramunha!
Enfim, que na Santa Sé
O que se pratica, é
Simonia, inveja, unha.


E nos frades há manqueiras? ... Freiras.
Em que ocupam os serões? ... Sermões.
Não se ocupam em disputas? ... Putas.


Com palavras dissolutas
Me concluo na verdade,
Que as lidas todas de um frade
São freiras, sermões, e putas.


O açúcar já se acabou? ... Baixou.
E o dinheiro se extinguiu? ... Subiu.
Logo já convalesceu? ... Morreu.


À Bahia aconteceu
O que a um doente acontece:
Cai na cama, e o mal lhe cresce,
Baixou, subiu, e morreu.


A Câmara não acode? ... Não pode.
Pois não tem todo o poder? ... Não quer.
É que o governo a convence? ... Não vence.


Quem haverá que tal pense,
Que uma Câmara tão nobre
Por ver-se mísera, e pobre
Não pode, não quer, não vence!

(Juízo anatômico dos achaques que padecia o corpo da República em todos os membros, e inteira definição do que em todos os tempos é a Bahia.)

Gregório de Matos