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(Millôr Fernandes)

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

«A questão da dívida privada e pública é mais importante hoje do que há 30 anos»

Segunda, 5 de setembro de 2022

«A questão da dívida privada e pública é mais importante hoje do que há 30 anos»

5 de Julho por Eric Toussaint , Emilio Taddei , José Seoane




Entrevista a Éric Toussaint, por José Seoane e Emilio Taddei, da revista Tricontinentale

Historiador e economista belga especializado nas questões da dívida e da mundialização neoliberal, Éric Toussaint fundou em 1990 a rede internacional Comité para a Anulação das Dívidas Ilegítimas (também conhecido pela sigla CADTM, proveniente do nome francês original: Comité pour l’annulation de la dette du tiers monde), do qual é actualmente o porta-voz. Este comité é uma das mais importantes articulações mundiais para o questionamento da financeirização e seus efeitos sobre o capitalismo contemporâneo. Aquando da sua visita a Buenos Aires para participar em diversas reuniões sobre a negociação entre o Governo argentino e o FMI, tivemos ocasião de falar com ele sobre o significado e a história do endividamento externo e das alternativas do ponto de vista latino-americano.

José Seoane e Emilio Taddei: Embora a questão da dívida tenha uma longa história, certamente é possível identificar uma novidade e um elo entre expansão e desenvolvimento, os processos de financeirização e a actual etapa neoliberal do capitalismo. Ao longo das últimas décadas assistimos a um novo ciclo de aumento da dívida. Qual a sua opinião a esse propósito?

Éric Toussaint: O capitalismo actual tem uma dimensão financeira extremamente importante; ela é acentuada no contexto da «longa depressão» que teve início em 2008 – segundo os termos utilizados por MichaelRoberts – e continuou até aos dias de hoje, o mesmo que Mandel chamava «onda longa depressiva» [1]. Financiamento, acumulação e utilização da dívida para manter vivas milhares de entidades a que Roberts chama «empresas zombies». Mais especificamente, as dívidas públicas são instrumentos que permitem disciplinar os governos e mantê-los dentro da lógica do sistema capitalista. E isto torna-se cada vez mais premente.

As dívidas públicas são instrumentos que permitem disciplinar os governos

Por exemplo, no contexto da pandemia na Europa e nos EUA, a fim de pagar as despesas públicas mais elevadas, os governos recorreram a um aumento da dívida, em vez de aumentarem os impostos sobre as camadas mais ricas. A dívida da Grécia representa hoje 190 % do PIB, a da Itália 150 %, a de Portugal 130 %, a da Bélgica e da França 115 %. Estes rácios são bastante mais elevados que os da Argentina e do Brasil, apesar de nestes dois países também terem aumentado. A nível mundial assistimos a uma explosão da dívida.

Agora, em nome do reembolso, foi proposta uma nova ofensiva de reformas estruturais no «mercado» de trabalho, no financiamento e idade da reforma, no sistema de protecção social, etc. Por outro lado, as dívidas das classes populares também aumentaram consideravelmente. Os sectores mais pobres das classes populares sobreendividados estão sujeitos a taxas de juro muito altas; é uma maneira de os disciplinar e de lhes diminuir a vontade de lutarem. É muito mais difícil fazer greves, com suspensão de salários, quando há uma dívida para pagar. Ao mesmo tempo, claro está, como se demonstrou no Chile, isto arrasta o povo para uma situação tal que, em determinado momento, ele já não aguenta mais e pode estalar uma rebelião. Por isso, para nós, o problema da dívida é ainda mais grave hoje do que era há 30 ou 40 anos.

O problema da dívida privada das classes trabalhadoras é mais grave hoje do que há 30 ou 40 anos

José Seoane e Emilio Taddei: Nesse sentido, a renegociação do empréstimo que o FMI concedeu em 2018 ao Governo argentino de Mauricio Macri não é excepcional, antes põe em evidência uma situação regional e mundial. Considera que existe o risco de uma nova crise da dívida na América Latina e, em geral, a nível mundial?

Éric Toussaint: Sim, efectivamente há o risco de uma nova crise. De momento, dois elementos a refreiam. Por um lado, embora os bancos do Norte estejam a aumentar as taxas de juro, elas permanecem inferiores à subida da inflação. Isto permite à maioria dos países do Sul continuar a reembolsar as suas dívidas, ou seja endividarem-se ainda mais para reembolsarem dívidas antigas. Por outro lado, o aumento dos preços das matérias-primas, por exemplo o petróleo e o gás, significa que os países exportadores de combustíveis que estavam em incumprimento parcial de pagamento, como a Venezuela, voltaram a ter maiores rendimentos, com o barril de petróleo a mais de 100 dólares. Estes factores – as taxas de juro fracas de momento e preços elevados que favorecem os exportadores de matérias-primas – impedem que haja uma crise de pagamento.

Mas o volume da dívida é tal e a pressão exercida sobre a Reserva Federal americana (Fed) para a subida das taxas de juro é tão forte, que o perigo é constante. A Fed comprometeu-se a aumentar as taxas 0,25 % por mês, para alcançar uma taxa de mais de 1 % até ao fim do ano; com uma inflação elevada, a Fed está a aumentar a taxa de juro mais rapidamente do que inicialmente previsto. A previsão mediana dos membros da comissão de política monetária da Fed (o FOMC, Federal Open Market Committee) aponta para uma taxa directora de 3,4 % em finais de 2022 e de 3,8 % em 2023, ao passo que a previsão de março de 2022 a situava nos 1,9 % até final do ano. O risco de uma nova crise existe, pois uma taxa de juro mais elevada favoreceria um repatriamento de capitais para os EUA – e para a Europa, se o Banco Central Europeu for no mesmo sentido – e aumentaria o prémio de risco que os países endividados teriam de pagar. Portanto não há crise generalizada da dívida neste momento, mas estão reunidas as condições para que haja uma.

Oaxaca, abril de 2022

José Seoane e Emilio Taddei: As próprias organizações financeiras internacionais, bem como o G20 e o Clube de Paris, reconheceram a gravidade desse problema e propuseram uma redução da dívida em certos casos. Como vê estas propostas?

Éric Toussaint: As iniciativas do Banco Mundial, do FMI e do Clube de Paris são totalmente inadequadas; os próprios países endividados assim o dizem; são um falhanço. Mesmo o aumento dos direitos de saque especiais (DTS) decidido pelo FMI é um fiasco [2]. Como este aumento é proporcional à quota parte de cada país no FMI, são mais uma vez os países do Norte que recebem a maior parte desses DTS. Em contrapartida, tinham prometido dá-los aos países do Sul, mas não o fizeram, e quando fazem qualquer coisa, ela consiste em utilizar os seus direitos de saque para os emprestar com juros, embora recebam gratuitamente os direitos de saque especiais (DTS). É um escândalo.

José Seoane e Emilio Taddei: A esse propósito, a crise da dívida no início dos anos 1980 levou à imposição do chamado «consenso de Washington» na região, com terríveis consequências. Concorda que o Fundo, como foi algumas vezes afirmado, mudou e já não promove as mesmas receitas?

Éric Toussaint: Não, eles continuam com o mesmo modelo, como se viu no Equador em 2019. Convenceram o presidente Lenin Moreno a aplicar um plano que inclui um aumento do preço dos combustíveis, o que provocou uma rebelião popular. Moreno teve de fugir de Quito e refugiou-se em Guayaquil, na esperança de controlar a situação, utilizando mesmo a repressão; mas por fim foi obrigado a renunciar ao aumento. Esta experiência repetiu-se no Equador em junho de 2022, sob a presidência do banqueiro Guillermo Lasso; também ele, depois de recorrer à violência e fugir para Guayaquil, acabou por conceder em 30 de junho de 2022 uma suspensão do aumento dos combustíveis. Veremos no que isto dará.

O FMI não mudou de modelo e teve de enfrentar rebeliões e protestos intensos nos últimos anos em todo o Sul

Também não podemos esquecer, por exemplo, a rebelião do Líbano, que começou em 2019 e durou um ano e meio e que era contra o FMI e as elites locais. A situação é hoje muito tensa no Sri Lanka (21 milhões de habitantes), no Sul da Ásia, contra o FMI e também contra outros credores como a China. O Sri Lanka teve de declarar a suspensão total dos pagamentos da dívida externa em abril de 2022 e negocia actualmente um novo acordo com o FMI.

O FMI não mudou de modelo, pelo contrário, as suas políticas suscitaram rebeliões e protestos intensos nos últimos anos em todo o Sul.

José Seoane e Emilio Taddei: A propósito, qual a novidade no acordo celebrado pelo Governo argentino em março de 2022?

Éric Toussaint: No caso da negociação argentina com o FMI há novidades, mas não vejo nelas nada de positivo. Pelo contrário, parecem-me mais sofisticadas e perversas. Apesar de o acordo não incluir explicitamente a maior parte das chamadas reformas estruturais, dispõe de todas as armas para as fazer passar por meio do seguimento permanente dos objectivos orçamentais e das desorçamentações parciais que terão de ser autorizadas em caso de risco de incumprimento. Os dirigentes do FMI não anunciam claramente o que pretendem, mas têm meios para vergar o Governo. O FMI, mesmo no contexto da pandemia e da crise internacional, não mudou as suas receitas, que continuam a passar pela redução das despesas sociais, a redução do aparelho de Estado e da capacidade de intervenção do Estado, e as reformas estruturais que aprofundam o modelo. Assim o provam os diversos acordos assinados pelo FMI ao longo dos últimos três anos.

José Seoane e Emilio Taddei: No que diz respeito à dívida argentina, você denunciou a sua origem ilegal e o seu carácter de dívida odiosa. O mesmo argumento foi usado para contestar dívidas ao estrangeiro noutros casos. Qual é a origem desse argumento? Existe algum precedente em que a dívida tenha sido efectivamente contestada?

Éric Toussaint: Sim, há vários. O México em 1861Os EUA por três vezes no século 19. O México de novo em 1867 contra a dívida à França (que tinha invadido o México e feito de Maximiliano da Áustria imperador). Em 1898, após a guerra entre os EUA e a Espanha por causa de Cuba, Washington recusou pagar a dívida reclamada por Madrid. O repúdio, pelos Sovietes em fevereiro de 1919, da dívida czarista. O repúdio pelo Congresso da Costa Rica em 1919 da dívida contraída por Tinoco. O Tratado de Versalhes de junho de 1919, que estipula que a dívida da Polónia contraída pela Alemanha a fim de reforçar o seu domínio sobre o país não deve ser reembolsada, o mesmo se aplicando aos territórios colonizados pela Alemanha em África. Isto deu origem à doutrina dadívida odiosa, formulada pela primeira vez por Alexander Sack, um jurista russo conservador exilado em Paris. Seguiram-se outros repúdios de dívida, por exemplo em 1949 pela China, em 1959 por Cuba. Em 2003, uma semana depois da invasão americana do Iraque, o secretário de Estado das Finanças convocou os ministros do Clube de Paris do G7 e disse-lhes que a dívida contraída por Saddam Hussein era uma dívida odiosa e tinha de ser anulada. Falou explicitamente de dívida odiosa. Actualmente está em curso um processo em Londres a propósito da dívida reclamada pela Rússia à Ucrânia. Este processo estava em ponto morto, mas agora com a guerra vai certamente acelerar; esperemos para ver a conclusão. O próprio FMI publicou vários documentos sobre a questão da dívida odiosa.

Uma dívida é considerada odiosa quando é contraída contra o interesse da nação, do povo ou do Estado e os credores não podem demonstrar que não o sabiam

Segundo a doutrina, uma dívida pode ser considerada odiosa em função de dois critérios: o primeiro diz respeito ao uso dado à dívida, se foi contraída contra o interesse da nação, do povo ou do Estado; o segundo refere-se ao conhecimento dos credores quanto ao uso que iria ser dado à dívida. Na doutrina da dívida odiosa, a natureza do regime que contraiu a dívida pouco importa, pode tratar-se de um governo democrático ou de uma ditadura; o que conta é a sua utilização e a cumplicidade dos credores.

Mural na Secretaria de Educação Pública da Cidade do México























José Seoane e Emilio Taddei: No contexto dos processos de mudança na região, após a crise económica do início  dos anos 2000, também houve experiências de renegociação da dívida. Foi-lhe mesmo pedido que aconselhasse o Governo equatoriano a esse propósito. Que ensinamentos podemos extrair dessa experiência?

Éric Toussaint: Sim, em 2007 o governo de Rafael Correa constituiu uma comissão de auditoria com participação dos cidadãos (12 delegados dos movimentos sociais equatorianos), quatro organismos do Estado (Ministério das Finanças, Ministério da Justiça, gabinete de supervisão e comissão anticorrupção) e seis estrangeiros, entre eles Alejandro Olmos Gaona (Argentina), Maria Lucia Fattorelli (Brasil) e eu próprio. Maria Lucia Fattorelli, Alejandro Olmos Gaona e Hugo Arias (de Jubileo2000-Red Guayaquil, Equador) estavam encarregados da parte comercial (portadores de obrigações privados e fundos de investimento). Piedad Mancero (de Jubileo2000-Red Guayaquil), Ricardo Ulcuango (de Ecuarunari) e eu próprio tínhamos a nosso cargo a parte multilateral (FMI, Banco Mundial). Havia ainda outro grupo responsável pela dívida bilateral e outro pela dívida interna. Recomendámos que não fosse tida em conta a dívida ao FMI e ao Banco Mundial, mas essas duas dívidas representavam um montante relativamente fraco em comparação com a dívida contraída nos mercados financeiros. O governo de Correa optou por afrontar os detentores de obrigações que reclamavam 3000 milhões de dólares a uma taxa de juro de 7 %. Foi uma boa escolha do inimigo principal e uma vitória para o Equador, o que lhe permitiu reduzir a dívida. O governo de Rafael Correa entrou em conflito com os credores e ganhou. Não houve represálias nem perseguições judiciais nos EUA.

Relembremos também que em 2007 foi pedido ao FMI que abandonasse os seus escritórios no Banco Central do Equador. Mesmo o representante permanente do Banco Mundial foi expulso em 2007. É importante manter presente que quando estas organizações são confrontadas com uma situação de conflito, tentam geralmente silenciar a questão, pois fazer muito barulho implica dar ao Governo uma oportunidade de apresentar explicações ao mundo inteiro e a outros países de fazerem o mesmo. Recordemos que quando a Argentina suspendeu o pagamento da sua dívida ao Clube de Paris, em 2001, este não fez alarde, pois tinha medo que a coisa se soubesse, até chegar a acordo 12 anos mais tarde, em 2013.

José Seoane e Emilio Taddei: Com base nessa experiência e na crise dos anos 1980, quais são os desafios que se colocam perante os povos da América Latina hoje em dia?

Éric Toussaint: Se pensarmos numa eventual crise da dívida no futuro, contrariamente aos anos 1980, durante os quais Fidel Castro teve um papel de vanguarda e mobilização contra as dívidas ilegítimas, não existe hoje um chefe de estado ou um governo na América Latina para desempenhar o mesmo papel que ele; mesmo Cuba mudou e infelizmente já não desempenha o papel de líder da contestação latino-americana face ao imperialismo. Por outro lado, é positivo que as eleições dos últimos anos e as rebeliões na Colômbia, no Chile, no Equador e noutros países mostrem que as classes populares continuam a querer mudanças fundamentais. Da vitória de Lopez Obrador no México em 2018 e de Alberto Fernandez na Argentina em 2019, à de Gustavo Petro e Francia Marques na Colômbia em junho de 2022, passando pela de Boric em 2021 no Chile e de Xiomara Castro nas Hoduras em 2021, torna-se claro que quando uma força política consegue candidatar-se ao governo com um discurso de ruptura com o neoliberalismo, tem hipótese de ganhar as eleições. Ao mesmo tempo, vemos com Castillo no Peru e veremos com Boric no Chile e Petro na Colômbia uma autolimitação dos governos; não há comparação com Chávez (Venezuela), com Correa (Equador) e Morales (Bolívia) do primeiro período. Hoje não há medidas contra as transnacionais em termos de fiscalidade como dantes, nem sobre a questão da dívida. Recordemos que Correa foi ao extremo de suspender o pagamento da dívida externa em 2008, no mesmo momento em que a Venezuela, a Bolívia e o Equador abandonavam o CIRDI e recusavam assinar acordos de livre-câmbio com os EUA. A distância entre a vontade das classes populares de encontrar forças políticas capazes de entrarem em ruptura com o neoliberalismo, por um lado, e por outro a prática concreta de quem chega ao governo, é enorme. Por incapacidade ou deliberadamente, estes dirigentes prolongam o neoliberalismo, com algumas nuances, é certo, mas sem verdadeiramente mudarem o modelo, e isto acaba por provocar grandes desilusões.

José Seoane e Emilio Taddei: Nos anos 2000 o movimento altermundialista também foi muito importante, assim como os movimentos mundiais contra a dívida. Como é a situação actual? Qual a experiência da rede CADTM que promovem?

Éric Toussaint: Em geral, a situação é preocupante, por causa da desintegração e do recuo de grandes movimentos internacionais como o Fórum Social Mundial (FSM), só para dar um exemplo entre tantos.

A situação é preocupante, por causa da desintegração e do recuo de grandes movimentos internacionais como o Fórum Social Mundial (FSM)

Em contrapartida, no caso do CADTM, posso dizer que houve crescimento nos últimos anos. Fizemos a nossa Assembleia Mundial no Senegal em novembro de 2021 com a participação de 16 delegações de países africanos; os latino-americanos, os asiáticos e os europeus participaram on-line. Juntaram-se novas organizações, por exemplo, na América Latina a Frente Cidadã para a Auditoria da Dívida de Porto Rico (Frente Ciudadano para la Auditoría de la Deuda de Puerto Rico); no México, a coligação para a suspensão do pagamento da dívida (Promotora para la suspensión del pago de la deuda pública) formou-se com a participação, entre outros, do Sindicato Mexicano de Electricistas. Esta coligação também decidiu unir-se à rede do CADTM em 2022.

No quadro mais geral do movimento antidívida, também houve iniciativas. Em 2019, com o Jubileu América do Sul e Ásia [outra importante rede mundial de luta contra a dívida] e outras organizações como o Eurodad, Latindad e Afrodad, foi convocada uma nova «semana mundial de acção contra a dívida», o que é assinalável. Mas hoje a invasão russa e a guerra na Ucrânia provocaram um novo debate no seio da esquerda, nomeadamente com a presença de duas tendências opostas, de um lado os que recusam denunciar Putine e do outro os que recusam criticar a OTAN e a União Europeia; quanto a mim, repetem erros catastróficos. Esta tensão pode paralisar o movimento. Não quero dramatizar, mas tudo isto me faz pensar no agosto de 1914, quando as forças de esquerda europeias opostas à guerra acabaram por votar os «créditos de guerra» em cada um dos seus países. É extremamente perigoso.

José Seoane e Emilio Taddei: Face a esta situação em que o problema da dívida se agrava, quais são as propostas e alternativas que o movimento promove?

Éric Toussaint: A principal reivindicação continua a ser a suspensão do reembolso da dívida e a anulação da sua parte ilegítima ou odiosa. Propomos também a constituição de uma auditoria da dívida com participação dos cidadãos, em particular como proposta de difusão e apelo ao povo e como plano de mobilização.

 A principal reivindicação continua a ser a suspensão do reembolso da dívida e a anulação da sua parte ilegítima ou odiosa

Do ponto de vista estratégico, é fundamental integrar todas as dimensões da dívida. As dívidas do Norte e do Sul; o endividamento público e as dívidas das classes populares; as dívidas estudantis no Chile e na África do Sul, bem como nos EUA, Grã-Bretanha e Japão; as dívidas hipotecárias abusivas em países como a Grécia, Espanha, Croácia, com a nova bolha imobiliária nos países do Norte da Europa e, claro está, nos EUA; o mesmo para dívidas de consumo; as dívidas para pagar cuidados de saúde; os microcréditos abusivos. É necessário articular todos estes problemas da dívida que existem dentro do capitalismo hoje em dia. Foi por isso que há sete anos mudámos o nome da nossa rede, passando de Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo, para Comité para a Abolição das Dívidas Ilegítimas, conservando a sigla CADTM. Em 2009 modificámos a nossa Carta Política e voltámos a actualizá-la em novembro de 2021, em Dacar, com uma perspectiva anticapitalista, feminista, ecossocialista e em defesa dos direitos LGBTQI+.

Além das medidas sobre a dívida, é essencial juntar-lhes outras medidas no âmbito de um plano global: uma reforma fiscal radical, para aumentar as receitas fiscais, com taxação das grandes empresas privadas nacionais e estrangeiras, aumento dos impostos sobre o grande capital, sobre a fortuna dos 1 % mais ricos, assim como uma redução radical do IVA [imposto sobre o valor acrescentado] nos produtos e serviços de base (como sejam a electricidade, a água, o gás, …), para melhorar o nível de vida da população, e uma redução do efeito inflacionista sobre os preços de base.

Além das medidas sobre a dívida, é essencial juntar-lhes outras medidas no âmbito de um plano global

Também é preciso estabelecer um controle dos preços, do comércio externo e dos movimentos de capitais, assim como outras medidas estruturais anticapitalistas (socialização dos bancos, do sector energético, das indústrias farmacêuticas e outros). Por outras palavras, pensamos, no CADTM, que a suspensão dos pagamentos ou o repúdio das dívidas ilegítimas têm de fazer parte de um plano global de medidas estruturais, com uma clara dimensão anticapitalista.

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A primeira versão desta entrevista foi publicada por

https://thetricontinental.org/es/argentina/nuestraamerica1-toussaint/. A presente versão foi completada e actualizada por Éric Toussaint em junho de 2022.

Notas

[1Ver o artigo de Michel Husson publicado em 2020, «La economía de Ernest Mandel, ayer y hoy», Quarta Internacional, https://fourth.international/es/210, no qual ele afirma: «A questão que logicamente se coloca é a de saber onde nos encontramos. A nossa resposta é que estamos ainda na onda longa recessiva iniciada com a recessão geral de 1974-1975 e continuada com a de 1981-1982. […] a teoria de Mandel nunca postulou que cada onda longa devesse durar entre 25 e 30 anos. É certo que foi aproximadamente essa a sua duração no passado, mas esse facto não implica que seja regra, pela simples razão de as ondas longas não serem ciclos». Para uma bibliografia da obra de Ernest Mandel, consultar o sítio de Michel Husson: http://hussonet.free.fr/mandel.htm

[2A 2 de agosto de 2021, o conselho de governadores do Fundo Monetário Internacional (FMI) aprovou uma nova atribuição de direitos de saque especiais, no valor de 433 mil milhões de DTS, equivalentes a 650 mil milhões de dólares. Recordemos que os DTS são activos de reserva internacionais criados em 1969 pelo FMI. Para se ter uma noção dos limites desta medida, veja-se a tímida crítica contida em https://www.globalcitizen.org/fr/content/100-billion-sdr-reallocation-imf/.

Eric Toussaint 

docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.

É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.

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Emilio Taddei 

Docteur en Sciences Politiques de l’Institut d’Etudes Politiques de Paris.

José Seoane 

Docteur en sciences sociales et professeur associé à la Faculté des sciences sociales de l’Université de Buenos Aires (UBA).