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(Millôr Fernandes)

quinta-feira, 6 de abril de 2023

A GRAMÁTICA DA LÍNGUA ESCRITA: UM ELEMENTO CONSERVADOR SERVINDO A OBJETIVOS CONSERVADORES

Quinta, 6 de abril de 2023

Salin Siddartha

O registro linguístico culto é literário, baseia-se na língua escrita, criada com o intuito de padronizar a expressão para que possa virar norma resistente à mutabilidade e perpetuar a superestrutura jurídica; afinal, não é por acaso que os mais antigos textos escritos até hoje conhecidos dizem respeito a leis. A língua escrita foi criada, então, para regulamentar a exploração e legitimá-la pela manipulação dos sinais escritos nas tábulas, que traziam um quê de mistério religioso indecifrável aos olhos dos escravos que se sentiam profanos e atribuíam aos iniciados escribas um poder legado pelos deuses de se comunicarem com o divino por meio do código inacessível à mente dos que não eram os escolhidos. Até hoje, o neocolonialismo imprime essa imagem perante os grupos étnicos que foram colonizados; há cerca de quarenta anos, um amigo meu da Guiné-Bissau dizia-me que o negro escolarizado da etnia manjaca (1) até há alguns anos era visto pelo resto do seu povo como um iniciado nos mistérios da mística religiosa do branco, pois, tal como o feiticeiro tribal, também detinha o poder de entender os rabiscos sagrados e decifrá-los em coisas inteligíveis. “A própria permanência nas linguagens jurídicas modernas das linguagens mágico-religiosas, ético-teístas, ético-naturalistas e científicas serve para testemunhar a passada existência de pontos de força da sociedade” (2), “talvez a linguagem jurídica seja o elemento mais revelador da fonte principal de poder para uma classe dirigente” (3).


A língua escrita dá autoridade ao registro linguístico culto, que passa a guiar-se por ela, podendo-se dizer que há uma gramática da língua escrita, que é conservadora, visa ser estática e não obedecer às variações diacrônicas que se observam na gramática da fala. E quanto maiores forem os interesses econômicos em jogo, mais intocável será a língua escrita pela nação, tal como sucede no francês e no inglês. Quanto a este aspecto, vejamos o que nos fala Saussure: “A língua tem (...) uma tradição oral independente da escrita e bem diversamente fixa; todavia o prestígio da forma escrita nos impede de vê-lo (...)” (4). “A língua literária aumenta ainda mais a importância imerecida da escrita. Possui seus dicionários, suas gramáticas; é conforme o livro e pelo livro que se ensina na escola; a língua aparece regulamentada por um código; ora, tal código é ele próprio uma regra escrita, submetida a um uso rigoroso: a ortografia, e eis o que confere à escrita uma importância primordial. Acabamos por esquecer que aprendemos a falar antes de aprender a escrever, e inverte-se a relação natural” (5).


“(...) quando existe desacordo entre a língua e a ortografia (...) a escrita se arroga, nesse ponto, uma importância a que não tem direito” (6).


“(...) a língua evolui sem cessar, ao passo que a escrita tende a permanecer imóvel. Segue-se que a grafia acaba por não mais corresponder àquilo que deve representar. Uma notação, coerente num momento dado, será absurda um século mais tarde. Durante certo tempo, modifica-se o signo gráfico para conformá-lo às mudanças de pronúncia, mas depois se renuncia a isso. Foi o que aconteceu, em francês, no tocante a oi.



“Desse modo, até a segunda época levaram-se em conta as mudanças ocorridas na pronúncia; a uma etapa histórica da língua corresponde uma etapa de grafia. Mas a partir do século XIV, a escrita [do francês] permaneceu estacionária, ao passo que a língua prosseguia sua evolução, e desde esse momento houve um desacordo sempre mais grave entre ela e sua ortografia. Por fim, como se continuasse a associar termos discordantes, o fato repercutiu sobre o próprio sistema da escrita: a expressão gráfica oi assumiu um valor estranho aos elementos de que se formara.


“Poder-se-iam multiplicar indefinidamente os exemplos. Assim, por que escrever mais (‘mas’) e fait (‘fato’) quando pronunciamos e ?

“(...) os franceses pronunciavam essuyer, éveyer, mouyer, como essuyer, nettoyer; mas continuam a escrever éveiller, mouiller” (7).


Vejamos, agora, com relação ao inglês:

“É por via de uma aberração (...) que o inglês acrescenta um e mudo final para alongar a vogal precedente; comparem-se made (pronuncia-se med) e mad (pronuncia-se mad). Esse e, que afeta na realidade a única sílaba, cria uma segunda sílaba para o olho” (8).


“Outro resultado é que quanto menos a escrita representa o que deve representar, tanto mais se reforça a tendência de tomá-la por base; as gramáticas se obstinam em chamar a atenção para a forma escrita (...) O emprego que se costuma fazer das palavras ‘pronunciar’ e ‘pronúncia’ constitui uma consagração desse abuso e inverte a relação legítima e real existente entre a escrita e a língua. Quando se diz que cumpre pronunciar desta ou daquela maneira, toma-se a imagem por modelo. Para  que se possa pronunciar o oi como wa, seria mister que ele existisse por si mesmo. Na realidade é wa que se escreve oi” (9).


“O que fixa a pronúncia de uma palavra não é sua ortografia, mas sua história” (10).


Mais à frente, tece Saussure outros comentários:


“É, pois, um erro supor que, após ter-se reconhecido o caráter falaz da escrita, a primeira coisa a fazer seja reformar a ortografia. O verdadeiro serviço que nos presta a Fonologia é permitir que tomemos certas precauções no tocante a essa forma escrita, pela qual devemos passar para chegar à língua. O testemunho da escrita só tem valor com a condição de ser interpretado. Diante de cada caso, cumpre traçar o sistema fonológico do idioma estudado, isto é, o quadro dos sons de que ele se utiliza; dada língua, de fato, opera com um número determinado de fonemas bem diferenciados” (11).


E perguntamos nós, qual foi, por acaso, a reforma ortográfica no Brasil que seguiu esse critério científico acima exposto?


“Quando se trata de uma língua viva, o único método racional consiste em: a) estabelecer o sistema de sons tal como é reconhecido pela observação direta; b) observar o sistema de signos que servem para representar — imperfeitamente — os sons. Muitos gramáticos se prendem, todavia, ao velho método (...) que consiste em dizer como se deve pronunciar cada letra na língua que querem descrever. Por esse meio, é impossível representar claramente o sistema fonológico de um idioma” (12).


Portanto, a gramática escrita, oficial, do Brasil é hilariante.


As reformas ortográficas esbarram nos interesses econômicos das editoras e no ranço arcaísta dos “monstros sagrados” que se veem ameaçados de perderem o beletrismo que encanta os salões da burguesia que a legitima.


Há muitos interesses em jogo quando se trata de reformar a ortografia oficial. É só imaginar a fortuna que as editoras gastariam para reformar seus livros didáticos, a “humilhação” dos intelectuais em, presumindo-se “gramáticos”, “filólogos” etc., terem que se submeter a aprender com os linguistas a linguística da sua língua, que se apresenta como patrimônio privado de tais homens de “linguagem louçã” a soltarem verborragias infundadas e falsas a um povo enganado. Veja-se o caso das reformas ortográficas da língua portuguesa, em que se mexe apenas nos acentos e coisas de menos importância; e nem se toca na letra H inicial de palavras — pois, apesar de não representar som no português, defendem que seja necessário continuar a existir como letra etimológica para lembrar ao povo as raízes históricas da língua. Pronuncia-se [z] e se escreve S, [s] e se escreve SS. É uma gramática da língua escrita baseada na gramática da língua falada em Portugal, com uma artificialidade latente com relação à língua portuguesa que aqui falamos; há, na prática, uma colocação diferente de advérbios e pronomes átonos em ambos os países, há diferenças de vocabulário, com empregos diversos, às vezes, de uma mesma palavra, há discordâncias fonológicas; no Brasil, o pronome ele é usado tanto para sujeito quanto para objeto, entre outra enorme quantidade de fatos linguísticos diferentes que a gramática desconhece entre o português brasileiro e o lusitano. E a língua literária brasileira teima em expressar essa incorreta “homogeneidade”, apesar dos clamores de José de Alencar, dos protestos da Semana de Arte Moderna de 1922 e de vários escritores contemporâneos.


Já os “primeiros cronistas, ao menos do advento do Romantismo (...) manifestam os mais claros indícios de divergência entre o português daqui e o português lusitano” (13). Toda uma comunidade de linguistas e estudiosos do assunto sabe disso, no entanto, continua-se a desconhecer esse fato, talvez porque ainda falte alguém que tenha a temerosa coragem de escrever uma Gramática Brasileira da Língua Portuguesa, se bem que duvido haja editoras para publicá-la, Ministério ou Secretaria de Educação que a aceite, exames vestibulares ou de concursos públicos que a cobrem nas suas avaliações, pois, pela alienação linguística brasileira, no nosso país ainda só é possível resolver problemas ortográficos por decreto. Mas chegar-se-á ao dia (quiçá não muito distante) em que haveremos de presenciar o basta a esta situação.


É uma gramática da língua escrita baseada na gramática da língua falada em Portugal, que seguimos e está em contradição sintática, fonológica, morfológica e estilística com a língua portuguesa falada no Brasil, que obriga ao “bom tom” não iniciar frases com o pronome átono proclítico, e vai por aí à fora. Daí advém a incoerência de que “no Brasil, é mais sensível que em Portugal a distância entre a língua literária e a língua falada. Na antiga metrópole, o iletrado falará o português melhor que o nosso” (14). É a isso que se chama cultura letrada, ao artificialismo burguês assimilado do verniz da aristocracia. Ora, em língua o correto é o que comunica eficientemente. Na teoria padrão de Noam Chomsky (15), aceitável é tudo o que é perfeitamente natural e imediatamente compreensível. “(...) a gramática de uma língua é um sistema de regras de que depende o seu uso, e (...) toda pessoa, escolarizada ou não, domina esse sistema de regras.


“Assim sendo, quem diz que tal ou qual indivíduo não sabe gramática está restringindo o termo ou à acepção de um conjunto de preceitos normalmente transmitidos por meios não naturais, como o compêndio didático ou às aulas de língua; ou à acepção de uma ‘nomenclatura’ que compreende termos como substantivo, verbo, transitivo, voz passiva, sujeito, adjunto, significação etc.


“Estas concepções se devem a duas ideias muito difundidas no passado: 1. que as línguas faladas são uma deturpação dos ‘bons modelos’ e que, para preservá-lo, os gramáticos formulavam ‘regras’ do ‘uso correto’; 2. que a gramática é apenas a análise ou descrição do sistema de uma língua, isto é, uma metalinguagem” (16).


Há também uma pureza estilística no registro camponês que a literatura popular expressa, basta que se ouça um repentista a fazer os seus versos, o embolador nas feiras-livres, o vaqueiro cantando o seu aboio, para se notar o capricho também literário do registro vulgar expresso no dialeto camponês; só que o discurso literário das camadas populares nasce como signo do trabalho direto com o meio de produção e ganha a forma substantiva do gibão de couro, do martelo a bater na bigorna, do apito da fábrica de tecidos, ou seja, o traço de uma estética popular, ao passo que a pureza estilística no registro burguês que a literatura culta revela é retirada do ócio de quem não é trabalhador e nasce com o signo da exploração social que não sabe se “a vida parou ou foi o automóvel” e pede para que “um auto passe sobre o seu corpo”, embriagada que está pela comoção que lhe faz “essa lua e esse conhaque” (trechos dos poemas “Cota Zero” e “Poema das Sete Faces” de Carlos Drummond de Andrade).


O critério de correção é, portanto, relativo; por exemplo, seria considerado um mal falante aquele que fosse se expressar em linguagem coloquial do Rio de Janeiro na periferia de Piracicaba. Isso porque “a ideia de correção e de norma linguística está implícita no comportamento das sociedades de todos os tempos (...), tanto a língua como a sociedade são estruturas e (...) as variações ou oscilações da estrutura linguística estão sistematicamente correlacionadas com a variação na estrutura social” (17). Inclusive, até hoje, “não sabemos, por exemplo, se há uma norma culta nacional ou se ocorrem várias de âmbito regional” (18). “Haveria possibilidade de sistematizar na mesma gramática Guimarães Rosa, que expressa um dialeto regional de Urucuia-MG e cidades vizinhas, e Érico Veríssimo?” (19)


Qualquer pessoa que se utilize do dialeto caipira na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro será ridicularizada, e seu falar será considerado grosseiro. Na sua tese “O Dialeto Caipira na Região de Piracicaba”, Alda Natal Rodrigues identifica desempenhos morfossintáticos completamente diferentes dos utilizados noutras regiões do País; naquela localidade, encontramos uma gramática que oferece duplicidade de gênero para certos pronomes indefinidos, como TUDO (que é tido pelo povo piracicabano como pronome indefinido masculino) e TUDA (que é tido naquela região como pronome indefinido feminino), e outras variações morfossintáticas que não nos interessa apontar aqui para não fugirmos aos objetivos deste ensaio. Portanto, em língua o certo é o que comunica.


A obrigação de falar conforme a escrita oficial nasceu historicamente com a finalidade de reproduzir o traço linguístico da classe dominante; Lutero, ao ser indagado por que tinha escrito daquela forma — que hoje é o alemão oficial —, declarou que “eu escrevo como o meu príncipe fala!” A gramática tida como oficial da língua portuguesa do Brasil é apenas uma gramática da escrita, não é uma gramática que se encaixe com a nossa fala, encaixa-se mais com a de Portugal, e nem mesmo a burguesia nacional consegue expressar-se a contento com os seus parâmetros, apesar de esforçar-se, e muito, para isso; esse esforço das classes dominantes no Brasil advém de aspectos peculiares da nossa formação política, na qual a burguesia e a aristocracia rural conviveram sempre juntas no poder, guiando-se aquela pela “etiqueta” desta a fim de assimilar certos comportamentos cerimoniais e adquirir um protocolo de conduta já estabelecido no Império, que o recebeu da Coroa Portuguesa, e adaptar a ela sua máquina burocrática. A própria literatura brasileira documenta isso, basta ver o Policarpo Quaresma.


Então, estabeleceu-se o modelo a ser seguido na língua escrita, veja a linguagem dos homens públicos brasileiros. Você sente o ranço de uma metrópole falando para a colônia, que é o povo. É uma linguagem artificial, forçada; folheando as gramáticas oficiais, vemos a ideologia da classe dominante sendo jogada ao povo: “Deus” é um “substantivo concreto por ter existência independente de sentimentos e emoções”, e “próprio”, devendo ser escrito com inicial maiúscula; a ortoepia manda que se pronuncie boêmia — /bo’emia/ — com tonicidade no /e/, embora o povo fale /boe’mia/; o plural de “caráter” tem que ser “caracteres”, que na verdadeira gramática do povo já tem significado totalmente diferente do que seria o plural de “caráter”; o plural de palavras terminadas por ÃO exige que até mesmo uma parcela intelectualizada da população vá aos manuais oficiais para consultas a fim de evitar uma “gafe”, pois  ora se faz em ÃOS, ora em ÕES, ora e, ÃES; o plural dos substantivos terminados por N também é uma cabala indecifrável; o plural dos adjetivos compostos também é cheio de exceções; o aumentativo sintético de CÃO é CANAZ; o superlativo absoluto sintético de  SOBERBO é SUPERBÍSSIMO; o imperativo afirmativo do verbo FRIGIR é “FREJE TU”; estabelecem prescrições de quando o pronome oblíquo átono deve ser colocado mesocliticamente (de forma que seria considerada errada uma frase que com ele se iniciasse, como “Me queixaria de você”, sendo que o “bom uso do vernáculo” aconselha que seja “Queixar-me-ia de você”); e outras coisas mais que nos chegam a causar espécie. É o tique da dominação de uma classe ociosa, revelando a antiga dominação colonial.

Isso torna ainda mais inacessível a norma culta para as camadas populares.


NOTAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

(1) A etnia manjaca situa-se no interior da Guiné-Bissau, bem como outros grupos étnicos como o Mancanha, Farim, Papel etc., que têm suas línguas próprias, apesar de a língua oficial ser o português e, nos centros urbanos, falarem mais o crioulo, que é mistura do português com as diversas outras línguas locais. O manjaco é falado pela etnia mais numerosa daquele país.

(2) SEMANA, Paolo. Linguagem e Poder. Brasília: Universidade de Brasília, 1981. p.115

(3) Ibid. p. 116

(4) SAUSSURE, Ferdinand. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 1974. p. 35

(5) Ibid. loc. cit.

(6) Ibid. pp. 35-36

(7) Ibid. pp. 37-38

(8) Ibid. p. 39

(9) Ibid. p. 40

(10) Ibid. loc. Cit.

(11) Ibid. p. 44

(12) Ibid. p. 47

(13) COUTINHO, Ismael. Prefácio a “O Modernismo Brasileiro e a Língua Portuguesa”. Rio de Janeiro: Grifo, 1976. p. 11

(14) MACHADO FILHO, Aires. Linguística e Humanismo. Petrópolis: Vozes, 1974. p. 161

(15) Noam Chomsky é um linguista estadunidense do Massachusetts Institute of Technology-MIT, criador da teoria linguística da Gramática Gerativa; Chomsky também é um conceituado cientista político.

(16) AZEREDO, José. Gramática – Alguns Pontos de Vista, in Revista de Letras. Rio de Janeiro: Ano 7, julho-setembro de 1974. p. 35

(17) VANDRESEN, Paulino. Tarefas da Sociolinguística no Brasil, in Revista Vozes. Petrópolis: nº 8, ano 67, 1973. p. 607

(18) Ibid. p. 610

(19) Ibid. loc. cit.


Guará II-DF, 5 de abril de 2023

SALIN SIDDARTHA