Quinta, 13 de março de 2014
Especialistas comentam a ocupação da Vila Kennedy e analisam UPPs das duas maiores favelas do Rio
Bandeiras hasteadas e discursos otimistas marcaram o final
da ocupação da Vila Kennedy, na Zona Oeste do Rio, nesta terça-feira. O ritual se repete pela 38ª vez,
mas não parece surtir efeito. A realidade das UPPs dentro das favelas é
bastante diferente. Morte de policiais e civis, tiroteios, violência e medo
continuam fazendo parte da vida dos moradores das comunidades ditas
pacificadas. A relação entre os moradores e a polícia se torna cada vez mais
complicada à medida que a impunidade e a corrupção colocam fim à vida de outros
“Amarildos” e a violência mata outras “Gleices”.
Para Ignácio Cano, especialista em segurança pública do
Laboratório da Uerj de Análise da Violência, “a UPP representa a transformação
da segurança pública e a saída da criminalidade das favelas, mas ainda tem
muita coisa pela frente”. Ele acredita que casos de grande repercussão, como o
desaparecimento do pedreiro Amarildo, demonstram as fraquezas no esquema de
instalação das Unidades.
Ainda segundo Ignácio, para o sucesso do projeto é preciso
avaliá-lo de forma sistemática, o que ainda não acontece. “Em primeiro lugar as
UPPs devem ser dirigidas para as áreas mais violentas, com maior índice de
criminalidade. Outro ponto é melhorar a relação entre policiais e moradores das
comunidades. E, em terceiro lugar, legitimar o trabalho nas UPPs dentro da
própria polícia. A maioria dos policiais não quer trabalhar nas Unidades. Entre
os fatores está a crença de que se trata de um policiamento de segunda divisão
porque ainda existe a crença de que ser policial é trocar tiro com bandido”,
resume o especialista.
Sobre o anúncio da inauguração de novas UPPs na Baixada, Niterói e São Gonçalo, Cano define como “um esquema de
eleição que chegou tarde”. A mesma opinião é compartilhada pelo cientista
social e professor da UFF, Elionaldo Fernandes Julião. “Estamos em um período
de organização eleitoral. O que as pessoas pensam sobre a UPP é uma moeda
importante na política. Por isso, quanto mais UPPs melhor para mostrar que o
Rio está pacificado. Contudo, a questão deve ser: se não conseguimos resolver
os problemas iniciais, para que inaugurar mais UPPs?”, questiona Elionaldo.
Os “problemas iniciais” citados pelo sociólogo estão,
principalmente, relacionados à infraestrutura, capacitação dos policiais e aos
recursos humanos. “O policial não pode mais ter aquela formação da ‘violência
pela violência’. Ele precisa ter uma visão social, tem que saber lidar com a
mediação de conflitos”, explica o professor.
Sobre a estruturação da projeto das UPPs, Elionaldo disse
concordar com a proposta e com a ideia, mas, por outro lado, enxerga sua
fragilidade “à medida que cede a interesses político-partidários e aceita
atropelamentos”. O cientista político acredita que a política da UPP é
paliativa. “Apesar de desenvolver uma lógica de segurança aliada a projetos
sociais, é preciso um planejamento de médio e longo prazos. Os problemas vêm
ressurgindo e mostrando que não foram resolvidos, foram apenas varridos para
debaixo do pano e, com isso, criou-se uma falsa imagem positiva nacional e
internacionalmente”, analisa.
A ocupação
A ocupação começou do dia 7 de março e terminou com seis
mortos e cinco feridos. Segundo a Secretaria de Segurança Pública do Estado do
Rio de Janeiro, um dos mortos era menor e todos eram criminosos. Foram
apreendidas armas, granadas, munições, drogas e material de endolação, 180
reais em espécie, além de radiotransmissores, artigos roubados, eletrônicos e
balanças de precisão. Ainda segundo a Secretaria, foram presas 80 pessoas.
Hoje, mais nove prisões foram efetuadas, seis delas em flagrante e outras três
em cumprimento de mandato de prisão - sendo uma mulher por tráfico, um homem
por receptação e outro por ameaça e injúria -. Além disso, duas motos e dois carros
roubados foram recuperados; armas e drogas também foram apreendidas.
A UPP da Vila Kennedy foi ocupada em 20 minutos, por 300
homens. Há mais de dois anos, a população, que sofria com a guerra entre duas
facções, cobrava uma medida do estado. Hoje, os comboios começaram a chegar às
5h. As aulas foram suspensas e cerca de 700 estudantes ficaram em casa. Não
houve tiros ou resistência durante a operação. Após a finalização do processo,
250 policiais ficarão lotados na Unidade, no Largo do Leão. Paralelamente à
ocupação, foram realizadas operações satélite nas favelas Nova Holanda,
Rola, Antares, Morro Azul e Cidade Alta.
Segundo o chefe de Estado Maior Operacional da Polícia
Militar do Rio, Paulo Henrique Moares, 22 mil pessoas moram na Vila Kennedy. Para
Ignácio Cano, a proporção de cerca de 11 policiais para mil pessoas pode ser
definida como “razoável”. Hoje, o secretário de Segurança Pública, José Mariano
Beltrame declarou que a expectativa é que mais de 33 mil pessoas sejam
beneficiadas com a UPP, considerando a população da Favela da Metral, vizinha à
Villa Kennedy.
A realidade das
comunidades pacificadas
Segundo José Mariano Beltrame, das 38 UPPs, apenas duas
apresentam problemas. O secretário fechou os olhos para a violência que
continua atingindo as comunidades pacificadas, como o tiro que matou José
Joaquim de Santana, de 81 anos, na comunidade Mandela, em Manguinhos; a morte
da PM Alda Castilho, na Vila Cruzeiro; ou os tiroteios que assustam moradores e fecham comércios, escolas e as
portas das casas. “Estamos com alguns
problemas em duas áreas, que são as mais populosas [Rocinha e Alemão]. Não
temos problemas em 38 UPPs, mas em duas que ultrapassam 100 mil habitantes. São
problemas difíceis de resolver por causa da topografia e por causa da tirania
do tráfico, que age com terror à medida que se vê ameaçado. Nosso programa é
ousado, entramos em verdadeiras megalópoles do crime", declarou o
secretário.
Considerando a
afirmação do secretário, vale lembrar o discurso do governador Sérgio
Cabral durante
a pacificação da Rocinha: “Que as futuras gerações convivam
harmoniosamente com
a polícia nas comunidades. A luta pela paz é um processo e precisa de
disciplina, luta e determinação", observou o governador. Na mesma
favela, 25
PMs foram acusados de envolvimento na tortura e morte presumida do
ajudante de
pedreiro Amarildo de Souza, em julho do ano passado. Na época da
inauguração da Unidade, o comandante Major Edson Santos, que liderou
acusado de torturar Amarildo e outros 30 moradores da Rocinha, declarou:
"Nosso principal objetivo é permitir que o morador da Rocinha tenha a
certeza que ele agora é o dono da comunidade. A população nos apoia. A
prova disso é que foi através da colaboração deles que chegamos à
autoria de crimes ocorridos aqui nesse período".
O Complexo do Alemão se tornou cenário de novela em 2014.
Durante a pacificação, Cabral declarou: "Minhas expectativas são as
melhores possíveis, atuando com uma política de segurança integrada e
participava com a comunidade. Estou muito feliz de poder fazer minha parte
neste momento histórico que a cidade está vivenciando". Falando assim, nem
parece ser a mesma favela que o Rio conhece. Policiais mortos pelo tráfico,
como o Soldado Rodrigo de Souza Paes Leme, carros queimados, barricadas
montadas por bandidos e bases da Unidade atacadas a tiros de armas de exército,
mas que fazem parte do arsenal do tráfico.
Hoje, no Centro de Comando do Governo do Estado, Cabral
discursou, dizendo: "Invertemos a lógica do crime, que tenta encontrar
espaço nas comunidades. Antes, a PM entrava, trocava tiros e saía da
comunidade. Hoje, são os bandidos que covardemente tentam atacar a polícia,
desestabilizar a população, e depois fogem. Hoje é a polícia que fica lá 24
horas". O discurso ufanista se mantém e, pelo andar do projeto, essa
também será a tendência dos problemas.
*Do Projeto de Estágio do Jornal do Brasil