Segunda, 31 de março de 2014
Da IHU
Instituto Humanitas Unisinos
“O poder político
cívico-militar não poupou esforços para a cooptação da Igreja Católica
pelo simples fato de que é a Igreja da grande maioria do povo brasileiro
e de grande influência no mundo inteiro”, diz o irmão marista.

“A maior parte da Igreja,
em relação à quartelada cívico-militar de 1964, por causa
principalmente de um anticomunismo doentio causado por uma consciência
ingênua, não conseguia dominar e distinguir diferentes ideologias”,
comenta Antônio Cechin, em entrevista por e-mail à IHU On-Line, ao refletir sobre o papel da Igreja no Golpe Civil-Militar de 1964. “A ‘marcha do Rosário pelas famílias em favor da paz’ no Brasil, capitaneada pelo Padre Peyton, norte-americano, nas vésperas do Golpe, em defesa do país contra o comunismo que a mídia proclamava como iminente, encheu o largo da Prefeitura de Porto Alegre
com milhares e milhares de pessoas. Essas marchas, feitas em todas as
principais cidades do Brasil, foram o ato de massa que deu legitimidade e
respaldo civil-religioso ao golpe que se estava gestando em nosso meio e
que fora brecado alguns anos antes pelo Levante pela Legalidade do povo rio-grandense comandado por Leonel Brizola”, complementa.
Preso e torturado duas vezes, Antônio Cechin conta que a razão de suas detenções estava relacionada ao fato de ser, como ele mesmo diz, “um Catequista da Libertação”. Cechin disse diversas vezes que deve sua vida a Dom Vicente Scherer, que lhe tirou do cárcere nas duas ocasiões, mas mantém um posicionamento crítico ao pensar nas figuras de Scherer e de Dom Hélder Câmara no contexto de 1964. “Para mim, Dom Vicente foi um Pastor zelosíssimo daquilo que hoje considero o modelo europeu de catolicismo que chegou da Europa através de Portugal em 1500. Modelo esse que se esgotou com o Concílio Vaticano II. (...) Dom Hélder foi o iniciador da Igreja do Brasil e com ele retornamos ao modelo de Igreja dos Primórdios, porque ‘Deus é para nós o único absoluto, porém o absoluto de Deus são os pobres’”, avalia.
Antônio Cechin é irmão marista, graduado em Letras Clássicas (grego, latim e português) e em Ciências Jurídicas e Sociais. Trabalha como agente de Pastoral em diversas periferias da região metropolitana de Porto Alegre, sendo também assessor de Comunidades Eclesiais de Base do Rio Grande do Sul, de catadores e de recicladores. Desempenha ainda a função de coordenador do Comitê Sepé Tiaraju e da Pastoral da Ecologia do Regional Sul III da CNBB. Escreveu Empoderamento Popular: Uma pedagogia de libertação (Porto Alegre: Estef, 2010). Publica periodicamente artigos nas Notícias do Dia do sítio do IHU.
Foto: Sul 21 |
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como foi a atuação da Igreja Católica quando houve o Golpe de 1964? De que maneira a instituição se posicionou em relação à situação política da época?
Antônio Cechin - Assim como o Golpe de 1964 não foi somente militar, mas sim cívico-militar, fazendo parte da sociedade civil também a própria Igreja teve certa participação. Paulo Freire, nosso maior educador brasileiro, criou a palavra conscientização, enriquecendo assim o vocabulário da língua portuguesa. Até Paulo Freire
só falávamos em tomada de consciência. Porém, conscientização é
infinitamente mais do que isso, porque Freire, em suas palestras,
distinguia sempre quatro graus de consciência. Em ordem crescente:
consciência mítica, empírica, ingênua e científica.
Quando se trata de análise da realidade é
que mais se pode evidenciar se as pessoas o fazem com uma simples
tomada de consciência ou se são pessoas conscientizadas, e até mesmo se
pode identificar o grau de consciência de cada um e em que espécie de
consciência navegam pelo método de alfabetização criado por Paulo freire.
Enquanto não se adota o instrumento global de análise da realidade alinhavado particularmente por Marx
- inventor do comunismo depois de destrinchar por completo o sistema
capitalista em análise minuciosa -, embarca-se com a maior facilidade
nos meios de comunicação do sistema capitalista que, desde muito tempo
atrás, para salvar a pele da classe dominante do país, em face da
extrema pobreza que o capitalismo gera, acaba-se caindo na ideologia da
sociedade hegemônica. Cunhou-se, na época, até a expressão “comunista come crianças”
para designar o horror causado aos que estão bem demais no mundo, por
causa da riqueza que esbanjam, em relação a qualquer possibilidade de
mudança para um sistema político de uma sociedade que não seja o
capitalismo imperante.
A maior parte da Igreja,
em relação à quartelada cívico-militar de 1964, por causa
principalmente de um anticomunismo doentio causado por uma consciência
ingênua, não conseguia dominar e distinguir diferentes ideologias. A “Marcha do Rosário pelas famílias em favor da paz” no Brasil, capitaneada pelo Padre Peyton, norte-americano, nas vésperas do Golpe, em defesa do país contra o comunismo que a mídia proclamava como iminente, em Porto Alegre, encheu o Largo da Prefeitura
com milhares e milhares de pessoas. Essas marchas feitas em todas as
principais cidades do Brasil foram o ato de massa que deu legitimidade e
respaldo civil-religioso ao golpe que se estava gestando em nosso meio e
que fora brecado alguns anos antes pelo Levante pela Legalidade do povo rio-grandense comandado por Leonel Brizola .
A Assembleia Geral da CNBB
daquele ano de 1964, contra o voto de uma minoria conscientizada,
agradeceu publicamente aos militares pelo fato de terem, através do Golpe, “salvado o país do comunismo” e pelo mesmo acontecimento realizaram uma cerimônia de ação de graças a Deus e a Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil.
IHU On-Line – Como o Concílio Vaticano II gerou reflexos na postura da Igreja no Brasil com relação ao Golpe?
Antônio Cechin - O golpe militar se deu durante o período em que se realizava o Concílio Vaticano II , que iniciou em 11 de outubro de 1962 com o discurso de abertura do papa João XXIII. Foi realizado em quatro sessões, e só terminou no dia 8 de dezembro de 1965, três anos depois de ter sido iniciado.
O poder político cívico-militar não poupou esforços para a cooptação da Igreja Católica pelo simples fato de que é a Igreja
da grande maioria do povo brasileiro e de grande influência no mundo
inteiro. Por isso, um dos primeiros atos dos golpistas foi fretar um
avião, sem despesa nenhuma para a CNBB, para a totalidade dos bispos brasileiros se deslocarem até o Vaticano
a fim de participar da sessão conciliar do ano de 1964. Conquistando os
bispos, pensavam que também teriam o povo cristão do seu lado.
Dentro do avião e depois na Domus Mariae, em Roma,
onde o episcopado brasileiro esteve hospedado durante mais de um mês de
sessão conciliar, os bispos, apesar do entrecruzamento diário nas aulas
conciliares, aproveitaram o ensejo para também eleger a nova direção da
CNBB. A maioria conservadora do episcopado elegeu uma
diretoria composta de bispos conservadores e como tais, tolerantes em
relação ao Golpe.
Defenestraram simplesmente Dom Hélder Câmara, que era o secretário executivo da CNBB, logo ele que havia sido o fundador do órgão colegiado dos bispos, atendendo solicitação do Papa João XXIII. Essa deposição do “bispo vermelho”,
segundo o epíteto que lhe criaram os militares da ditadura, serviu de
cobertura à proibição total que impuseram a toda a imprensa brasileira
no sentido de jamais publicar algo sobre Dom Hélder, nem o próprio nome.
“O golpe militar se deu durante o período em que se realizava o Concílio Vaticano II” |
Exemplo emblemático foi o assassinato do Padre Henrique Pereira Neto, em Recife. Ele era Assessor da Juventude Universitária Católica - JUC na Diocese de Dom Hélder. Não podendo assassinar o bispo Dom Hélder, o militares mataram o sacerdote mais engajado nos trabalhos pastorais.
Em contraposição, a postura da primeira direção da CNBB, diretoria organizada por Dom Hélder, teve o conteúdo central do Concílio aprovado dentro da linha progressista João XXIII – Helder Câmara. O Concílio na realidade teve dois encerramentos: o primeiro, na grande Praça São Pedro do Vaticano, e o segundo, no recôndito das Catacumbas do início do cristianismo. Perseguidos os cristãos pelos imperadores romanos, o povo fiel se reunia secretamente nos subterrâneos da cidade. Aí também enterrava seus mártires. Esse segundo encerramento organizado por Dom Hélder Câmara reuniu em torno de uma centena de bispos do mundo inteiro e passou para a história com o nome de Pacto das Catacumbas.
Em contraposição, a postura da primeira direção da CNBB, diretoria organizada por Dom Hélder, teve o conteúdo central do Concílio aprovado dentro da linha progressista João XXIII – Helder Câmara. O Concílio na realidade teve dois encerramentos: o primeiro, na grande Praça São Pedro do Vaticano, e o segundo, no recôndito das Catacumbas do início do cristianismo. Perseguidos os cristãos pelos imperadores romanos, o povo fiel se reunia secretamente nos subterrâneos da cidade. Aí também enterrava seus mártires. Esse segundo encerramento organizado por Dom Hélder Câmara reuniu em torno de uma centena de bispos do mundo inteiro e passou para a história com o nome de Pacto das Catacumbas.
Estabeleceram entre si um pacto destinado a transformar a Igreja universal em autêntica Igreja Pobre com total opção pelos pobres. Com o Pacto das Catacumbas Dom Hélder profetizou a leva de mártires que a Igreja do Brasil e de todo o continente latino-americano forneceria para enriquecimento do martirológio da Igreja Católica.
IHU On-Line – O que foram as
fichas catequéticas e por que incomodavam tanto os militares? Essa
“Catequese Nova e Libertadora”, como o senhor mesmo definiu e propôs,
foi a razão de suas prisões?
Antônio Cechin - Foi no início da década de 1950 que Dom Hélder, quando bispo auxiliar do cardeal do Rio de Janeiro, começou um discurso inteiramente novo. Mirrado que era Dom Hélder fisicamente, fazia discursos tonitruantes que ecoavam pelo mundo inteiro. Com argumentos irrefutáveis, tomando até Jesus Cristo, Filho de Deus encarnado como modelo da opção pelos pobres, pregava a obrigação que tínhamos para com os “últimos” que compõem a imensa maioria da população brasileira em situação de fome e miséria.
Aconteceu então o mergulho da Igreja nas
periferias, nos grotões dos campos interioranos e nos meios urbanos
mais afastados dos centros das cidades. Foi a chamada Inserção da Igreja
nas periferias, empenhada na organização das Comunidades Eclesiais de Base
entre os pobres. Trabalhava-se em duas dimensões, a exemplo de Jesus de
Nazaré, que dedicava grande parte de seu tempo à pequena comunidade dos
12 apóstolos, com a finalidade de servirem de fermento das massas ou
multidões.
Paulo Freire, militante cristão da diocese de Dom Hélder na cidade de Recife,
inventou também seu método de educação começando com essa imensa
população mais abandonada e analfabeta. Esse método se chama de “Educação para a Prática da Liberdade” ou “Pedagogia do Oprimido”. Pelos grotões dos campos, no interior, e na cidade escalando morros, buscavam-se: as “palavras geradoras” para a alfabetização e os “temas geradores” para a educação.
As Fichas Catequéticas, com base no método Paulo Freire, inauguraram no Brasil a chamada Catequese Libertadora, à qual se seguiu a Teologia da Libertação. Começou-se com Fichas a serem utilizadas nas aulas de Religião das
escolas religiosas e leigas ou públicas e estatais, porque todas as
escolas podiam optar pelo ensino religioso, que era facultativo. Num
segundo momento, estendemos essa Catequese Libertadora às próprias Comunidades de Base que se constituíam na nova base da Igreja e também da nova sociedade. A Catequese Libertadora para a América Latina havia sido urgida na grande Assembleia do episcopado latino-americano realizado na cidade de Medellín, Colômbia, no ano de 1968.
“As Fichas Catequéticas, com base no método Paulo Freire inauguraram no Brasil a chamada Catequese Libertadora, à qual se seguiu a Teologia da Libertação” |
Material Subversivo
No ano de 1969, em plena ditadura, os militares de plantão em Brasília, a cada novo ano, sempre na semana que precedia ao 1° de abril, celebravam em todo o Brasil o aniversário da “revolução”. No ano de 1969, no dia reservado ao Ministério da Educação, apresentou-se na televisão o próprio titular da pasta, o General Jarbas Passarinho.
Em longa palestra, com nossas Fichas Catequéticas
em punho, lia partes, comentando sempre. Até o final, acabou lendo por
inteiro duas aulas do feixe de fichas correspondentes à primeira série
ginasial, intituladas Rumo à Terra Prometida. Encucado estava o general com essa tal de Terra Prometida, porque a linguagem de todas as Fichas,
sempre segundo ele, propositalmente era nebulosa, quando não linguagem
cifrada. Que Terra seria essa? Interrogava a si mesmo e aos
telespectadores. Não seria o paraíso comunista?... Fazendo ilações de
todo o tipo, ao fim e ao cabo, asseverou: Este material é altamente
subversivo. Lastimava que colégios públicos e católicos tivessem a
coragem de utilizar tal material didático com vistas a comunizar o
Brasil, corroendo inteiramente o futuro da juventude. Arrematou
referindo-se a Colégios Católicos particulares que até
subvenções em dinheiro do governo recebiam anualmente e cometiam o
pecado de ingratidão utilizando esse material em salas de aula.
Nós, os autores, ficamos estarrecidos diante do que poderia nos acontecer. Naturalmente a corrida atrás das Fichas
se deu no mesmo instante, a começar pelos biófilos ou amantes da Vida,
como um precioso e raro material para ler e conhecer em profundidade,
motivados que estavam pela ira que tinham contra os militares, e,
também, não poucos, viram no fato uma glória para a Igreja da Catequese e da Teologia da Libertação.
Mas a procura se deu também pelos necrófilos, ou amigos da morte; estes
tendo a polícia como testa de ferro, bateram em todos os colégios que
utilizavam nosso material “altamente subversivo” a fim de recolher tudo.
Catequese da discórdia
Nossas Fichas, naturalmente, como Catequese oficial da Igreja tinham o “nada obsta” (nihil obstat) da autoridade eclesiástica, bem como o “imprima-se” (imprimatur) do Arcebispo Metropolitano de Porto Alegre. O rebu causado pelas Fichas,
simples, modestas e inocentes que se nos afiguravam, foi de arrepiar.
Todo mundo, através da mídia falada, escrita e televisionada achou por
bem entrar com seu pitaco sobre o assunto. Gente ilustre e gente menos
ilustre. Professores e religiosos. Bispos e padres. Sociólogos e
psicólogos. Todo mundo procurou entrar com sua colher torta no assunto,
fosse entendido ou não em Catequese ou Pastoral.
O grande teatrólogo considerado o maior, Nélson Rodrigues, se ocupou do assunto a fim de execrar o nosso material didático. Gustavo Corção,
o grande escritor católico, não se conteve e teceu comentários
altamente destrutivos em relação à “Igreja de Passeatas” à qual ligava
nosso material escrito.
Interrogatório
A Nunciatura me chamou para interrogatório, e nossas Fichas foram parar no Vaticano. Minha prisão e tortura, ao lado de outros fatores, estou convencido de que aconteceram porque fui um Catequista da Libertação. Aliás, tinha sido eu que apresentara, em Medellín, no Congresso Internacional de Catequese, poucos dias antes da Assembleia dos Bispos, os Princípios Orientadores,
bem como o método dessa nova catequese libertadora, própria para
“países subdesenvolvidos”, como eram caracterizadas na época, as nações
do continente latino-americano. Nessa apresentação em Medellín tive a assessoria do teólogo da libertação Hugo Assmann e o apoio de toda a Equipe de Catequese da CNBB.
IHU On-Line – Em diversos
momentos o senhor já manifestou gratidão a Dom Vicente Scherer, que lhe
salvou a vida quando foi preso em duas ocasiões. Qual a importância de
Scherer no contexto do regime?
Antônio Cechin - Dom Vicente Scherer (foto) foi meu amigo a vida inteira. Conheci-o quando era pároco na Igreja São Geraldo. Quando morreu seu antecessor Dom João Becker, monsenhor Vicente Scherer, simples sacerdote, foi eleito pelo cabido da Arquidiocese como Vigário Capitular na arquidiocese vacante. Quando menos se esperava, a Santa Sé o escolheu para o episcopado e o nomeou logo como Arcebispo. De simples padre, Dom Vicente passou a arcebispo.
Antônio Cechin - Dom Vicente Scherer (foto) foi meu amigo a vida inteira. Conheci-o quando era pároco na Igreja São Geraldo. Quando morreu seu antecessor Dom João Becker, monsenhor Vicente Scherer, simples sacerdote, foi eleito pelo cabido da Arquidiocese como Vigário Capitular na arquidiocese vacante. Quando menos se esperava, a Santa Sé o escolheu para o episcopado e o nomeou logo como Arcebispo. De simples padre, Dom Vicente passou a arcebispo.
Como sacerdote e pároco que comecei a conhecer e depois como arcebispo, Dom Vicente foi sempre um pastor muito zeloso. A paróquia que ele dirigia, de São Geraldo,
tinha um dos melhores grupos de jovens de toda a arquidiocese que até
forneceram vocações sacerdotais gestados em seu seio. Um exemplo
emblemático do extraordinário zelo apostólico aconteceu uns anos antes
da ditadura militar no Brasil.
Francisco Julião, advogado nordestino, começou a organizar a população pobre do nordeste para a Reforma Agrária. A mídia dava a impressão que Julião havia "enfogueirado" as regiões mais pobres do Brasil. Dom Vicente,
em reunião com clero e religiosos, declarou que o comunismo estava
incendiando o Norte-Nordeste do Brasil e que dentro em pouco o comunismo
desceria até o Rio Grande do Sul, e nós, como Igreja,
perderíamos nossos viveiros vocacionais de sacerdotes e religiosos
fornecidos pelas catolicíssimas famílias interioranas.
Imediatamente partiu para a ação. Visitou os párocos de toda a Arquidiocese,
dando ordens a que cada pároco convidasse todos os colonos do município
a fim de criarem em todos o seu sindicato rural. Com essa leva de
sindicatos rurais, encarregou o bispo auxiliar D. Edmundo Kunz para ser o presidente da Federação Agrária Gaúcha - FAG. Mais tarde, a FAG se transformou em Federação dos Trabalhadores da Agricultura - FETAG.
IHU On-Line – Qual foi a postura de Dom Vicente em relação aos religiosos católicos presos e aos demais presos?
Antônio Cechin - No dia
em que fui preso, depois de a quadra em que eu estava com meus manos
ser cercada com camburões em todas as esquinas e de me introduzirem no DOPS, a casa dos meus manos foi devassada pelo Diretor do DOPS,
que se demorou no apartamento das 16 horas até às 22 horas, esmiuçou
até a cesta do lixo para juntar papeizinhos rasgados. Saindo do
apartamento com os auxiliares, levou mais de 100 livros da biblioteca,
certamente por achá-los subversivos. Alguns até eram contra o comunismo.
Minha mana, em prantos, imediatamente correu até a cúria metropolitana
a fim de pedir o auxílio de D. Vicente. Da primeira
vez em que estive na cadeia, acabei ficando apenas dois dias incompletos
para, ao final do segundo dia, o próprio secretário de Segurança do
Estado, Coronel Jaime Mariath, em seu próprio automóvel – ele de motorista e eu de único passageiro –, levar-me até a cúria, moradia de D. Vicente, e a ele me entregar.
IHU On-Line – Aliás, podemos
entender as figuras de Dom Hélder Câmara e Dom Vicente Scherer como
antípodas? No que se assemelhavam e no que se diferenciavam?
Antônio Cechin - Os dois, Dom Hélder e Dom Vicente, tinham posições muito diferentes em relação não só à ditadura militar, mas também em relação à Pastoral, à própria teologia e à Catequese.
Antônio Cechin - Os dois, Dom Hélder e Dom Vicente, tinham posições muito diferentes em relação não só à ditadura militar, mas também em relação à Pastoral, à própria teologia e à Catequese.
A qualidade boa de Dom Vicente é que não era “espiculão”, como diziam os jovens da JEC
com os quais eu trabalhava. Isto é, ele deixava trabalhar sem procurar
vigiar ninguém. Quando, em um colossal êxodo rural, chegaram a Canoas nada menos de 13 mil operários para a construção do Polo Petroquímico de Triunfo,
enchendo todas as periferias da cidade, em beiras de ruas e estradas.
Então, no Natal de 1979, ocupamos os latifúndios pertencentes aos
herdeiros do sesmeiro Matias Velho, local que o padre vigário não botava o pé, considerado por ele como invasão e roubo de terra do próximo.
Na visita que Dom Vicente fazia uma vez a cada ano aos padres, ele me mandou avisar o vigário que, no domingo seguinte, o próprio Dom Vicente
iria pessoalmente celebrar a missa para os “invasores” na capela que
havia sido levantada em mutirão. Mandou ainda que eu advertisse o pároco
para que estivesse pessoalmente ao lado dele na celebração.
“Dom Vicente foi um excelente sacerdote e arcebispo em condições de dar um salto” |
Pastor zeloso
Para mim, Dom Vicente foi um Pastor zelosíssimo daquilo que hoje considero o modelo europeu de catolicismo que chegou da Europa através de Portugal em 1500. Modelo esse que se esgotou com o Concílio Vaticano II. Dom Hélder foi o iniciador de um novo modelo de Igreja tipicamente latino-americano, aprovado no Concílio Vaticano II e a partir desse evento, convocado por João XXIII.
A este novo modelo de Igreja deve corresponder uma nova catequese, uma
nova teologia, um novo tipo de vida, religião, etc. Estamos hoje bem
avançados no mundo a ponto de Papa Francisco ser hoje o primeiro papa do
nosso novo modelo, da Igreja da Catequese e Teologia da Libertação.
Dom Vicente foi um excelente sacerdote e arcebispo em condições de dar um salto, porque já diziam os latinos, “a natureza não dá saltos” (natura non facit saltus). Dom Hélder foi o iniciador da Igreja do Brasil e com ele retornamos ao modelo de Igreja dos Primórdios, porque “Deus é para nós o único absoluto, porém o absoluto de Deus são os pobres”, e John Sobrino diz que nossa missão como cristão é de despregar da cruz os pobres de hoje, na qual estão crucificados.
IHU On-Line – Qual foi a
importância dos movimentos de resistência popular capitaneados pela
Igreja, organizados pela Ação Católica?
Antônio Cechin - A caminhada dos movimentos de resistência da Ação Católica Epecializada,
isto é, dos jovens agricultores, estudantes secundaristas,
independentes (profissões liberais), operários e universitários, apesar
de ter sido uma caminhada de muito sofrimento, foi também de muita
alegria e de grande entusiasmo. Há uma frase que ouvi na França
e que nunca esqueci: “Quando a juventude perde o seu entusiasmo, o
mundo bate os dentes de frio”. As saudades desses movimentos de muita
militância são enormes. Foram a base da Igreja da Libertação, com suas espetaculares CEBs , nova base de Igreja e de nova sociedade; foram a base do Partido dos Trabalhadores, que foi fundado por esses movimentos e só depois é que se somaram outras forças a esse partido que transformou o Brasil medieval em que vivíamos um Brasil da modernidade.
É uma pena que os percalços da Caminhada, em grande parte devido ao hiato na continuidade atribuído aos dois papas: João Paulo II e Bento XVI, nos tenha interrompido o processo, porque lembro quando foi dado por encerrado o Vaticano II, lendo os documentos produzidos, dizíamos: “o Vaticano está lindo, maravilhoso porque ajustou a Igreja Universal ao que até hoje construímos no Brasil. Absolutamente nada de novo acima do que nós conseguimos estar vivendo aqui”.
Saudade
Saudade
Não raro me encontro com jovens daqueles
tempos memoráveis, hoje gente de idade, e não encontrei um só que não
esteja com saudade com expressões do gênero: “A JEC me
deu embocadura para a vida inteira! Que maravilha!”. O mesmo não
acontece com quem foi de movimentos outros de caráter conservador, que
se ocupavam exclusivamente do religioso propriamente dito sem abertura
alguma para o social, que acima caracterizamos como do modelo vindo da Europa no início do Brasil
propriamente dito. Pergunto hoje a alguém: Foste cursilhista no
passado, que tal?! Como vês hoje aqueles tempos e com aqueles
movimentos? Em geral todos me respondem que têm vergonha de ter perdido
tempo com aquele tipo de Igreja.
IHU On-Line – Como avalia o trabalho da Comissão Nacional da Verdade? Por que resgatar a memória desse período é, mais que um gesto político, uma maneira de valorizar a liberdade e a vida?
Antônio Cechin - Acho espetacular que tenhamos chegado finalmente à Comissão Nacional da Verdade,
apesar do rugir de dentes das forças armadas, hoje bem aposentadas
monetariamente, mas com as consciências sempre mais indormidas e
sobressaltadas. Quem não tem história, não viveu. Apenas vegetou. Sem
processo histórico, não há nem salvação, porque a História da Salvação é sinônimo de Bíblia, e o nosso Deus dos cristãos é um Homem, o Jesus de Nazaré, com uma Caminhada Histórica, a mais fantástica e inimaginável do mundo.
(Por Ricardo Machado)