Sábado, 29 de março de 2014
Por Luciana Genro
O Senador Randolfe Rodrigues, do PSOL, é autor do PLS
237/13 que prevê a anulação da Lei de Anistia para torturadores. Esta
proposta vai na mesma direção do projeto que apresentei como deputada
federal, em 2010, o PL 7430/2010, elaborado com a inestimável
colaboração do jurista Fábio Konder Comparato. Estas e outras propostas
legislativas tentam reparar um fato contundente na história política
brasileira: A Justiça de Transição
não completou seu ciclo no Brasil. Avanços ocorreram no que diz
respeito às esferas da memória e da reparação, entretanto o julgamento e
a punição dos torturadores, bem como a transformação profunda das
instituições que deram guarida à tortura, ainda não ocorreram.
O desenvolvimento atrofiado da Justiça de Transição traz
consequências concretas no presente. A tortura ainda é um método
utilizado com freqüência, e as execuções sumárias são prática corrente
das polícias. As Unidades de Polícia Pacificadora, UPPs, no Rio de
Janeiro, vem sendo alvo de denúncias sistemáticas de abusos e violações
aos direitos humanos dos moradores. O caso Amarildo, pedreiro
desaparecido em junho de 2013, ganhou ampla repercussão, mas está longe
de ser um caso isolado. Já é fato praticamente comprovado que ele foi
morto por policiais em uma sessão de tortura dentro da sede da UPP.
No livro “Como nascem os monstros”, Rodrigo Nogueira, ex soldado da
PM do Rio de Janeiro, relata com detalhes como o caso Amarildo não foi
uma exceção: “Entre 2005 e 2009, o soldado Rodrigo usou a farda, o
distintivo e as armas cedidas pela corporação para extorquir dinheiro de
quem estivesse fora da lei ao cruzar seu caminho, torturar traficantes,
negociar e vender a liberdade de perigosos assaltantes, julgar e
condenar à morte criminosos e suspeitos de crimes, participar de ações
da milícia e matar a sangue-frio, sem piedade. Pela primeira vez um
ex-PM do Rio confessa publicamente ter cometido tamanhas atrocidades e
revela como funciona o esquema que corrompe praticamente toda a cadeia
hierárquica da corporação, do soldado ao coronel.”
O deputado estadual do PSOL/RJ, Marcelo Freixo, relata que “entre
1997 e 2012, o estado do Rio de Janeiro alcançou a marca de 12.560
“autos de resistência” (mortes de civis resultantes de ação policial).
Um levantamento feito pelo sociólogo Ignácio Cano, na década de 1990,
mapeou que as mortes decorrentes das ações policiais se concentram em
favelas. Entre os casos analisados, quase a metade dos corpos recebeu
quatro disparos ou mais, e 65% dos cadáveres apresentavam pelo menos um
tiro nas costas ou na cabeça, configurando a prática de execuções
sumárias.”
Uma polícia violenta, corrupta e que conta com a impunidade para
perpetrar os mais brutais atos de barbárie, como o que vitimou Amarildo,
Cláudia Silva Ferreira e tantos outros, é uma herança deste ciclo
incompleto da transição. Uma proposta concreta para combater a lógica
violenta das Polícias é a desmilitarização, debate que ganhou força a
partir das manifestações de junho e de tantas outras que vieram depois e
foram reprimidas. As favelas já conviviam cotidianamente com a
violência policial, mas agora a violência ficou mais visível para todos.
Mas 30 anos após o final do regime militar, militares ainda negam a
existência da tortura institucionalizada, mesmo com todas as evidências,
depoimentos e marcas deixadas na vida de tantas pessoas, e pela morte e
desaparecimento de outras tantas. Agentes públicos transformados em
torturadores e assassinos seguem impunes, e ainda remunerados pelo
Estado, como policiais, militares ou médicos.
Entretanto, a tentativa dos poderes executivo, legislativo e
judiciário de que a Justiça de Transição feche o seu ciclo sem que o
quesito “Justiça” seja contemplado, esbarra na persistência de
sobreviventes, familiares de vítimas e lutadores pelos direitos humanos.
Confronta-se, ainda, com a exigência da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos de que haja persecução penal dos agentes públicos
responsáveis por graves violações aos direitos humanos durante a
ditadura.
A sociedade é resultado de embates dialéticos, a história é feita por
homens e mulheres de carne e osso, que são também um resultado das
forças em luta e dos conseqüentes avanços de consciência que se operam
no seio desta sociedade. Assim, um grupo de Procuradores da República
saiu do script acordado dentro do Estado brasileiro e vem questionando a
impossibilidade legal de processar, julgar e punir os torturadores.
Estes Procuradores tem encontrado barreiras duras no Poder Judiciário,
mas mesmo nele conseguiram penetrar.
O Ministério Público Federal, através da 2ª Câmara de Coordenação e
Revisão, coordenada pela subprocuradora geral da República Raquel Dodge,
tem atuado de forma firme e incessante para apurar e garantir a
responsabilização penal dos agentes de Estado envolvidos nos crimes
contra os direitos humanos. Um Grupo de Trabalho Justiça de Transição
foi criado com o objetivo de avaliar as consequências da decisão da
Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) que condenou o Brasil no
caso Gomes Lund vs. Brasil ( Guerrilha do Araguaia), determinando que a
Lei de Anistia não poderia ser óbice para a persecução penal dos crimes
cometidos no período ditatorial. O Grupo, coordenado pelo Procurador
Ivan Cláudio Marx, sustenta que os desaparecimentos forçados dos
integrantes da Guerrilha do Araguaia são crimes de sequestro “cometidos
no contexto de uma ataque sistemático e generalizado a uma população
civil”, o que os caracteriza como crimes contra humanidade, tornando-os
imprescritíveis e insuscetíveis de anistia. São, ainda, crimes
permanentes, isto é, ainda em andamento, pois vários corpos seguem
desaparecidos, e por isso não alcançados pela Lei de Anistia, que
refere-se àqueles crimes ocorridos até 1979.
Sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal, no âmbito da ADPF 153,
que validou a interpretação de que a Lei de Anistia também impediria a
persecução penal dos agentes públicos que cometeram violações contra os
resistentes, e não apenas para os perseguidos políticos, a 2ª Câmara do
MPF entende que não pode prevalecer o direito interno diante do direito
internacional, pois a vinculação do Estado brasileiro à autoridade do
tribunal internacional foi validada pelo direito constitucional interno.
Diversos instrumentos jurídicos dão razão os Procuradores. O Brasil é
signatário da Convenção de Viena. Ao fazer isso o nosso país
comprometeu-se que ao assumir e ratificar um pacto ou convenção
internacional no exercício da sua soberania não poderá invocar esta
mesma soberania para descumprir o pacto.
O artigo 1º inciso III da Constituição brasileira eleva o princípio
da DIGNIDADE HUMANA a fundamento do Estado brasileiro. O Artigo 5º
parágrafo 2º afirma que os direitos assegurados na Constituição não
excluem outros decorrentes de tratados de direitos humanos. Este
dispositivo constitucional, para importantes juristas, significa elevar
estes tratados ao status constitucional, ou no mínimo, supra legal.
Em 1992, por livre e espontânea vontade, o Brasil aderiu ao Sistema
Interamericano de Direitos Humanos. Em 1998 o país foi ainda mais
adiante, reconhecendo a jurisdição contenciosa da Corte Interamericana e
assim assumindo o compromisso de aceitar as suas decisões como
obrigatórias e de pleno direito. E a obrigação de julgar e punir as
graves violações de direitos humanos já é, há anos, a jurisprudência da
Corte.
Há ainda diversos outros instrumentos internacionais, reconhecidos
pelo Brasil, que determinam essa obrigação, como a Convenção
Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, e, ainda a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas.
Cabe ressaltar que na Declaração de Viena e no Programa de Ação
adotado pela Conferência Mundial de Direitos Humanos, promovida pelas
Nações Unidas em Viena (1993), foi incluída uma cláusula recomendando a
ab-rogação das leis que garantem a impunidade dos responsáveis pelas
violações aos direitos humanos para que os responsáveis sejam
devidamente julgados.
Mesmo assim o Brasil recusa-se a cumprir a sentença da Corte
Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund X Brasil,
proferida em 14 de dezembro de 2010, na qual a CIDH conclui que a
interpretação dada à Lei de Anistia viola a convenção Americana dos
Direitos Humanos e determina, entre vários outros pontos, que esta lei
não pode ser obstáculo para o cumprimento de seu compromisso
internacional de processar, julgar e punir os autores de graves
violações aos direitos humanos.
Mas por que é tão difícil ao Brasil cumprir esta etapa transicional
já realizada pelo menos parcialmente pela esmagadora maioria dos países
latino americanos que passaram por ditaduras?
A transição controlada
Não há duvidas de que na raiz desta interdição ao pleno
desenvolvimento da Justiça de Transição no Brasil está o tipo de
transição vivida pelo país, controlada pelas elites dominantes. Os
militares e civis encarregados de representar os interesses da burguesia
e do imperialismo – e que em nome desses controlaram o país ao longo da
ditadura entregaram o poder de forma “gradual e segura” para os novos
operadores comprometidos em preservar os interesses dos que saíam do
centro do palco para os bastidores.
Esta transição foi tão controlada que possibilitou, inclusive, a
reciclagem de figuras – chave do regime militar, cujo exemplo mais
eloqüente é o Senador José Sarney. Não são, portanto, apenas os que
cometeram diretamente as violações aos direitos humanos que estão sendo
protegidos pela Lei da Anistia. Os principais beneficiários são os
políticos, empresários, banqueiros, os grupos políticos e econômicos que
deram sustentação ao regime, responsáveis últimos por todas as
barbaridades cometidas na defesa de seus interesses. O que explica a
força contrária a uma interpretação da Lei da Anistia que possibilite a
persecução penal dos responsáveis pelas execuções, desaparecimentos,
mortes e torturas é que os mentores e sustentáculos daquele regime
seguem presentes nas diversas instâncias do Poder Executivo,
Legislativo, Judiciário, e continuam no controle da economia do país. O
fato de que grandes empresas, inclusive de comunicação, foram
colaboradoras do regime já não é uma novidade. A própria Rede Globo teve
que se manifestar sobre o nefasto papel cumprido durante a ditadura.
O fato de que a transição foi controlada pelas elites políticas e
econômicas dominantes contradiz a tese de que houve um pacto de
transição, argumento usado inclusive por Ministros do Supremo Tribunal
Federal no âmbito da votação da ADPF 153. Muito pelo contrário. Uma
breve análise do momento histórico em que foi aprovada a Lei de Anistia
demonstra que a violência do regime seguia de forma intensa e que,
portanto, qualquer tipo de pacto, se tivesse ocorrido, não teria
legitimidade.
Para exemplificar a situação basta verificar que entre 1977 e 1981, cerca de 100 atentados ocorreram impunemente.
Em 1º de abril de 1977, o governo fechou o Congresso, por meio de um
conjunto de medidas que ficaram conhecidas como “Pacote de Abril”, e só
voltou a abri-lo, em meio à intensificação da censura e de cassações de
mandatos, após assegurar as mudanças que deveriam garantir a vitória da
ARENA nas eleições.
No final do ano de 1978, estava ainda em pleno vigor a Operação
Condor, um conjunto de operações levadas a cabo de forma articulada
pelas ditaduras latino-americanas, e os uruguaios Lilian Celiberti e
Universindo Dias foram sequestrados em Porto Alegre, Rio Grande do Sul.
Os Atos Institucionais haviam sido extintos em outubro de 1978;
entretanto uma nova Lei de Segurança Nacional foi aprovada, concentrando
poderes de forma inédita nas mãos do general Geisel.
Nesse cenário, em 27 de julho de 1979, o Presidente João Batista
Figueiredo assinou o projeto que daria origem à Lei da Anistia. Pela
proposta do governo, os já condenados por crimes de terrorismo, assalto,
sequestro e atentado pessoal estariam excluídos do benefício. Durante
os debates do projeto no Congresso Nacional os presos políticos entraram
em greve de fome, reivindicando a anistia ampla, geral e irrestrita e
denunciando a lei, que garantiria uma irrestrita e prévia anistia aos
torturadores.
O parágrafo 1º do artigo 1º da lei incluiu uma definição de “crimes
conexos”, na qual caberiam todos os crimes comuns cometidos pelos
agentes da repressão. Uma verdadeira autoanistia, que possibilitou ao
regime garantir a impunidade dos torturadores sem precisar reconhecer a
existência da tortura.
Em 21 de agosto de 1979, na sessão conjunta do Congresso Nacional que
votaria a lei, os deputados da oposição denunciaram a falta de
legitimidade do Congresso para votar o projeto que o governo pretendia
impor, pois aquele Congresso, que já havia aceitado os Senadores
biônicos, estava aceitando todas as limitações impostas pelo governo.
Ressaltaram que a anistia era fruto da luta popular, e que na forma em
que estava, seriam os torturadores os principais beneficiados com o
projeto do governo.
Enquanto os deputados discursavam, várias manifestações populares
aconteciam, tanto em Brasília como em outras capitais. As galerias do
Congresso chegaram a ser ocupadas por 700 soldados da Polícia da
Aeronáutica. A tensão era grande entre os parlamentares.
O discurso do Presidente da Comissão Especial que havia analisado o
projeto, Senador Teotônio Villela, demonstrou, de forma evidente, a
imposição do projeto a um Congresso sitiado:
“A oposição procurou, de V.Exa. a todas as lideranças, meios de um
entendimento. Tudo nos foi negado, até a humildade honrada de pedir para
insistir. Está selado o destino. Os jornais hoje publicam. Não havia
necessidade mais desse formalismo. [...] Criaram uma voz mais grossa e
mais elevada do que a voz do Sr. Relator, a voz das bombas que ontem
vieram atingir-nos na porta do Congresso Nacional. E não precisava, Sr.
Presidente, não precisava, de maneira nenhuma, de votação. Bastam os
pelotões que lotam essas galerias. Estas são as circunstâncias, Srs.
Congressistas, em que estamos votando.”
Evidentemente que a Lei 6683/79 foi considerada como um avanço, pois
beneficiou cerca de cinco mil pessoas atingidas, de diferentes formas,
pela repressão. Entretanto, grande parte das reivindicações daqueles que
lutaram pela anistia não foram contempladas: a lei não anistiou os
condenados por atentados e sequestros e não propiciou a libertação dos
presos enquadrados na Lei de Segurança Nacional. Além disso, abriu o
caminho para barrar a investigação e a punição dos agentes públicos
envolvidos com a tortura e com os desaparecimentos políticos.
O principal objeto da polêmica, que até hoje subsiste, é o parágrafo
1º do artigo 1º da lei, pois o objetivo declarado da lei era anistiar os
opositores políticos, mas esse dispositivo incluído tinha o objetivo,
não declarado, de anistiar também os agentes públicos que, sob o
pretexto de defender o regime, mataram, torturaram e violentaram os
opositores, perpetrando, na verdade, crimes comuns que não poderiam ser
abrangidos pela anistia. O regime não reconhecia a prática da tortura;
por isso, o debate sobre a inclusão dos agentes públicos que promoveram
violações dos direitos humanos não foi feito abertamente.
Além disso, como se pode concluir pela narrativa da aprovação da lei,
ela foi uma autoanistia, pois, no momento de sua aprovação, o regime
ainda detinha total controle do Congresso, e a sociedade permanecia
amordaçada pela censura e pela repressão política. Decorre desses fatos o
questionamento sobre a validade desse dispositivo, à luz na
Constituição de 1988 e das normas de Direito Internacional. O debate em
torno da lei e a luta para que ela não seja um óbice para a verdade e a
justiça prossegue até hoje.
Brasil no fim da fila
Em contraste com o Brasil, a Argentina é o país que mais julgou e
prendeu os autores de violações dos direitos humanos, mas o embate
contra a impunidade teve grande participação popular, e durou anos.
Finalmente, em 14 de junho de 2005, acatando o entendimento da Corte
Interamericana, a Suprema Corte argentina considerou inconstitucionais
as leis do Ponto Final e da Obediência Devida,
declarando expressamente que “carecem de todo efeito que delas ou de
atos praticados em função delas possam emergir obstáculos processuais
que impeçam o cumprimento dos mandatos de direito internacional”. O
Congresso, então, sancionou a Lei 25.779, que as declarou
“insanavelmente nulas”.
Uma pesquisa realizada por Kathriyn Sikkink e Carrie Booth Walling,
do departamento de Ciência Política da Universidade de Minnesota,
demonstra que esse atraso comparativo do Brasil vai além das fronteiras
do Mercosul. As pesquisadoras analisaram dados de um período de 26
anos, abrangendo 192 países e territórios. Destes, 34 países utilizaram
Comissões da Verdade, e 49 realizaram pelo menos um julgamento de
transição. Junto às Comissões da Verdade, em dois terços dos países
analisados, também aconteceram julgamentos. Nas Américas, foram todos. O
Brasil, segundo a pesquisa, está isolado no contexto latino-americano
pelo fato de ter editado uma Lei de Anistia, e esta ter evitado qualquer
julgamento. Exceto pelo Brasil, na América Latina como um todo, as Leis
de Anistia não conseguiram barrar os julgamentos, muito embora elas
tenham sido utilizadas em 16 dos 19 países que passaram por um processo
de transição. Também há casos em que esses dois processos ocorreram
apesar da concessão de anistias. Somente no Brasil a anistia atingiu o
objetivo de impedir os julgamentos.
Um importante aspecto que difere o processo brasileiro dos demais
países latino americanos é que a repressão política no Brasil foi
fortemente judicializada e funcionou por meio de um sistema que fundiu
as elites militares e judiciárias numa cooperação que preservou um alto
grau de consenso entre as duas corporações. Esta fusão propiciou uma
preocupação maior do regime com a legalidade formal, em comparação com a
Argentina, por exemplo. No Brasil, a razão entre os processados em
tribunais militares e os mortos extrajudicialmente foi de 23/1 (para
cada 23 processados, um morto extrajudicialmente), enquanto na Argentina
foi de 1/71 (para cada um processado, 71 mortos extrajudicialmente).
Essa integração entre as forças armadas e o judiciário também trouxe
consequências para o tipo de transição política e para o desenvolvimento
posterior da justiça de transição no Brasil. O status quo dos poderosos da ditadura foi preservado, e as medidas de instauração de uma justiça transicional foram mínimas.
No relatório nacional apresentado pelo Brasil durante o primeiro
ciclo da Revisão Periódica Universal (RPU) do Conselho de Direitos
Humanos da ONU, em 2008, o governo reconheceu a prática e a gravidade da
tortura, e sua própria falha em criar mecanismos que coíbam essa
prática.
O vice-presidente do Subcomitê de Prevenção da Tortura das Nações
Unidas e Chefe da missão da ONU, que realizou visita de inspeção ao
Brasil, em setembro de 2011, afirmou que “a impunidade é um dos
maiores fatores para a proliferação da tortura. Nós vimos em vários
países que as mesmas pessoas que torturaram nos governos militares
torturam nos governos democráticos”.
A própria transição foi marcada pela preservação. Apesar da
multitudinária campanha por eleições diretas, a proposta foi derrotada
no Congresso, e o presidente foi eleito indiretamente. O processo foi
controlado e dominado pelas elites, que garantiram que as organizações
conservadoras do judiciário e das forças armadas mantivessem-se
intocadas após a transição.
Símbolo maior desse processo é o já mencionado Senador José Sarney, que
foi um político da base de apoio do regime ditatorial, tendo rompido
com o regime no apagar das luzes, e, na condição de vice-presidente
eleito pelo Congresso, com a morte do titular, Tancredo Neves, acabou
por ser o primeiro presidente após a redemocratização. Em 2003, aderiu
ao governo Lula e foi apoiado pelo PT para assumir a Presidência do
Congresso Nacional, cargo que ocupou, com breve intervalo, até janeiro
de 2013, quando foi substituído por Renan Calheiros, seu aliado e alvo
de inúmeras denúncias de corrupção.
E assim chegamos ao final desta história, ou melhor, ao seu estado
atual, pois a história nunca termina. A conclusão que salta aos olhos é
que o governo petista não logrou cumprir um papel sequer progressista
neste embate contra a impunidade. Ao contrário, foi o fiador de um pacto
das elites para seguir garantindo que o Estado é sempre, em última
instância, o braço armado e repressivo da classe dominante e que não se
pode, portanto, punir aos que serviram a tão relevante tarefa.
Este artigo foi escrito a partir de pesquisa realizada para meu
trabalho de conclusão do curso de Direito, em 2011, que resultou na
publicação do livro Direitos Humanos: O Brasil no Banco dos Réus. Ed. LTR, 2012.
1 A Justiça de Transição envolve uma
combinação de estratégias complementares, judiciais e não judiciais, a
serem desenvolvidas nas sociedades que transitam de um regime ditatorial
para uma democracia burguesa. Podemos elencar como medidas essenciais
que compõem as ações da Justiça de Transição: (a) processar, julgar e
punir violadores dos direitos humanos ; (b) garantir o direito à verdade
e à memória, seja por meio de Comissões da Verdade ou de outras formas
de investigar e reconhecer as violações cometidas no passado e, ao mesmo
tempo, honrar e relembrar as vítimas por meio de memoriais, publicações
e espaços públicos destinados a homenageá-las; (c) promover políticas
de reparação para as vítimas, sobreviventes e seus familiares afetados
pela violência; (d) promover a reforma das instituições do Estado que
cometeram os abusos, reformas conhecidas pelo nome de vetting.
4 Ação de Descumprimento de Preceito
fundamental (ADPF) 153, impetrada pela OAB em 21 de outubro de 2008
questionando a interpretação de que a referida lei anistiou os agentes
públicos que promoveram torturas, desparecimentos e outras violações aos
direitos humanos durante a ditadura militar. A ADPF foi julgada
improcedente pelo STF.
5 DOMTOTAL Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura. Disponível em: . Acesso em: 08 jun. 2011.
6 DHNET. Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. Disponível em: . Acesso em: 08 jun. 2011.
7 Vlex. Disponível em: http://br.vlex.com/vid/interamericana-desaparecimento-concluido-271071538. Acesso em: 08 jun. 2011.
8 Conferência Mundial sobre Direitos
Humanos – A Declaração de Viena e o Programa de Ação de Junho de 1993,
das Nações Unidas Documento DPI/1394-39399-August 1993-20M, Seção II, n.
60.
9 Ibidem, p. 53.
10 SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a
Tancredo, 1964-1985. Tradução de Mario Salviano Silva. 8. ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 373.
11 CUNHA, Luiz Cláudio. Operação Condor: o
sequestro dos uruguaios: uma reportagem dos tempos da ditadura. Porto
Alegre: L&PM, 2008.
12 Greco, op. cit., p. 59.
13 Silva Filho, José Carlos Moreira da. O
Julgamento da ADPF 153 pelo Supremo Tribunal Federal e a Inacabada
Transição Democrática Brasileira. Disponível em: http://idejust.files.wordpress.com/2010/07/o-julgamento-da-adpf-153-pelo-supremo-tribunal-federal-e-a-inacabada-transicao-democratica-brasileira.pdf. Acesso em: 06 set. 2011.
14 Atas das 161ª. e 162ª. Sessões
Conjuntas do Congresso Nacional. Anistia. Congresso Nacional. Comissão
Mista sobre Anistia. Documentário organizado por determinação do
Presidente da Comissão Mista do Congresso, Senador Teotônio Vilela.
Brasília, 1982. v. II, p. 15-27.
15 Ibidem, p. 131.
16 Ibidem, p. 176.
17 Assembleia Legislativa do RS. A
Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul – 1964-1985.
História e Memória. Porto Alegre: Assembleia Legislativa do RS / Corag,
2. ed., v. 4, 2010. p. 41-42.
18 Silva Filho, José Carlos Moreira da. O
Julgamento da ADPF 153 pelo Supremo Tribunal Federal e a Inacabada
Transição Democrática Brasileira. Disponível em: http://idejust.files.wordpress.com/2010/07/o-julgamento-da-adpf-153-pelo-supremo-tribunal-federal-e-a-inacabada-transicao-democratica-brasileira.pdf. Acesso em: 06 set. 2011.
19 CSJN – Corte Suprema de Justiça da
Nação Argentina. Delitos de Lesa Humanidad. Punto final. Obediencia
debida. Ley. Nulidad. Facultades Extraordinarias. Disponível em: http://www.csjn.gov.ar/jurisp/jsp/MostrarSumario?id=315713&indice=13. Acesso em: 8 set. 2011.
20 Voto do Dr. E. Raúl Zaffaroni. csjn, op. cit.
21 SIKKINK, Kathryn; WALLING, Carrie
Booth. O Impacto dos julgamentos relativos a Direitos Humanos na América
Latina. Journal of Peace Research, v. 44, n. 4, p. 427-445, 2007.
22 Ibidem.
23 United Nations Human Rights. Documento ONU, A/HRC/WG.6/1/BRA/1, 7 de março de 2008. Disponível em: http://www.ohchr.org/EN/HRBodies/UPR/PAGES/BRSession1.aspx. Acesso em 03 out. 2011.
24 JORNAL Floripa. Disponível em: http://www.jornalfloripa.com.br/brasil/index1.php?pg=verjornalfloripa&id=14930. Acesso em: 03 out. 2011.
25 Pereira, Anthony W. Ditadura e
Repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e
na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010. p. 26-240.