Sexta, 10 de junho de 2016
Do MPF
Do MPF
Harry Shibata ignorou e não fez constar em laudo
necroscópico visíveis lesões de tortura no corpo de Helber José Gomes
Goulart, da ALN, morto pelo Doi-Codi em 1973
Militante da ALN Helber José Gomes Goulart
O Ministério Público Federal em São Paulo ofereceu nova
denúncia contra o legista aposentado Harry Shibata. Segundo a acusação, o
médico deliberadamente ignorou visíveis lesões de tortura no pescoço e
na cabeça do corpo do militante da Ação Libertadora Nacional (ALN)
Helber José Gomes Goulart, assassinado por agentes do Doi-Codi
comandados por Carlos Alberto Brilhante Ustra, em julho de 1973.
Passados quase 43 anos da ação militar que resultou na morte de
Goulart, até hoje pairam dúvidas sobre como foi o episódio. Segundo a
versão do Doi-Codi, agentes daquele destacamento rondavam as imediações
do Museu do Ipiranga quando encontraram a vítima em atitude suspeita.
Goulart teria sacado o revólver e atirou contra os agentes, que
revidaram, atingindo-o, resultando em sua morte.
O chefe do Deops, Romeu Tuma, anotou em requisição de exame
necroscópico, ao IML que Helber foi morto às 16h de 16 de julho de 1973,
mas a entrada de seu corpo no necrotério ocorreu 8h antes. Além disso,
depoimentos de ex-presos políticos apontam que o militante da ALN havia
sido preso antes e foi visto no Doi-Codi com a cabeça enfaixada, tendo,
portanto, sido internado no Hospital Geral do Exército de São Paulo, no
Cambuci.
Contudo, estudos sobre o laudo necroscópico realizados a pedido da
Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) e pelo
Ministério Público Federal, no curso do procedimento que resultou na
denúncia, concluíram que Goulart foi alvejado com tiros feitos de cima
para baixo em sua direção, como se ele estivesse deitado ou ajoelhado.
Além disso, ele recebeu tiros no antebraço, sinal de que tentou, em
vão, se defender. O laudo solicitado pelo MPF foi produzido pelo mesmo
Instituto Médico Legal de São Paulo onde Shibata trabalhou por muitos
anos, como um dos legistas de confiança da repressão. Ambos os laudos
apontam equimoses na cabeça e no pescoço de Goulart, visíveis em fotos
do cadáver, que foram ignoradas no laudo necroscópico subscrito por
Shibata e Orlando José de Bastos Brandão (já falecido).
Tanto a CEMDP, como a Comissão Nacional da Verdade, listam Goulart como uma vítima da repressão brasileira.
A procuradora da República Ana Letícia Absy, autora da denúncia, pede
a condenação de Shibata pelo crime de falsificação de documento
público, cuja pena é de 1 a 5 anos, com o agravante de que o crime foi
praticado para ocultar crime praticado por outra pessoa e garantir a
impunidade.
FILHO DE COMUNISTA. Helber José Gomes Goulart era
mineiro, nascido em Mariana, em 19 de setembro de 1944. Filho de um
militante comunista, o jovem começou a trabalhar aos 11 anos de idade e
estudou até o segundo colegial, quando mudou-se para São Paulo em busca
de melhores oportunidades.
Ele começou a militância política cedo, junto com o pai, no PCB. Em
1964, por conta do golpe militar, passou a ser perseguido e respondeu a
processo na Auditoria Militar de Juiz de Fora. Depois de militar na
Corrente, chegou à ALN e, em 1971, quando a organização começava a se
desmantelar, Goulart, já clandestino, é deslocado para São Paulo, onde
foi assassinado. Enterrado no Cemitério de Perus, seu corpo só foi
identificado 19 anos depois, após a descoberta da vala clandestina.
NÃO PRESCREVE. Segundo a cota introdutória da
denúncia, o crime cometido por Shibata de ocultar intencionalmente um
crime cometido pelo regime militar não prescreveu por três motivos:
porque o assassinato de Goulart foi cometido num contexto de ataque
sistemático à população civil brasileira para manter o poder tomado
ilegalmente pelos militares em 1964; porque o Brasil foi condenado pela
Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Gomes Lund, cuja
sentença aponta que interpretações jurídicas que resultem em impunidade
devem ser ignoradas; e porque o direito penal internacional prevê que
crimes contra a humanidade não estão sujeitos a regras domésticas de
anistia e prescrição.
O caráter sistemático das graves violações de direitos humanos no
Brasil durante a ditadura é confirmada pela complexa estrutura de
repressão montada pelo regime, da qual o Doi-Codi de São Paulo,
comandado por Ustra, morto em outubro de 2015 sem ter sido julgado por
seus crimes, foi um dos maiores expoentes. Segundo o relatório da
Comissão Nacional da Verdade, entregue em 2014 à Presidência da
República, entre 1969 e 1976, somente no Doi-Codi de São Paulo foram
mortas 70 pessoas. Muitas delas continuam desaparecidas. Outra prova
apontada pelo MPF é que a repressão não matava apenas “guerrilheiros em
combate”, mas pessoas que nunca pegaram em armas, cujo caso mais notório
é o do deputado Rubens Paiva.
A cota cita também que o Brasil ratificou, em dezembro de 1998, a
Convenção Americana de Direitos Humanos, submetendo-se, portanto, à
jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, cujas decisões
têm força vinculante a todos os poderes do Estado brasileiro. Respeitar a
corte, portanto, é decisivo para impedir sanções internacionais ao
país.
Em agosto de 2014, em parecer, o procurador-geral da República,
Rodrigo Janot, seguiu a mesma linha. Segundo o chefe máximo do MPF, é
possível impetrar ações contra decisões judiciais que invoquem a lei de
Anista para extinguir a punibilidade de agentes da ditadura que
cometeram graves violações de direitos humanos. As graves violações são
comprovadas, segundo Janot, pelo fato de que as prisões não visavam
instruir processos judiciais, “mas o desmantelamento, a qualquer custo,
independentemente das regras jurídicas aplicáveis, das organizações de
oposição”.
Por fim, a procuradora cita que a denúncia proposta, nem a decisão da
Corte Interamericana, se opõem à decisão do Supremo Tribunal Federal,
de 2010, no julgamento da ADPF 153, que julgou constitucional a Lei de
Anistia, de 1979, uma vez que o STF não se pronunciou a respeito dos
efeitos das decisões de tribunais penais e de direitos humanos
internacionais sobre o direito interno.