Pacote
anticorrupção desfigurado pela Câmara atinge em cheio a autonomia do MP:
processos de violência doméstica, por exemplo, ficarão impossibilitados por
causa do risco de processo criminal contra o promotor, caso o marido seja
inocentado
Por Natália Lambert/Correio Braziliense/Blog do Sombra /Foto: CUT
Uma mulher, agredida pelo marido, decide
denunciá-lo, mas a delegacia da mulher está fechada ou em greve. Ela, então,
vai ao Ministério Público pedir ajuda. É recebida pelo promotor, que a escuta e
instaura um processo investigativo. Os projetos de lei que estão em debate no
Senado, com a intenção de reformular os crimes de abuso de autoridade, colocam
em risco essa rotina. Caso os textos sejam aprovados como estão, esse promotor,
provavelmente, teria de mandar a mulher para casa sem atendê-la porque correria
o risco de responder criminalmente se o marido fosse inocentado.
De acordo com o promotor de Justiça do Ministério
Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) Thiago Pierobom, a eventual
sanção do projeto trará efeitos nefastos no campo da luta contra a violência
doméstica. “Esses delitos são cercados por um quadro fático de divergências, em
que a mulher é a única testemunha do crime e não raro ela mesma se retrata da
inicial manifestação.” Para o promotor, que é coordenador do núcleo de gênero do
MPDFT, além de intimidar investigações, a proposta estimula o arquivamento de
inquéritos policiais não só de casos contra a mulher, mas aos demais delitos
relacionados à proteção de direitos humanos, já que, normalmente, geram
divergências processuais.
O tema é um dos principais motivos de discórdia
entre parlamentares e integrantes do Judiciário, procuradores, promotores e até
policiais. A criminalização, por exemplo, de membros do Ministério Público caso
ele seja derrotado em um processo na Justiça caminha em duas frentes na Casa.
Após uma manobra fracassada, que teve a urgência rejeitada em plenário por 44 a
14 votos, o PL “anticorrupção” da Câmara — chamado por procuradores de “Lei da
Intimidação” — foi encaminhado à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania
(CCJ) e aguarda o presidente do colegiado, José Maranhão (PMDB-PB), designar um
relator. De acordo com a assessoria do senador, um nome deve ser escolhido na
segunda-feira.
A outra frente é o Projeto de Lei nº 280/2016, de
autoria do presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), previsto para ser
votado na próxima terça-feira. Na quinta-feira, durante sessão temática
destinada a debater a proposta, o juiz federal Sérgio Moro, principal
responsável pela Operação Lava-Jato, sugeriu a inclusão de um artigo para
salvaguardar a atuação e a autonomia da magistratura: “Não configura crime
previsto nesta lei a divergência na interpretação da lei penal ou processual
penal ou na avaliação de fatos e provas”.
Moro citou exemplos em que a atuação de um agente da
lei pode ser interpretada, segundo a proposta, como abuso de autoridade. “Se um
juiz não aceitar uma denúncia feita por um procurador, será que não houve
apenas uma divergência de avaliação de fatos e provas? Da forma como está o
texto, ele terá impacto na autonomia do MP”, acrescentou. Relator do projeto, o
senador Roberto Requião (PMDB/PR) terminou ontem seu relatório e irá
protocolá-lo na segunda-feira para que, conforme as previsões de Renan
Calheiros, seja apreciado em plenário na terça. De acordo com a assessoria do
parlamentar, a sugestão do Sérgio Moro foi acatada no texto “na medida do
possível para não desfigurar o projeto”.
A emenda de Moro ajuda, mas não resolve o problema
das “bombas” que estão armadas no Senado. De acordo com Ronaldo Pinheiro de
Queiroz, procurador da República do Grupo de Trabalho da força-tarefa da
Lava-Jato, o que está em tramitação no Congresso não inviabiliza só o combate à
corrupção, mas à criminalidade como um todo. “O que está em jogo agora não é só
a Lava-Jato, mas todas as investigações, processos e punições. O texto como
está contribui para a impunidade e piora muito o que já existe hoje.”
Na manhã de ontem, o ministro da Justiça, Alexandre
de Moraes, também fez um apelo para que o Congresso não aprove as medidas que
“atentem contra a independência do MP e do Poder Judiciário”. “Quando você é
membro do Ministério Público, você instaura um inquérito com base em indícios.
Mas quando você ingressa com ação penal, a lei exige alguns requisitos. Durante
o processo, isso pode não ser comprovado, e você não pode ser responsabilizado
por isso, porque, caso contrário, toda ação você terá que ingressar com certeza
de condenação, e não é para isso que serve o processo”, afirmou Moraes.
Manifestação
Organizados por integrantes do Movimento Brasil
Livre e do Vem pra Rua, protestos em todo o Brasil, marcados para amanhã,
pretendem defender as 10 Medidas de Combate à Corrupção e a Operação Lava-Jato.
Durante a semana, milhares de pessoas alteraram as fotos de perfis nas redes
sociais pela imagem do juiz Sérgio Moro para demonstrar apoio às investigações.
Em Brasília, a Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal apresentou
ontem como será o planejamento das forças policiais, as alterações no trânsito
e as orientações às pessoas que participarão do ato. A estimativa é que 25 mil
pessoas se reúnam na Esplanada.
O acesso poderá ser feito pelas vias N1 e S1 (Eixo
Monumental), na altura da Catedral, com exceção daquelas com dificuldade de
locomoção, que terão acesso pelas vias N2 e S2. O espaço destinado ao protesto
será apenas o gramado central. Ao todo, 1,5 mil, policiais militares foram
deslocados para fazer a segurança, mais 70 bombeiros. A Polícia Civil dará
plantão na 5ª DP (Esplanada) e na 1ª DP (Asa Sul).
Emendas da madrugada
Confira algumas das propostas que foram incluídas
por deputados, durante votação na madrugada de quarta-feira, no projeto de
iniciativa popular das 10 Medidas de Combate à Corrupção. Entre procuradores, o
nome do pacote virou “Lei da Intimidação”:
» Constitui crime a representação por ato de
improbidade ou a propositura de ação contra agente público ou terceiro
beneficiário, quando o autor o sabe inocente ou pratica o ato de maneira
temerária. Além da sanção penal, o denunciante ou integrante do Ministério
Público está sujeito a indenizar o denunciado pelos danos materiais, morais ou
à imagem que houver provocado.
» Tipifica como crime de responsabilidade qualquer
manifestação, por qualquer meio de comunicação, opinião, sobre processo
pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre
despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos
autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério.
» Criminaliza, inclusive na modalidade culposa,
qualquer violação de direito ou prerrogativa de advogado, colocando inclusive a
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) como titular da ação penal em caso de
pedido de arquivamento aceito pelo juiz.
CRISE NA REPÚBLICA - OAB pede o afastamento de Renan
Como o peemedebista virou réu no Supremo pelo crime
de peculato, a Ordem dos Advogados do Brasil cobra a saída dele da Presidência
do Senado. Planalto está preocupado com votações
Por Julia Chaib
Renan aposta no recesso parlamentar para ter
sobrevida à frente do Senado: duas semanas até a pausa
O presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB), está
cada vez mais encurralado. Ontem, um dia após o peemedebista ter se tornado réu
no Supremo Tribunal Federal (STF), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) pediu
a saída imediata dele do cargo. Embora não deva ter efeito prático, a ação
fragiliza ainda mais o senador, que viu na última quarta-feira falhar a manobra
arquitetada para tentar votar o desfigurado pacote anticorrupção no Senado.
Por 8 votos a 3, o parlamentar tornou-se réu por
crime de peculato, suspeito de desvio da verba indenizatória do Senado. A saída
de Renan do cargo, além de ainda não ter previsão legal, neste momento seria
maior que um mero desgaste político para o governo. O segundo na linha
sucessória do Senado é o primeiro vice-presidente, Jorge Viana (PT-AC),
opositor ao Planalto. E cabe à direção da Casa ditar o ritmo das votações. A
saída agora poderia ser muito ruim. Está marcada para o dia 13 a análise em
segundo turno da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 55, do teto dos
gastos.
O que pode tirar Renan da Presidência do Senado é a
conclusão de uma ação no STF que questiona se réus podem ocupar cargos na linha
sucessória da Presidência da República, como é o caso do peemedebista, após o
presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), na escala. A maioria dos ministros
já votou para que parlamentares que respondam a ações penais não possam ocupar
os cargos, mas o julgamento acabou interrompido em novembro. A ação foi
proposta quando o deputado cassado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) tornou-se réu e
comandava a Câmara.
Mesmo assim, a OAB defendeu a saída de Renan do
cargo. “Com a decisão tomada pelo STF de tornar o presidente do Senado, Renan
Calheiros, réu em processo sobre peculato, é necessário que ele se afaste
imediatamente de suas funções de presidente do Senado e do Congresso para que
possa bem exercer seu direito de defesa sem comprometer as instituições que
representa”, disse, em nota, o presidente da entidade, Claudio Lamachia.
O advogado ponderou que não faz juízo quanto à
“culpabilidade” do senador. “Trata-se de zelo pelas instituições da República.
Por este motivo, é preciso que o senador Renan Calheiros seja julgado de acordo
com os ritos e procedimentos estabelecidos em lei, com acesso à ampla defesa e
ao contraditório. Mas sem que isso comprometa o cotidiano e os atos praticados
pelo Senado Federal”, conclui a nota.
Eleições
Além da falta de apoio à saída de Renan, o Congresso
está prestes a entrar em recesso parlamentar, em duas semanas. Só retorna em
fevereiro, quando será escolhido os novos presidentes da Câmara e do Senado. O
líder do PMDB, senador Eunício Oliveira (CE), é o mais cotado para substituir
Renan.
A denúncia feita pela Procuradoria-Geral da
República foi parcialmente aceita pelos ministros do Supremo. As acusações por
falsidade ideológica e uso de documento falso prescreveram, por causa da demora
do processo em ser concluído. Além da denúncia recebida pelo STF, Renan ainda é
alvo de 11 inquéritos na Suprema Corte e de uma ação de improbidade
administrativa na primeira instância, na 14ª Vara Federal.
CRISE NA REPúBLICA - Odebrecht liberada para falar
Depoimentos devem começar semana que vem, incluindo
o do presidente da empresa, Marcelo Odebrecht. Políticos à esquerda e à
direita, no Brasil e no exterior, devem ser atingidos pelas acusações dos 77
executivos
Por EDUARDO MILITÃO
Condenado a 19 anos de prisão, executivo cumprirá 10
anos, dos quais apenas dois anos e meio em regime fechado
Os últimos executivos da Odebrecht assinaram ontem o
acordo de colaboração premiada com a Procuradoria Geral da República (PGR), em
Brasília. A partir da semana que vem, devem começar os depoimentos dos 77 acionistas,
executivos e funcionários do maior grupo de construção do país, que resolveu
fechar um acordo de leniência na Operação Lava-Jato e pagar R$ 6,8 bilhões ao
Brasil, aos Estados Unidos e à Suíça.
A expectativa de fontes ouvidas pelo Correio é que,
na semana que vem, os colaboradores, como o presidente afastado, Marcelo Bahia
Odebrecht, preso em Curitiba há quase um ano e meio, comecem a prestar seus
depoimentos. Além dos R$ 6,8 bilhões a serem pagos pela pessoa jurídica da
Odebrecht, cada um dos 77 funcionários e executivos deverá pagar uma multa por
conta própria. Os valores ainda são desconhecidos. Mas acordos anteriores dão a
ideia do valor a ser acertado. O empreiteiro da UTC Ricardo Pessoa, o doleiro
Alberto Youssef e o ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa pagaram R$ 48
milhões, R$ 50 milhões e R$ 70 milhões, respectivamente.
As denúncias devem atingir, no mínimo, uma centena
de políticos, no Brasil e no exterior. A negociação de nove meses com a
Odebrecht se deveu ao fato de que já existiam provas fortes contra a
empreiteira e políticos do PT. O objetivo foi buscar informações, dicas,
documentos e provas em relação a outros atores políticos, como o PMDB do
presidente Michel Temer e sua base aliada, notadamente, PSDB e DEM. Além disso,
a Procuradoria exigiu que fossem revelados criminosos que atuaram fora do
Brasil, em negócios não só nos EUA e na Suíça, mas nos países onde a Odebrecht
atua, principalmente África e América Latina.
Condenado a 19 anos de cadeia em apenas um processo
criminal, Marcelo Odebrecht estava na mira de outras ações penais da Lava-Jato.
Com o acordo, vai cumprir apenas 10 anos. E somente dois anos e meio em regime
fechado. Como está detido desde junho de 2015, ficará na carceragem da
Superintendência da Polícia Federal em Curitiba apenas até dezembro de 2017.
A Odebrecht terá 23 anos para pagar os R$ 6,8
bilhões acertados no acordo de leniência – espécie de delação premiada de
pessoa jurídica, que permite que ela volte a contratar com o poder público. A
parcela a ser paga aos EUA foi calculada em dólar. A dos suíços, em francos.
Por isso, com o passar dos anos, a correção monetária e as variações no câmbio
podem elevar o total dessa multa civil a ser paga pela empreiteira.
O acordo feito pela Lava-Jato é o maior do mundo,
equivalente a US$ 1,9 bilhão. Superou o pacto que a Siemens fez em 2008,
avaliado em US$ 1,6 bilhão, valor distribuído entre autoridades da Alemanha e
dos Estados Unidos. A firma confessou pagamentos de propina num cartel que
vendia trens e metrôs para governos no mundo todo, inclusive no Brasil.
A negociação da Odebrecht começou em março deste
ano. No início, os investigadores rejeitavam a ideia. A empresa divulgou um
comunicado antes mesmo de sentar para negociar com procuradores e delegados da
Polícia Federal. Afirmava que faria uma “colaboração ampla”. Com o passar do
tempo, os interesses foram convergindo. A empresa passou a mostrar que tinha
informações novas para trazer ao Ministério Público e à polícia, corporação
que, depois, foi retirada das negociações.
O motivo dessa mudança foi não só a prisão de
Marcelo Odebrecht, como a descoberta de contas secretas da empresa no exterior
usadas para pagar propinas a ex-dirigentes da Petrobras e de um departamento de
pagamentos de suborno em dinheiro vivo no Brasil.
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