Domingo, 7 de maio de 2017
Do Esquerda.Net
O endividamento das classes populares faz parte do processo de
acumulação primitiva que permitiu ao capitalismo impor-se como modo de
produção dominante, primeiro na Europa e depois no resto do Mundo. Por
Eric Toussaint.
7 de Maio, 2017
Esta é a segunda parte de três do artigo dedicado à dívida. A primeira parte está disponível aqui.
Na Europa, do século XVI ao século XVIII, o endividamento privado das
classes populares e a repressão do não pagamento das dívidas contribuiu
para constituir uma massa de proletários: penas de prisão, mutilações,
abertura de cadeias obrigaram as populações empobrecidas a aceitar
trabalho nas fábricas. Tudo isto faz parte do processo de acumulação
primitiva que permitiu ao capitalismo impor-se como modo de produção
dominante, primeiro na Europa e depois no resto do Mundo |1[4]|.
Uma grande parte da massa de proletários que migrou para as cidades
ou para as fábricas que começavam a desenvolver-se era constituída por
populações rurais sobre-endividadas que tinham sido desapossadas das
suas terras pelos credores.
O não pagamento das dívidas foi violentamente reprimido até meados do
século XIX nos países que estiveram no centro da expansão do sistema
capitalista industrial: a Europa Ocidental e a América do Norte.
Os pobres culpados de não pagamento das suas dívidas eram castigados
com pesadas penas. A pena capital foi de aplicação corrente em
Inglaterra até ao século XVII. Nos EUA, no Estado da Pensilvânia, em
finais do século XVIII, os maus pagadores podiam ser chicoteados,
pendurados no pelourinho com uma orelha pregada ao poste, que depois era
cortada. Arriscavam-se também a serem marcados com um ferro em brasa.
Em França eram sistematicamente aplicadas penas de prisão. Tudo isto era
cumulado com despejos das casas e penhora de bens.
Nos EUA, pouco tempo após a independência, foram organizados
movimentos de protesto por agricultores cujas terras e bens tinham sido
penhorados por falta de pagamento dos impostos e taxas. Este pagamento
era exigido em dinheiro, embora muitos camponeses não o tivessem, ou tivessem muito pouco, por fazerem trocas diretas e
pagamentos em espécie. Muitos camponeses tinham prestado serviço nos
exércitos revolucionários mas nunca tinham recebido um salário integral.
No Massachusetts, em 1782 em Groton e em 1783 em Uxbridge, os cidadãos
organizaram-se e atacaram as autoridades, exigindo a devolução dos
bens confiscados. No início da Rebelião de Shays, em 1786, as multidões
impediram os tribunais de ter assento em Northampton e em Worcester,
depois de o governador Bowdoin ter reforçado as ações jurídicas
destinadas a recuperar as dívidas e de as leis terem imposto uma taxa
suplementar destinada a financiar o pagamento da parte do Massachusetts
na dívida externa dos EUA. Daniel Shays, que deu nome ao movimento, era
um antigo combatente não pago. Foi levado a tribunal por não pagamento
de impostos.
Rebelião de Thays, 1786
A partir de 1798 foi organizado um movimento de autodefesa dos
endividados que exigiu a adoção de uma legislação protetora contra os
atos arbitrários dos credores e da justiça. Em 1800 foi aprovada uma lei
federal, mas esta limitava-se a proteger os banqueiros e os
comerciantes apanhados em incumprimento de pagamento. No entanto, os
Estados continuaram a recorrer às suas próprias leis, que na maioria dos
casos favoreciam os credores.
Scott Standage |2[5]| cita um livro de 1828, The Patriot; or, People’s Companion,
que defendia a abolição do encarceramento dos devedores, afirmando que a
dívida era uma forma de «escravatura civil» equiparável à escravatura
dos Negros – os devedores, tal como os escravos, não dispunham
de nenhuma garantia constitucional.
A fuga aos credores foi uma das causas da corrente migratória do
Leste para o Oeste norte-americano, o chamado Far West. A maior parte
dos europeus que participaram na colonização do Novo Mundo nos séculos
XVII e XVIII tinha-se endividado para pagar a viagem e estava sujeita a
uma relação de servidão em relação aos credores. Durante muitos anos,
foram obrigados a reembolsar a dívida inicial e ameaçados de prisão e
mutilação em caso de não pagamento. Calcula-se que entre metade e dois
terços dos europeus que se instalaram nas 13 colónias britânicas da
América do Norte entre 1630 e 1776 ficaram nessas condições de servidão
por dívida |3[6]|. Este tipo de servidão por dívida apenas foi abolido
nos EUA em 1917.
O mesmo tipo de contrato de endividamento para financiar a
colonização foi aplicado na generalidade do Império Britânico. Milhões
de pobres abandonaram a Índia nestas condições, para se instalarem nas
Caraíbas britânicas, na ilha Maurícia, na África do Sul e noutras partes
do Império. Só na Maurícia, entre 1834 e 1917, instalaram-se quase um
milhão e meio de indianos que foram obrigados pela miséria a aceitar
contratos de servidão por dívida |4[7]|.
Em 1875, na Índia, no vasto planalto do Decão, estalaram motins
durante os quais os camponeses endividados se revoltaram para destruir
sistematicamente os livros de contas dos usurários e assim repudiar as
suas dívidas |5[8]|. A revolta durou dois meses e envolveu umas trinta
aldeias, numa área de 6500 km2. Constituiu-se uma comissão de inquérito
parlamentar em Londres e em 1879 foi aprovada uma lei, denominada em
inglês «Dekkhan Agriculturists’ Relief Act» |6[9]|, que ofereceu alguma
proteção aos camponeses endividados.
Em 1880, uma crise da dívida atingiu os pequenos e médios camponeses
dos EUA. Na década de 1930, nova crise, cujos efeitos massivos foram
descritos por John Steinbeck no célebre romance As Vinhas da Ira (em inglês:The Grapes of Wrath),
publicado em 1939. Estas crises sucessivas levaram à desapropriação de
milhões de camponeses endividados nos EUA, em benefício das grandes
empresas privadas do agronegócio.
No século XIX, quando da generalização da Revolução Industrial e da expansão do capitalismo, os patrões aplicaram o truck system,
que permitia endividar de forma permanente os assalariados. Estes,
enquanto aguardavam o pagamento do salário, tinham de comprar na loja do
patrão todos os bens essenciais para sobreviverem: alimentos,
aquecimento, iluminação, vestuário,etc. Eram obrigados a comprar a
preços exorbitantes, de tal forma que, no ato do pagamento do salário e
depois de descontadas as compras, viam-se frequentemente obrigados a
reconhecer uma dívida, pois as despesas ultrapassavam o montante do
salário. Para pôr fim a esta situação, os operários tiveram de travar
duras batalhas. Foi também uma das razões que levaram os operários
a constituírem cooperativas para produzir alimentos (padarias, etc.) ou
para vender a preços comportáveis os produtos de primeira necessidade.
Por fim, o truck system foi proibido.
Depois da Segunda Guerra Mundial, os anos 1950-60 foram marcados, nos
países mais industrializados (mas o mesmo se passou em vários países do
Sul, por exemplo na Argentina), por um período de forte crescimento
econômico (os «Trinta Anos Gloriosos» [de 1945 a 1975]) que permitiu aos
trabalhadores obter, através da luta, avanços sociais importantes:
nítido aumento do poder de compra, consolidação do sistema de segurança
social, melhoria dos serviços públicos, em particular a nível da
educação e da saúde. Além disso o Estado efetuou algumas
nacionalizações, reforçando assim o seu poder de intervenção econômica.
As populações tiraram proveito da riqueza criada à escala nacional e a
parte da massa salarial no total do rendimento nacional aumentou.
A partir da ofensiva neoliberal iniciada no Chile em 1973, com o
ditador Pinochet, e na Argentina em 1976, com a ditadura de Videla
(ditaduras que tiveram o apoio de Washington), e desenvolvida a seguir
por Thatcher e Reagan nos anos 1980, os salários reais voltaram a ser
comprimidos. Nos países mais industrializados, o consumo de massa
prosseguiu, à custa do endividamento crescente da população |7[10]|. Os
governos, os bancos e as grandes empresas privadas da indústria e do
comércio incentivaram o recurso massivo ao endividamento por parte dos
agregados familiares.
O encarceramento por dívidas relativas a multas não pagas ao Estado
não desapareceu por completo. Por mais espantoso que pareça, o não
pagamento das dívidas privadas, mais precisamente as dívidas privadas ou
multas devidas ao Estado, continua a ser passível de prisão em vários
países europeus, apesar de diversos acordos internacionais o
proibirem |8[11]|. Em França, a prisão por dívida foi abolida por dois
breves períodos – em 1793 e em 1848. Foi definitivamente suprimida do
direito civil e comercial pela lei de 22 de Julho de 1867. O Código de
Direito Penal suprimiu-a em 1958 em matéria criminal quanto a
indemnizações por perdas e danos no âmbito civil. Actualmente a prisão
por dívida apenas se aplica às condenações por multa, às custas
judiciais e aos pagamentos em proveito dos cofres do Estado, e mesmo
nesses casos quando se trate duma infracção de delito comum e não podem
dar origem a pena perpétua. Por conseguinte, em França a sentença
judicial consiste em encarcerar ou deter uma pessoa solvente por falta
de pagamento de certas multas, às quais foi condenada pela tesouraria
pública ou pelas administrações alfandegárias |9[12]|.
Na Bélgica continua a ser possível aplicar um castigo penal (chamado
na lei belga «aprisionamento subsidiário») pelo não pagamento das multas
devidas ao Estado, apesar de há 20 anos os sucessivos ministros da
Justiça recomendarem a sua não aplicação. Numa resposta do ministro da
Justiça belga a uma questão parlamentar levantada por um deputado da
extrema direita (Vlaams Belang), numa época em que este partido recolhia
mais de 20 % dos votos, ouviu-se da boca do ministro que «O artigo 40
determina que “Na falta de pagamento no prazo de dois meses a contar da
sentença ou do julgamento, seja por contraditório ou à revelia, a multa
poderá ser substituída por pena de prisão, cuja duração será fixada no
juízo ou sentença, não podendo exceder seis meses para as condenações
por crime, três meses por delito e três dias por contravenção”». «Os
condenados a prisão subsidiária poderão ser sujeitos a prisão no local
onde sofreram a pena principal.» «Se apenas foi pronunciada uma multa, a
pena de prisão por falta de pagamento deve ser equivalente à prisão
correccional ou de polícia, consoante o carácter da condenação.» O
artigo 41 especifica: «Em todos os casos o condenado pode livrar-se da
pena de prisão pagando a multa; não pode esquivar-se à penhora de bens
oferecendo-se para sofrer a pena de prisão.» |10[13]| Na prática, um
juiz belga pode emitir uma sentença de prisão subsidiária (isto apenas
em matéria penal). Nesse caso, o juiz tem de calcular uma multa e
indicar que, se a pessoa assim deseja ou se não tem meios, deve ser
encarcerada. É claro que o rico preferirá pagar a multa e evitar a
prisão, enquanto as pessoas de baixo rendimento e com pouco ou
nenhum patrimônio terão de ir presas. Chama-se a isto justiça de classe.
O ministro acrescentou ainda: «Em 2000, em matéria correccional, em
22 632 condenações, o Ministério Público abriu 3745 processos de
execução de penas de prisão subsidiária. Em 2001, em 21 375 condenações a
multa, apenas foram abertos 1745 processos de execução de prisão
subsidiária.»
Mesmo que na prática as penas de prisão não sejam aplicadas, ou só
raramente, o facto de alguns países manterem essa possibilidade é
inquietante. De facto, caso a extrema direita aceda ao governo e sejam
reforçadas as medidas repressivas, é possível que venham a ser
pronunciadas sentenças de prisão por dívida aos bodes expiatórios das
classes populares. Não faltam no aparelho de justiça juízes
reacionários capazes de tomar iniciativas que reforçariam o caráter de
classe da aplicação da lei.
Dívidas hipotecárias ilegítimas e despejos
Quando rebentou a bolha imobiliária[14] no Japão (década de 1990),
nos EUA (2006-2007), na Irlanda e na Islândia (2008), em Espanha (2009),
dezenas de milhões de famílias das classes populares viram-se na
contingência de não conseguirem pagar as suas dívidas e começaram a ser
vítimas de despejos em massa |11[15]|. Num contexto generalizado de
diminuição do salário real, de desemprego massivo e de condições de empréstimo abusivas, os efeitos dessas dívidas foram catastróficos
para uma fatia crescente das camadas populares. Nos EUA, desde 2006,
14 milhões de famílias foram desalojadas pelos bancos |12[16]|. Em
Espanha, foram mais de 300 000 famílias. Vemo-nos confrontados uma vez
mais, na história dos países do Norte, com um fenômeno massivo de
desapropriação brutal. Nos EUA a Justiça contabilizou pelo menos 500 000
casos de contratos imobiliários abusivos e fraudulentos, mas os números
reais são muito superiores. Em Espanha a legislação invocada pelos
bancos para expulsar as famílias das suas casas data da época do ditador
Franco. Na Grécia, no quadro do terceiro Memorando aceite pelo governo de Tsipras em 2015, os bancos começam a ter mão livre para
despejar as famílias incapazes de pagar as suas dívidas
hipotecárias |13[17]|. Nos EUA, em Espanha, na Irlanda, na Islândia, na
Grécia, etc., nasceu um novo tipo de movimento e de mobilizações, a fim
de resistir a esta política de despejo/desapropriação.
Manifestação da plataformas fitados pela hipoteca (PAH), em Espanha
Dívidas ilegítimas do estudantes
Nos países anglo-saxônicos mais industrializados e no Japão, as
políticas neoliberais aplicadas ao sistema de educação aumentaram
drasticamente o custo do ensino superior e restringiram muito o acesso
às bolsas de estudo. Este fenômeno vai-se estendendo à escala mundial.
Isto obrigou dezenas de milhões de jovens das classes baixas a
endividarem-se em proporções imenso a fim de concluírem o curso
superior. Nos EUA a dívida estudantil ultrapassa o bilhão de dólares
[=um trilhão na escala portuguesa e americana, =10^12] (o que
corresponde a mais do dobro da dívida externa total – privada e
pública – da África subsariana em 2015 |14[18]|). Este número torna-se
um limiar simbólico ao exprimir a gravidade da situação. Dois estudantes
em cada três estão endividados e devem em média 27 000 dólares. Em
2008, 80% dos estudantes que concluíam o mestrado (master) de
Direito tinham acumulado uma dívida de 77.000 dólares se frequentassem
uma universidade privada ou de 50.000 dólares no caso dos
estabelecimentos de ensino público. O endividamento médio dos estudantes
que concluíram um ano de especialização em Medicina atinge os 140 000
dólares. Uma estudante que tinha feito o mestrado de Direito declarou a
um jornal italiano: «Creio que nunca conseguirei reembolsar as dívidas
que contraí para pagar o meu curso, às vezes penso que quando morrer,
ainda terei mensalidades da dívida para a universidade por pagar.
Atualmente tenho um plano de pagamento a 27 anos e meio, mas é
demasiado ambicioso, porque a taxa de juro[19] é variável e tenho muita dificuldade em
pagar (…). O que mais me preocupa é que não consigo fazer poupanças e a
minha dívida continua a assombrar-me» |15[20]|.
No Japão, um estudante em cada dois está endividado. O endividamento
médio dos estudantes equivale a 30.000 dólares. No Canadá a tendência é a
mesma |16[21]|. Ir para a universidade custa cada vez mais caro, ao
mesmo tempo que no mercado de trabalho, mutilado e saturado, é cada vez
mais difícil encontrar um emprego com salário decente. Uma vez
concluídos os seus estudos, os jovens endividados e respectivas famílias
têm cada vez mais dificuldade em reembolsar as dívidas. Para o fazerem
são frequentemente obrigados a aceitar empregos muito precários e
condições de trabalho degradantes. Os bancos arrecadam lucros
avantajados graças à dívida estudantil. Tal como no caso das dívidas
hipotecárias ilegítimas, novas formas de luta e novos movimentos estão a
nascer, para combater as dívidas estudantis ilegítimas. É nomeadamente o
caso, nos EUA, do movimento Strike Debt! Assistimos a
tentativas de federar as várias resistências numa frente única contra a
dívida: dívidas estudantis, dívidas hipotecárias, dívidas de consumo,
dívidas ligadas aos impostos, sem esquecer a dívida
pública[22] |17[23]|.
O sobre-endividamento afeta e degrada as condições de vida de um
setor cada vez maior das camadas populares em todos os países mais
industrializados. Na Bélgica, o número de pessoas sujeitas ao regime
coletivo de dívidas mais do que duplicou entre 2007 e 2017.
As mulheres chefes de família monoparental são por toda a parte
duramente afetadas pelo sobre-endividamento. Os sofrimentos ligados às
humilhações a que estão sujeitas as pessoas sobre-endividadas não param
de aumentar. A intrusão das autoridades na vida privada e no domicílio
das pessoas sobre-endividadas multiplica-se e agrava-se. Dada a
precarização do trabalho, o pagamento dos salários de miséria pelo
trabalho a tempo parcial e mesmo a tempo inteiro, cada vez mais
assalariados e assalariadas passam a ser vítimas do sistema da dívida.
A fábrica do homem endividado
Ao longo das últimas décadas, a política de destruição das conquistas
sociais levada a cabo por sucessivos governos e pela classe capitalista
visa nomeadamente atacar os contratos de trabalho estável e
coletivamente negociados. Os direitos elementares dos trabalhadores e
dos beneficiários dos subsídios sociais são apresentados como
privilégios e como obstáculos à competitividade e à flexibilidade. Foi
levada a cabo uma campanha sistemática em favor do autoemprego, criando
uma miragem de liberdade. Há um número crescente de pessoas que são
levadas a endividar-se a fim de se autoempregarem, de criarem a
sua microempresa, de fazerem de si mesmas uma empresa, de
explorarem elas próprias «o seu capital humano». Como diz Maurizio
Lazzaretto no livro A Fábrica do Homem Endividado, «na economia
da dívida, tornar-se capital humano ou empreendedor de si mesmo,
significa assumir os custos e os riscos duma empresa flexível e
financeirizada, custos e riscos que não são apenas, longe disso, os da
inovação, mas sobretudo os da precariedade, da pobreza, do desemprego,
dos serviços de saúde minguantes, da penúria de alojamentos,
etc.» |18[24]|.
Aumenta o número de pessoas que, tendo tentado a experiência de
autoemprego, caem no sobre-endividamento e perdem o pouco que possuíam.
Mais adiante, Lazzarato escreve: «O processo estratégico do programa
neoliberal, no que respeita ao estado-providência, consiste numa
progressiva transformação dos “direitos sociais” em “dívidas sociais”
que as políticas neoliberais tendem por sua vez a transformar em dívidas
privadas, paralelamente à transformação dos “detentores de direitos” em “devedores” dos fundos de desemprego (no caso dos desempregados) e
do Estado (no caso dos beneficiários dos rendimentos mínimos
sociais)» |19[25]|. Enquanto as políticas dos governos neoliberais levam
ao empobrecimento dos assalariados (bloqueamento ou redução dos
salários, precarização, etc.) e dos outros detentores de direitos
sociais (bloqueamento ou redução das pensões de reforma, redução ou
supressão das ajudas sociais, degradação ou desaparecimento de certos
serviços públicos, diminuição ou supressão dos subsídios de desemprego,
redução ou supressão das bolsas de estudo, etc.), «a finança pretende
enriquecê-los através do crédito e das ações. Nada de aumentos
salariais diretos ou indiretos (reformas), mas antes crédito ao
consumo e incitamento à renda bolsista (fundos de pensão, seguradoras
privadas); nada de direito à habitação, mas sim crédito imobiliário;
nada de direito ao ensino, mas sim empréstimos para pagar os estudos;
nada de mutualização contra os riscos (desemprego, saúde, reforma,
etc.), mas sim investimento em seguros individuais». |20[26]|
Muitos dos refugiados que chegam à Europa, depois de transporem
obstáculos tremendos, endividaram-se para poderem empreender a grande
viagem para uma terra de asilo. São levados a aceitar as piores
condições de trabalho, a fim de reembolsarem as suas dívidas, sabendo
que uma parte das suas famílias, que ficou no país de origem, está
sujeita à pressão dos credores. Muitas mulheres imigradas são levadas a
prostituir-se, para reembolsarem uma dívida ilegítima.
Desde a crise que eclodiu nos países mais industrializados em 2007,
assistimos a um novo endurecimento do «sistema da dívida» na sua faceta
privada: dívidas hipotecárias abusivas, dívidas estudantis ilegítimas,
dívidas de consumo alienantes e depauperantes. Tudo isto caminha de mãos
dadas com a atuação de governos que se servem do aumento da dívida
pública, que provocaram, para reforçarem a ofensiva contra as conquistas
sociais do século XX.
Apoiar as iniciativas de luta contra as dívidas privadas ilegítimas
Como é possível que pessoas humilhadas, sobre-endividadas, sujeitas
aos abusos dos bancos, escorraçadas dos seus lares, e ainda por cima
responsáveis por uma parte da dívida [pública], sejam capazes de se
mobilizar em conjunto para pôr fim ao pagamento da dívida pública do
Estado ou para ações coletivas pelos direitos dos trabalhadores? Se
foram derrotadas na sua luta pessoal por não existir um movimento de
resistência suficientemente forte para impedir os despejos das
habitações, para escapar a outras formas de sobre-endividamento, pode acontecer
que já não tenham forças para continuar a bater-se, que olhem para a
dívida pública ilegítima, assim como os combates coletivos pelos
direitos sociais, como algo que não lhes diz respeito. É preciso apoiar
as iniciativas que se lançam na luta contra as dívidas privadas
ilegítimas.
Fim da segunda parte. A terceira parte versará sobre as dívidas
privadas ilegítimas nos países em desenvolvimento e sobre os rumos
alternativos, tanto no Norte como no Sul.
Tradução de Rui Viana Pereira
Revisão Maria da Liberdade
Notas
|1 (link is external)| K. Marx destaca como fontes, muitas vezes violentas, de acumulação primitiva que permitiram ao capitalismo levar a melhor sobre outros modos de produção: a separação radical entre o produtor e os meios de produção, a supressão dos bens comunais, o levantamento de divisórias no campo, a captura dos instrumentos de trabalho dos artesãos, a repressão sanguinária contra os expropriados (que tudo perderam por causa das dívidas que não conseguiam reembolsar), a conquista colonial e a repartição à régua dos continentes açambarcados pelas potências europeias, o sistema da dívida pública (ver Livro 1 d’O Capital. A acumulação primitiva). Silvia Federici acrescenta a isto a caça às bruxas, esse vasto movimento sanguinolento de repressão contra as mulheres, de finais do século XV a meados do século XVII. Ernest Mandel, no seu estudo «Acumulação primitiva e industrialização do Terceiro Mundo», resume a posição de Marx e sublinha que «podemos mesmo afirmar que Marx subestimou a importância da pilhagem do Terceiro Mundo para a acumulação do capital industrial na Europa ocidental». Rosa Luxemburgo, em 1913, em A Acumulação do Capital, retoma o processo de acumulação primitiva e seu prolongamento na era imperialista de finais do século XIX ( https://www.marxists.org/|2 (link is external)| Standage, Scott, Born Losers: A History of Failure in America, Harvard University Press, 2005.
|3 (link is external)| Galenson, David (March 1984). «The Rise and Fall of Indentured Servitude in the Americas: An Economic Analysis» (link is external). The Journal of Economic History. 44 (1) : 1–26.
|4 (link is external)| https://www.sscnet.ucla.edu/
|5 (link is external)| Ver David Graeber, p. 315 (edição francesa). Ver também Peasant movements and tribal uprisings in the 18th and 19th centuries: Deccan Uprising (1875) – HISTORY AND GENERAL STUDIES (link is external)
|6 (link is external)| Ver o texto da lei Dekkhan Agriculturists’ Relief Act, 1879, em https://indiankanoon.org/doc/
|7 (link is external)| Ver Éric Toussaint, «Au Sud comme au Nord, de la grande transformation des années 1980 à la crise actuelle», publicado a 8 de Setembro de 2009, http://www.cadtm.org/Au-Sud-
|8 (link is external)| O aprisionamento por dívidas é proibido pelo artigo 1º do protocolo nº 4 do acordo de Salvaguarda dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, onde são reconhecidos certos direitos e liberdades além dos que já constavam nos acordos internacionais e no primeiro protocolo da convenção, corrigida pelo protocolo nº 11. Cf.: http://www.echr.coe.int/
|9 (link is external)| Ver https://fr.wikipedia.org/wiki/
|10 (link is external)| Bulletin n° B123 - Question et réponse écrite n° : 0599 - Législature : 50, publicado em 04/06/2002. https://www.lachambre.be/
|11 (link is external)| Éric Toussaint, «2007-2017 : Les causes d’une crise financière qui a déjà 10 ans», http://www.cadtm.org/2007-
|12 (link is external)| Éric Toussaint, «Estados Unidos: Os abusos dos bancos no setor imobiliário e as ações de despejo ilegais» 4/04/2009, http://www.cadtm.org/Estados-
|13 (link is external)| Ver «Les banques et l’État grecs essaient de prendre nos maisons tous les mercredis au tribunal de paix», http://www.cadtm.org/Les-
|14 (link is external)| Ver no sítio do Banco Mundial, http://datatopics.worldbank.
|15 (link is external)| La Repubblica, 4/08/2008, citado por Maurizio Lazzarato, La fabrique de l’homme endetté. Essai sur la condition néolibérale, Éd. Amsterdam, 2011, p. 28.
|16 (link is external)| Lutas e dívidas dos estudantes do Quebeque: «Tant qu’on n’aura pas renversé le capitalisme, on ne pourra pas sauver l’éducation» (entrevista com Éric Martin, realizada por Maud Bailly) http://www.cadtm.org/Luttes-
Ver também Isabelle Ducas, «L’endettement étudiant, un lourd fardeau » http://affaires.lapresse.ca/
Ver no sítio oficial do Governo canadiano: «Rembourser votre dette d’étudiant» - https://www.canada.ca/fr/
|17 (link is external)| Ver Strike Debt! The Debt Resisters’ Operations Manual http://strikedebt.org/drom/ (link is external) e em particular no que respeita às dívidas dos estudantes: http://strikedebt.org/drom/
|18 (link is external)| Maurizio Lazzarato, La fabrique de l’homme endetté. Essai sur la condition néolibérale, Éd. Amsterdam, 2011, p. 42.
|19 (link is external)| Maurizio Lazzarato, p. 81.
|20 (link is external)| Maurizio Lazzarato, p. 85.
Eric Toussaint (link is external)
docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional. É autor do livro Bancocratie (link is external), ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire (link is external), Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui (link is external), Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política (link is external), Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie (link is external),
Aden/CADTM, Bruxelles, 2011. Coordenou o trabalho da [Comissão para a
Verdade sobre a dívida pública> 11511], criada pela presidente do
Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento
entre Abril e Outubro de 2015. Após a sua dissolução, anunciada a
12/11/2015 pelo novo presidente do Parlamento grego, a ex-Comissão
prosseguiu o trabalho sob o estatuto legal de associação sem fins
lucrativos.
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