Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

domingo, 12 de abril de 2020

É tempo de reinventar a Atenção Primária à Saúde no Brasil

Domingo, 12 de abril de 2020

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Sabemos todos que uma epidemia ou pandemia, no caso do coronavírus, não controlamos somente no âmbito hospitalar, embora seja necessário preparar os hospitais com leitos suficientes de UTIs, equipamentos de proteção para os(as) profissionais da saúde, respiradores e outros aparatos terapêuticos necessários às situações graves. 
Sabemos também que não podemos diminuir os danos, dores, perdas e mortes, diante desse vírus “implacável” de um inimigo tão desconhecido, diminuindo, desfinanciando a maior política pública que o Brasil já desenhou e vem implantando desde a última metade do século passado. Falo das 45 mil equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF) e da massa de mais de 282 mil Agentes Comunitários(as) de Saúde (ACS) espalhados(as) pelos 5.570 municípios brasileiros.
Para nossa sorte, se é que podemos falar dessa variável, o Brasil pode e deve fazer a diferença dos países globais a exemplo da Espanha, França, Itália e EUA. Esse último, considerado o império do mundo capitalista, mas que não dispõe de um Sistema Público de Saúde descentralizado e presente em todo o território, como o é nosso Sistema Único de Saúde (SUS).
Esse inimigo comum que veio na “bagagem” daqueles do andar e cima, atinge a todos, mata violentamente e, como sempre, aos mais vulneráveis: idosos, população em situação de rua, pessoas privadas de liberdade, com sofrimentos mentais, deficientes, indivíduos com agravos crônicos como hipertensão, diabetes, famílias que dividem suas casas em grandes aglomerados urbanos (favelas), desempregados, terceirizados, que estão mais expostos e pagam a conta com suas próprias saúde e vida. Diante desse mar revolto, lógico que precisamos cuidar daqueles que estão nos iates, mas, sobretudo, proteger os(as) que navegam em canoas, seguram o tronco secular da histórica árvore das desigualdades sociais e das perversas concentrações de renda.
Uma situação que se agrava diante das piores crises política, econômica, social, e agora sanitária, do último meio século, e que nos inquieta a reinventarmos a Atenção Primária à Saúde (APS). Mas você deve estar se perguntando, como isso é possível se os(as) ACS cuidam das famílias e comunidades em seus domicílios? Como manter essa dinâmica, se as famílias estão em isolamento social, confinadas em suas casas? Como os(as) médicos(as), enfermeiros(as) de família podem fazer suas visitas domiciliares? Como manter o funcionamento das Unidades Básicas de Saúde (UBS), sem que elas se tornem ambientes de contaminação cruzada do vírus? De fato, não é tão simples. A situação por si só é complexa, mas precisamos nos reinventar.
Primeiro, não abrindo mão da abordagem comunitária e familiar, tão cara aos valores e princípios da APS; assegurando o acesso às informações seguras e de qualidade para uma comunicação de risco eficaz quanto às medidas de proteção do Covid-19, por meio do teleconsulta via centrais de atendimento, onde os(as) médicos(as), enfermeiros(as) possam interagir com suas famílias sem sair de casa, e os(as) ACS possam orientá-las, via celular ou ainda nas áreas externas residenciais, os chamados peridomicílios. Desde que devidamente protegidos(as).
Segundo, não preterir do cuidado longitudinal das pessoas com agravos crônicos (a exemplo das doenças cardiovasculares, câncer, diabetes, doenças respiratórias, sobrepeso e obesidade, acidentes, violências, envenenamentos, e outras), evitando que elas necessitem dos hospitais, que já são tão debilitados, tanto em insumos, como em pessoal qualificado para esse vírus, repito, um estranho no ninho. Não podemos deixar de seguir cuidando dessas pessoas, além do coronavírus. Para isso, pode-se instituir áreas externas ao acolhimento de pessoas com sintomas ou suspeitas de coronavírus, para que possam ser encaminhadas a uma área da UBS específica para esses casos. É importante que sejam definidos protocolos que estabeleçam possíveis tipologias no redesenho do fluxo e organização das unidades. Aos demais ambientes devem ser adaptadas rotas de proteção. Enquanto que os outros atendimentos de rotina se adaptariam a uma nova modalidade de orientações a distância ou semipresencial, uma vez assegurada a proteção entre os(as) trabalhadores(as) da saúde, destes para com a população e esta, por sua vez, com suas famílias.
Terceiro, reafirmar a função da integralidade das ações e serviços de saúde. Refiro-me às atividades de vigilância epidemiológica, que não devem se restringir apenas a contar números, ainda que necessitemos da precisão, evitando assim subnotificações ou outras variáveis de confundimento à definição de ações estratégicas e assertivas para evitar a disseminação em massa do Covid-19. Devemos entender que existem pessoas e vidas atrás dos algarismos e percentuais, por isso devemos integrar as ações de promoção, prevenção de agravos e recuperação da saúde. Nesse sentido, as ESF e ACS devem ter acesso aos casos confirmados em suas áreas para que possam monitorá-los em tempo real por meio de uma central de atendimento para os cuidados. Esta seria a melhor hora para que as operadoras de telefonia móvel possam doar celulares e tablets, assim tornariam real o desejo de se instituírem como empresas solidárias e responsáveis.
Quarto, não desistir da função essencial da APS de coordenar a itinerância dos cuidados dos indivíduos, em rede integradas de saúde. Afinal, é urgente e necessário evitar que as pessoas se aglomerem, sintomáticos(as) e não sintomáticos(as), que os(as) profissionais se contaminem e virem cadeia de transmissão do vírus.
Logo, sistematizemos algumas medidas urgentes: 
1- diariamente, podem ser promovidos diálogos abertos entre os municípios brasileiros sobre suas iniciativas de fortalecimento da APS e de suas equipes, o que estão fazendo para protegê-los(as), e suas estratégias para a remodelagem da gestão e governança de sua rede integrada. Compartilhar o conhecimento é imprescindível;
2- que todos(as) os(as) ACS disponham de celular e/ou tablet para informação e comunicação em tempo real, para fazerem os cuidados previstos nas visitas domiciliares, agora por via remota, com o apoio das operadoras de telefonia móvel;
3- que os(as) médicos(as), enfermeiros(as), auxiliares de enfermagem, nutricionistas e outros(as) profissionais estejam interligados em centrais de atendimento por meio de teleconsulta para orientações às pessoas suspeitas, confirmadas (casos leves) ou que estejam em recuperação;
4- definir novos protocolos que estabeleçam possíveis tipologias no redesenho do fluxo e organização das unidades;
5- ampliar o teste rápido (todos têm direito de saber se está infectado e assim evitar transmissão em massa);
6- coordenar e regular todos os leitos dos hospitais (públicos e privados), com base nos artigos 5º[i]
  e 199[ii] da Constituição Federal, publicizando a quantidade de leitos UTIs por UF/Região/Municípios e sua ampliação;
7- dispor de Equipamentos de Proteção Individual (EPI) para todos(as) os(as) profissionais da linha de frente, em toda rede básica, para além das unidades de saúde existentes nas áreas de atuação das equipes de saúde da família;
8- incentivar a criação de salas de situação em todos os municípios, estados e Instituições de Ensino Superior, investindo recursos físico-financeiros e acelerando a regulamentação da profissão dos Sanitaristas, reconhecendo suas competências e habilidades na gestão das políticas públicas, nas vigilâncias epidemiológica e sanitária e, sobretudo, nas ações sociais e humanas, essenciais ao campo da saúde coletiva;
9- dar visibilidade à sociedade quanto aos gastos ou investimentos com os recursos aprovados no “orçamento de guerra” no que tange à aquisição de equipamentos (respiradores, EPIs) contratação de UTIs, pessoal, teleconsulta, e mais, informar quais são as pesquisas que estão em curso (instituições e pesquisadores[as]), colocando à mesa os limites e desafios da governança e as instâncias gestoras do SUS;
10- divulgar as “doações” feitas pelos(as) empresários(as) para publicizar o que estão doando (quantidade – valor e destino), e induzir aqueles do ramo das telecomunicações (telefonia celular) que equipem os ACS e os(as) demais profissionais da APS, sobretudo os(as) Sanitaristas, cuja missão é cuidar da saúde individual e coletiva da sociedade.
Por essas e outras medidas, agora, mais que nunca, em tempos de pandemia do coronavírus, precisamos da uma APS e de um SUS FORTES.
[i] O artigo 5º da Constituição Federal prevê que o poder público, em casos de emergência ou calamidade pública, possa requisitar bens, serviços e instalações necessárias para poder realizar o atendimento à população.
[ii] O artigo 199 da Constituição Federal diz que “A assistência à saúde é livre à iniciativa privada. § 1.o - As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.”
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*Fátima Sousa — Paraibana, 40 anos dedicados a saúde e a gestão pública; 
Professora e pesquisadora da Universidade de Brasília;
Enfermeira Sanitarista, Doutora em Ciências da Saúde, Mestre em Ciências Sociais; 
Doutora Honoris Causa;
Implantou o ‘Saúde da Família’ no Brasil, depois do sucesso na Paraíba e em São Paulo capital; 
Implantou os Agentes Comunitários de Saúde;
Dirigiu a Faculdade de Saúde da UnB: 5 cursos avaliados com nota máxima;
Lutou pela criação do SUS na constituinte de 1988;
Premiada pela Organização Panamericana de Saúde, pelo Ministério da Saúde e pelo Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde.