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(Millôr Fernandes)

segunda-feira, 28 de março de 2022

Funai contratou servidores para proteger isolados, mas não construiu base onde eles atuariam

Segunda, 28 de março de 2022

Grupo de indígenas isolados vive em área frequentada por extrativistas, caçadores e pescadores - Sidney Oliveira/Agência Pará

MPF recomendou construção imediata da instalação; indígenas localizados em setembro seguem desprotegidos

Murilo Pajolla
Brasil de Fato | Lábrea (AM) | 28 de Março de 2022

Pressionada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), a Fundação Nacional do Índio (Funai) contratou 12 funcionários temporários para atuar em um posto de proteção a indígenas isolados no médio rio Purus, no Amazonas.

Mas, quatro meses depois das contratações, o local onde eles deveriam trabalhar sequer teve a construção iniciada. A informação foi confirmada ao Brasil de Fato por lideranças indígenas locais.

A instalação do posto de proteção foi uma das recomendações do Ministério Público Federal (MPF) feitas à Funai no dia 4 de março. O procurador da República Fernando Merloto Soave também pediu que o acesso de não indígenas seja impedido, por meio de uma portaria de restrição de uso.

O MPF deu dez dias para a Funai esclarecer quais providências estão sendo adotadas e afirmou que tomará “medidas cabíveis" se o pedido não for atendido. O prazo expirou, mas as recomendações não foram cumpridas, e os indígenas continuam desprotegidos.


Risco de genocídio

A principal preocupação do MPF é que o grupo em isolamento vive fora de terras demarcadas e perto de uma área habitada por extrativistas. A região é frequentada por caçadores e pescadores, aumentando o risco de contágio da covid-19 e de conflitos com não indígenas.

Em setembro do ano passado, servidores da Funai confirmaram a presença dos isolados em Lábrea (AM), no médio rio Purus, e pediram que Brasília autorizasse medidas de proteção.

O caso foi revelado em fevereiro deste ano pelo Brasil de Fato e pelo site O Joio e o Trigo. Desde então, organizações indígenas e indigenistas acusam a Funai de negligência e apontam risco de genocídio.

Base Mamoriá estava nos planos, mas não saiu do papel

Conforme o edital do processo seletivo, os 12 funcionários que estão sem local de trabalho foram contratados para atuar na Base de Proteção Etnoambiental (BAPE) Mamoriá, justamente a que controlaria o fluxo de não indígenas no território habitado pelos isolados. São dois cargos de Chefe de Proteção Etnoambiental e 10 de Agente de Proteção Etnoambiental.


A citação da BAPE Mamoriá na chamada pública indica que a Funai planejava, à época, construir o posto de controle.

O Brasil de Fato perguntou ao órgão indigenista por que a medida não foi levada adiante. Questionou também onde os servidores estão trabalhando e qual função estão exercendo. Até a publicação, não havia resposta.

Servidores foram contratados para proteger isolados

A contratação fez parte de um processo seletivo simplificado lançado em 27 de outubro de 2021 com a abertura de 776 vagas, principalmente na Amazônia Legal. Os contratos têm validade de 6 meses, com possibilidade de prorrogação.

A principal atribuição desses servidores é atuar “na implementação das barreiras sanitárias e postos de controle de acesso como forma de medidas de prevenção à COVID-19 nas Terras Indígenas, sobretudo às que contam com presença de povos indígenas isolados e de recente contato”, segundo o edital.

Ainda de acordo com o documento, todos os contratados deveriam atuar “em barreiras sanitárias (BS) e postos de controle de acesso (PCA) para prevenção da COVID-19 nos territórios indígenas”. A região do Mamoriá, no entanto, segue sem nenhuma restrição de acesso.


A seleção foi dirigida pela Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC), em conjunto com a Coordenação-Geral de Gestão de Pessoas da Diretoria de Administração e Gestão da Funai (CGGP).

Em matéria publicada no site da Funai em outubro do ano passado, o coordenador da CGGP, Paulo Henrique de Andrade, chegou a declarar que previa o estabelecimento de novos postos de controle. “(...) o incremento de recursos humanos configurará um corpo profissional maior e novas barreiras poderão ser implementadas”, afirmou à assessoria de comunicação do órgão indigenista.

Natural de Lábrea (AM), município onde está grupo isolado recém-confirmado, o coordenador em exercício da CGIIRC, Geovanio Pantoja Katukina, declarou que o reforço no quadro de funcionários contribuiria “para o desenvolvimento das atividades necessárias ao cumprimento da decisão do Supremo”.

STF ordenou instalação de barreiras sanitárias

O processo seletivo foi uma resposta a uma decisão cautelar do ministro Luís Roberto Barroso, do STF. A ordem judicial foi expedida em julho de 2021, no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, protocolada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e por seis partidos políticos.

A ação pedia que o STF obrigasse o governo federal a instalar barreiras sanitárias contra a covid-19 em mais de 30 terras indígenas com presença de povos isolados ou de recente contato, além da expulsão de invasores das terras indígenas Yanomami, Karipuna, Uru-Eu-Wau-Wau, Kayapó, Araribóia, Munduruku e Trincheira Bacajá.

À época, Barroso criticou o governo e disse que a inação poderia resultar em conflitos, mortes ou contágio e que os riscos aos povos originários eram agravados pela “falta de transparência que têm marcado a ação da União”.

Isolados em risco

A demora ocorre em meio a uma “avalanche” de ataques do governo federal contra povos isolados. Desde a chegada de Jair Bolsonaro à presidência, a Funai atrasou ou não renovou portarias de restrição de uso.


Sob a influência de ruralistas, latifundiários ditaram nomeações, acessaram relatórios sigilosos e planejaram redução de terras com presença de isolados.

Outro lado

A asBrasil de Fatosessoria de comunicação da Funai acusou recebimento das perguntas feitas pela reportagem, mas nenhuma resposta foi enviada.

Edição: Rodrigo Cha:gas