Sábado, 14 de maio de 2022
Aldemario Araujo Castro
Advogado
Mestre em Direito
Procurador da Fazenda Nacional
Brasília, 14 de maio de 2022
No primeiro escrito desta série, denominado COMO SERÃO ELEITOS OS PARLAMENTARES EM OUTUBRO DE 2022 – PARTE I [leia aqui], explorei alguns dos procedimentos utilizados nas campanhas eleitorais baseadas no “voto fisiológico”. Mencionei: a) a contratação interesseira de cabos eleitorais e b) a compra de lotes de votos controlados por certas lideranças comunitárias, religiosas e afins. Destaquei, ainda, que paralelamente ao “fisiologismo pesado” (ou hard) convivem fisiologismos “mais leves” (ou soft).
Pretendo, agora, em linhas gerais, discorrer sobre três tipos de fisiologismos mais leves e muito comuns no universo das campanhas eleitorais nesta quadra da história do Brasil. São eles: a) os voltados para a formação de grupos políticos; b) os criados a partir da distribuição enviesada de recursos decorrentes de emendas parlamentares e c) aqueles constituídos por forte inspiração corporativa ou institucional, em especial a religiosa.
O “fisiologismo pesado” (ou hard), em regra, envolve troca de favores pessoais e benefícios a interesses privados. Pode-se afirmar que os ganhos, pecuniários ou facilmente mensuráveis em dinheiro, são imediatos ou usufruídos a curto prazo. Esse é justamente um traço geral que diferencia o “fisiologismo hard” do “fisiologismo soft”. Esse último trabalha, como padrão geral, com benefícios obtidos a médio prazo ou de forma contínua.
No “fisiologismo leve” de formação de grupos políticos temos um certo número de pessoas, com um líder político bem identificado, normalmente um detentor de mandato ou postulante ao cargo eletivo, que atua em conjunto e se ajuda mutuamente. Essas pessoas ocupam postos chaves e de confiança no processo eleitoral (tesoureiro, coordenação de cabos eleitorais, organização de eventos, cadastramento de apoiadores, distribuição de material de propaganda, material de construção, cestas básicas, etc, etc, etc). Também são os primeiros a serem indicados para ocupação de cargos comissionados, desde os mais modestos (secretárias/os, motoristas, assessores) até aqueles com poder de decisão e capacidade de gerar votos e recursos financeiros de forma lícita ou ilícita (superfaturamentos, sobrepreços, direcionamento de fornecedores, fiscalização irregular, convênios deturpados, “pedágios”, etc, etc, etc).
No “fisiologismo” relacionado com emendas parlamentares as relações são mais fluídas ou tênues, afastados os casos de malversações escancaradas quando não existem efetivamente projetos em execução ou quando a execução é propositalmente parcial para gerar uma “sobra” a ser apropriada indevidamente. Nesse campo, os parlamentares escolhem, por critérios nem sempre claros ou republicanos, projetos ou entidades para receber quantias decorrentes de emendas ao orçamento público. Formam-se, a partir daí, vínculos políticos de dependência e ajuda normalmente traduzidos em apoio eleitoral para o parlamentar e seus indicados. Registro, aqui, minhas fortes resistências pessoais a ideia de destinação direta de verbas públicas por parlamentares para projetos e entidades específicas. Creio que a interferência parlamentar mais salutar e republicana deveria se dar somente no plano das grandes prioridades de alocação dos recursos públicos no âmbito do debate orçamentário.
Temos, ainda, o fisiologismo de fundo corporativo ou institucional. Nessa seara, os parlamentares são escolhidos para garantir e ampliar espaços, direitos e até privilégios de certos segmentos sociais. Em regra, os eleitos nos meios policiais (um exemplo) buscam justamente fortalecer, em várias vertentes, as carreiras e órgãos de que fazem parte (suas origens). O voto é “trocado” por essa busca de “prestígio” a ser traduzido em benefícios auferidos em razão da titularidade de certos cargos integrantes de determinadas carreiras.
Existe um tipo de fisiologismo corporativo ou institucional que merece especial atenção. Trata-se daquele plasmado nas esferas das organizações religiosas, notadamente evangélicas. Nesses casos, o voto é “trocado” pela perspectiva de fortalecimento da “obra divina” e, assim, lograr o afastamento ou combate do mal, representado pela “ideologia esquerdista”, pintada como inimiga da família, da pátria, da ordem, dos bons costumes e favorecedora do gayzismo, do comunismo, da bandidagem, do sexo livre e todas as degenerações satânicas possíveis e imagináveis. Percebe-se, claramente, que as bancadas “da bíblia”, em linhas gerais: a) engrossam o caldo de um conservadorismo dos mais repugnantes (base para toda sorte de discriminações e preconceitos) e b) estão associadas às propostas mais retrógradas no campo das definições socioeconômicas relacionadas com a justiça e a desigualdade. Infelizmente, o que seria profundamente libertador e transformador, a partir da dimensão espiritual, notadamente em função da prevalência dos valores da compreensão, acolhimento e solidariedade, tanto no plano individual como no coletivo, se perde numa artificial, indigente e maniqueísta luta do bem contra o mal.
Não posso deixar de registrar, com profunda tristeza, a postura de milhares de religiosos (pastores, missionários, etc) e milhões de pessoas (crentes, devotos, etc), autodenominados cristãos, que esquecem as mais nobres lições de Jesus, especialmente as revoluções do amor e do perdão, para, em nome de Cristo e de Deus, destilar todo tipo de ódio, truculência e violência (efetiva e simbólica), inclusive com apoio até mesmo à tortura (uma das maiores indignidades possíveis observadas no convívio humano).
Existe uma dimensão particularmente perversa no conservadorismo subjacente ao fisiologismo religioso. As ideias de ordem, segurança e uniformidade social, em especial a padronização de costumes, capturam a insatisfação difusa com uma sociedade opressora, injusta e “desorganizada”. O apelo presente no conservadorismo religioso é muito forte e sedutor. Trata-se de uma promessa de solução imediata das mazelas com base na força e na autoridade exacerbada (autoritarismo). Nesse contexto, somente uma boa dose de consciência política, em certa medida dependente de uma considerável formação educacional para cidadania, seria capaz de identificar a ilusão irrealizável.
Segundo várias pesquisas e análises, as candidaturas evangélicas crescem aproximadamente 20% a cada pleito municipal e de 5 a 10% a cada pleito nacional. Por outro lado, em 30 anos, o percentual de evangélicos passou de 6,6% na década de 1980 para 22,2%. O incremento foi calculado em cerca de 16 milhões de pessoas. Algumas avaliações por amostragem indicam a presença de 31% de evangélicos na população acima de 16 anos. Aponta-se, ademais, a formação de um verdadeiro cinturão evangélico retrógrado (mais do que conservador) nas periferias urbanas do Brasil no seio da população de baixa renda (fonte: outraspalavras.net).
Esses fisiologismos mais tênues, mais sutis, mais leves precisam ser superados em favor de escolhas mais conscientes e mais abrangentes acerca do exercício de mandatos parlamentares. Com efeito, as decisões a serem adotadas no curso de um mandato parlamentar estão relacionadas com a alocação de recursos orçamentários, implementação de políticas públicas, definições de política tributária, organização e funcionamento da Administração Pública, mecanismos de controle da corrupção e malversações de várias naturezas, entre outras questões relevantes. São definições diretamente relacionadas com os grandes problemas nacionais, regionais e locais. Em suma, são decisões voltadas para acelerar ou retardar a construção de uma sociedade livre, justa e sustentável.