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(Millôr Fernandes)

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

A absolvição de Hitler

Quinta, 25 de setembro de 2025

A absolvição de Hitler

23 de setembro de 2025*


Por Frei Betto*

Nuremberg, 10 de setembro de 1946. Julgamento por crimes nazistas. O juiz Fuchs emite seu voto após ouvir o relator, Francis Beverly, descrever as atrocidades ocorridas.

“Sou a favor da absolvição de Adolf Hitler”, declarou o juiz, para surpresa do tribunal. “A acusação de que ele violou tratados internacionais ao ordenar a invasão da Polônia em 1939 e iniciar a Segunda Guerra Mundial não é corroborada por nenhum documento assinado por ele. Temos apenas o depoimento de Albert Speer. Os ataques das tropas alemãs contra Dinamarca, Noruega, Bélgica, Holanda, França, Iugoslávia, Grécia e União Soviética não partiram do gabinete de Hitler. Foram todos obra de subordinados, sem o seu conhecimento.”

– “Mas Hitler decretou a ‘solução final'”, objetou o juiz.

— A acusação de que ele decretou a chamada “Solução Final”, o extermínio de judeus, comunistas, ciganos, pessoas com deficiência física ou mental, opositores políticos, homossexuais e outros segmentos da população, é infundada. Pelo contrário, em todos os guetos, Hitler estabeleceu Conselhos Judaicos que colaboraram ativamente com a política nazista e forneceram suprimentos necessários aos que neles viviam.


“E quem é o culpado pelo extermínio de milhões de homens e mulheres nos campos de concentração?” perguntou o juiz Lawrence, do Reino Unido.

–Se milhões foram exterminados em campos de concentração como Auschwitz, Treblinka e Sobibor, isso não pode ser atribuído a Hitler.

Alguém o viu disparar uma arma para matar um ser humano? Ele foi visto usando gás em celas cheias de prisioneiros de guerra ou puxando a corda para enforcar alguém? Há alguma testemunha que o viu aquecer fornos de crematório?
“Vossa Excelência nega que Hitler era xenófobo e cometeu crimes atrozes?” perguntou o juiz francês Vabres.

– Como Hitler pode ser acusado de xenofobia se ele próprio não era alemão de nascimento, mas austríaco? Como um homem dedicado às artes, como a pintura, poderia ser capaz de cometer crimes tão atrozes quanto os alegados pelo relator? Portanto, tudo o que é atribuído a Hitler não passa de reflexões — ideias, discussões, intenções — e essas reflexões não culminaram em atos concretos ou ilícitos que constituem os crimes descritos na acusação. Embora se fale em “crimes contra a humanidade”, reuniões ou tentativas de implementação de medidas excepcionais, esses eventos não se materializaram de forma a levar a uma condenação. Para que haja crime, os fatos devem se enquadrar precisamente na categoria penal; a mera intenção ou conversa não basta.

Algumas condutas atribuídas a Hitler transcendem os limites semânticos do delito criminal. Mesmo que tenha havido discurso, desacordo com a comunidade judaica ou insatisfação com prisioneiros de guerra, isso não constitui automaticamente um crime sem evidências claras da ação correspondente. Rejeito como inferências as conexões entre Hitler e os perpetradores genocidas que queimaram milhões de pessoas em campos de concentração, e afirmo que não há evidências sólidas que demonstrem a responsabilidade direta ou o envolvimento do ex-presidente alemão nesses atos cometidos por terceiros.

“Seu eminente colega nega os crimes terríveis cometidos pela Gestapo sob as ordens de Hitler?” perguntou o juiz soviético Nikitchenko.

– As acusações relacionadas ao papel da Gestapo na tortura de pessoas inocentes não comprovam o envolvimento direto e intencional de Hitler. Mesmo que procedimentos controversos tenham sido empregados, não há evidências de que ele os tenha ordenado ou manipulado criminalmente, com a intenção específica prevista na lei penal.

O juiz Fuchs acrescentou veementemente, após ajustar cuidadosamente sua peruca:


Hitler nunca conspirou para abolir violentamente o Estado de Direito democrático. Ele não tomou o poder por meio de um golpe de Estado. Foi eleito pelos votos do povo alemão. Se ele posteriormente criticou ou questionou a regularidade das urnas, isso por si só, por mais controverso ou questionável que seja, não pode ser automaticamente equiparado a uma tentativa de derrubar o Estado democrático. O grau de intervenção ilegal necessário para um crime não foi demonstrado em seus discursos ou entrevistas.

O tribunal ficou perplexo. Hitler não agiu diante da pandemia que matou mais de 700.000 pessoas e, quando o fez, foi prescrevendo medicamentos supostamente ineficazes. E, pressionado a responder ao número de mortos, declarou: “Não sou coveiro”. Admitiu publicamente que o erro de seu regime “foi torturar, não matar”, apesar de ter assassinado inúmeras pessoas. E admitiu: “Através do voto, vocês não mudarão nada neste país — nada, absolutamente nada! Infelizmente, ele só mudará se um dia entrarmos em guerra civil e fizermos o que o regime militar não conseguiu fazer: matar cerca de 30.000 pessoas”.


*Frei Betto
Escritor brasileiro e frade dominicano, internacionalmente conhecido como teólogo da libertação, Frei Betto é autor de 60 livros em diversos gêneros literários — romances, ensaios, contos policiais, memórias, textos infantis e juvenis e temas religiosos. Foi duas vezes vencedor do Prêmio Jabuti, a maior premiação literária do país, em 1985 e 2005. Em 1986, foi eleito Intelectual do Ano pela União Brasileira de Escritores. Leia mais… Assessor de movimentos sociais como as Comunidades Eclesiais de Base e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, tem se envolvido ativamente na vida política brasileira nas últimas cinco décadas.


*Texto postado originariamente no Pátria Latina, em 23 de setembro de 2025