PEC DA BLINDAGEM (OU DA IMPUNIDADE): UM ABSURDO INCONSTITUCIONAL
Aldemario Araujo Castro
Advogado
Mestre em Direito
Procurador da Fazenda Nacional
Brasília, 19 de setembro de 2025
“A Câmara escreveu uma das páginas mais vergonhosas de sua história ao aprovar, no dia 16 passado, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 3/2021, a chamada PEC da Blindagem. Como se sabe, pretende-se tornar deputados e senadores praticamente inimputáveis ao impedir que sejam investigados, processados e até presos em flagrante por crime inafiançável sem que para tanto haja licença prévia de suas respectivas Casas Legislativas. Há poucos dias, o Estadão revelou que entre 1988 e 2001, período em que a licença prévia vigorou no País, só uma mísera vez o Congresso autorizou que um de seus membros fosse investigado pelos crimes de que foi acusado. O que reinou foi o espírito de corpo, quando não o compadrio” (fonte: estadao.com.br).
O debate sobre a possibilidade, como validade jurídica, de o Parlamento alterar a Constituição como bem quiser e entender (sem limites) envolve questões fundamentais do Estado Democrático de Direito. Entre elas estão a separação dos Poderes, a estabilidade institucional e o respeito a uma série de normas-princípios estruturais (explícitos e implícitos).
As próximas e singelas linhas de abordagem dessa instigante temática pretendem considerar os aspectos jurídicos e políticos mais relevantes. Não serão tratadas as motivações menores para iniciativas parlamentares que tentam manietar a atuação do Supremo Tribunal Federal, do Ministério Público, da Polícia Federal e dos órgãos de controle (externo e interno). O desprezível jogo de pressões, negociatas e chantagens para obter esta ou aquela posição não será aqui abordado.
A Constituição Federal brasileira estabelece, logo no seu segundo artigo, a separação dos Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) como um dos pilares do Estado Democrático de Direito. Cada Poder tem competências específicas que não podem ser usurpadas pelos outros. Estabelecer exigências escancaradamente excessivas para a investigação e processamento de ilícitos penais, de qualquer natureza ou gravidade, viola o princípio destacado, enfraquecendo o Judiciário e comprometendo o equilíbrio entre os Poderes. Trata-se de uma usurpação por vias transversas.
A chamada “PEC da Blindagem” ofende de forma radical a responsabilidade por infrações penais como definição estrutural da ordem jurídica brasileira. Inúmeros incisos do art. 5º da Constituição permitem a clara leitura de que existe um direito fundamental de todo cidadão brasileiro de ver a responsabilidade penal alcançar qualquer pessoa, autoridade ou não, como forma qualificada de proteção dos bens jurídicos mais relevantes. Construir uma muralha jurídica impeditiva desse tipo de responsabilização viola inapelavelmente o art. 60, parágrafo quarto, inciso IV, da Constituição (que proíbe PECs atentatórias aos direitos e garantias individuais).
“A PEC da Blindagem, aprovada nesta terça-feira, 16, pela Câmara, pode atingir 36 inquéritos que envolvem 108 parlamentares no Supremo Tribunal Federal (STF). Pela redação atual, esses casos só poderão avançar para se tornarem ações penais com aval do Congresso” (fonte: estadao.com.br).
A “PEC da Blindagem” ofende claramente o princípio republicano. Com efeito, prerrogativas de exercício de mandato parlamentar não podem ser estendidas ao ponto de criar uma classe de superprivilegiados, na prática inalcançáveis pelos mecanismos de responsabilização judicial. A República é uma forma de organização do poder político refratária aos chamados “privilégios odiosos”, informada pela igualdade como direito-garantia individual (art. 5º, caput da Constituição). Por outro lado, a existência de limites à ação do legislador ordinário, complementar e constituinte derivado conformam a noção de Estado Democrático de Direito na forma do postulado da proporcionalidade/ razoabilidade. É impensável, nos marcos do regime democrático, o poder ilimitado, o poder que faz o que bem quer e entende, o poder que não pode ser contido. Portanto, ainda por esse ângulo, a violação ao art. 60, inciso IV, da Constituição é incontornável.
Nessa linha, qual a explicação minimamente consistente para a inclusão dos presidentes de partidos nas “proteções” da “PEC da Blindagem” aprovada pela Câmara dos Deputados? Pretende-se “salvar” algum figurão, sequer parlamentar, hoje e no futuro, envolvido com os crimes mais escabrosos?
Importa destacar que a maioria ocasionalmente formada no Parlamento não pode adotar toda e qualquer decisão, mesmo alterando o texto da Constituição por intermédio de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC). O princípio majoritário exercitado pelo Parlamento, na condição de Poder Constituinte Derivado, não é superior, em qualquer caso e para qualquer fim, à mesma diretriz consagrada pelo Poder Constituinte Originário.
A impossibilidade de adoção de determinadas decisões pela via da PEC está expressamente consagrada no art. 60, parágrafo quarto, da Constituição. Como destacado, entre as chamadas cláusulas pétreas está “a separação dos Poderes” e os “direitos e garantias individuais” (incisos III e IV do dispositivo aludido). Portanto, levantar óbices monumentais ao legítimo exercício de competências judiciais e executivas afronta inapelavelmente o inciso III do parágrafo quarto do art. 60 da Carta Magna. Não custa lembrar que o STF já declarou, em várias ocasiões, a inconstitucionalidade de emendas à Constituição por violação de cláusulas pétreas.
Em um Estado Democrático de Direito, como o caso brasileiro, a Corte Constitucional exerce um importantíssimo papel contramajoritário. Essa função contempla a proteção dos direitos fundamentais e a manutenção do regime democrático, mesmo contra as maiorias temporárias formadas no âmbito do Poder Legislativo. A imprescindibilidade desse instrumento reforça o argumento de que o Parlamento não pode tudo.
A acusação de que o Supremo Tribunal Federal "governa", "legisla", “abusa” e “atropela”, repetida como uma “verdade incontestável”, revela uma incompreensão visceral acerca do papel do STF, como antes destacado, bem como da profunda mudança paradigmática operada no Direito como instância de conformação de condutas na sociedade.
As Constituições, notadamente a partir da segunda metade do século XX, por inúmeras razões históricas, políticas e socioeconômicas, “ganharam” força normativa. As Constituições perderam o caráter de meras recomendações para balizar a necessária atuação do legislador. Em especial, os princípios jurídico-constitucionais passaram a ser diretamente aplicados pelo Judiciário para assegurar direitos fundamentais, afirmar o regime democrático e combater abusos de poder de vários tipos.
Assim, o Supremo Tribunal Federal não atua como um substituto do Executivo ou do Legislativo, mas como um guardião da Constituição. Esse papel é essencial no Estado Democrático de Direito. Insatisfações e discordâncias em setores da sociedade e do Parlamento não podem funcionar como combustíveis para retrocessos civilizatórios de grande monta.
As ponderações realizadas não sustentam uma espécie de infalibilidade do STF e muito menos que não possa ser criticado em suas decisões. Como toda instituição composta por seres humanos passíveis de erros, o STF incorre em equívocos de várias magnitudes. Em outras sedes, já formulei várias e fortes críticas a decisões do STF e comportamentos de seus integrantes. Aliás, as críticas fundamentadas e respeitosas às decisões do STF são essenciais: a) para manter o ambiente democrático; b) concorrer para mitigar os desacertos do Tribunal; c) estabelecer um saudável controle social sobre a atuação do colegiado e de cada um dos seus integrantes e d) estimular a responsável autocontenção da Corte.
Portanto, a invocação de prerrogativas parlamentares, presentes em praticamente todas as nações democráticas como instrumentos de exercício altivo de mandatos populares, e o cometimento de erros ou excessos em decisões judiciais, a serem enfrentados com as pertinentes medidas republicanas, não podem ser as motivações para a construção da impunidade por intermédio de barreiras quase (praticamente) intransponíveis.