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(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

‘Dez anos de luta e dor’: PMs são condenados pela Chacina do Curió uma década depois

Sexta, 26 de setembro de 2025


26/09/2025 12h09 Paulo Batistella

Quinto júri da chacina, ocorrida em 2015 em Fortaleza (CE), terminou esta quinta (25/9). Marcílio Costa de Andrade foi condenado a 315 anos, 11 meses e 10 dias de reclusão. Luciano Breno Freitas Martiniano foi sentenciado a 275 anos e 11 meses

Julgamento foi iniciado na última segunda-feira, em Fortaleza | Foto: Luís Silva/Ascom TJ-CE/Divulgação

Um julgamento encerrado pela Justiça do Ceará na noite desta quinta-feira (25/9) condenou dois dos policiais militares responsáveis pela Chacina do Curió — episódio de 2015 em que 11 pessoas foram mortas indiscriminadamente na periferia de Fortaleza em vingança pela morte de um PM.

O soldado Marcílio Costa de Andrade foi sentenciado a 315 anos, 11 meses e 10 dias de reclusão. Já o cabo Luciano Breno Freitas Martiniano recebeu pena de 275 anos e 11 meses. Foi determinada a prisão provisória de ambos, já cumprida, e a expulsão deles do quadro da Polícia Militar cearense (PM-CE).


Os dois réus foram condenados pelos crimes de homicídio qualificado (11 vezes), homicídio tentado (três vezes), tortura física (três vezes) e tortura psicológica. No cálculo da pena de Marcílio, foi considerado o agravante de articulação da presença dos agentes envolvidos nos crimes. As defesas deles pretendem recorrer da sentença, conforme divulgou o Tribunal de Justiça do Ceará (TJ-CE).

Conforme mostrou a Ponte, Marcílio indicou locais dos ataques e incitou colegas de farda a participarem da chacina. Já Luciano foi associado ao caso por imagens de câmeras de segurança que mostram um carro que pertencia a ele circulando por locais próximos aos assassinatos do episódio.

Dez anos de luta por justiça

O Tribunal do Júri no qual eles foram condenados teve início às 9h da última segunda (22/9) e exigiu mais de 330 horas de trabalhos. Assim como os julgamentos anteriores do episódio, as sessões realizadas até esta nova sentença foram inteiramente acompanhadas pelas famílias das vítimas da chacina.

“Foram dez anos de muita luta, dor e sofrimento. Quero dizer que ninguém ficou feliz, porque hoje nós não temos os nossos filhos, e não era o que a gente queria. A gente queria os nossos filhos conosco. Mas é a justiça sendo feita”, disse Edna Carla — mãe de Álef Souza Cavalcante, assassinado na chacina aos 17 anos — em uma coletiva de imprensa ao lado de outras familiares das pessoas mortas no Curió.


“Ninguém queria julgar ninguém, a gente queria apenas ser mães dos nossos filhos. A gente queria ter só o direito de ter eles ao nosso lado. Hoje, se encerra essa luta do Curió, com muita dor e justiça. Não vou dizer que se encerrou com uma vitória, mas, sim, com justiça, porque não é vitorioso ver alguém condenado. Não é vitorioso não ter mais o seu filho em casa”, disse Edna.

Ela também agradeceu a movimentos sociais, apoiadores da sociedade civil, veículos de imprensa e órgãos públicos que mantiveram viva a memória do caso. “Meu filho Álef, hoje, você está livre para viver sua vida eterna, assim como todas as vítimas do Curió. Obrigada, meu filho, pela força que tu me destes.”

‘Para as famílias que ainda não tiveram esse resultado, não desistam’

Junto dela estiveram na coletiva Ana Costa, viúva de José Gilvan Pinto Barbosa, morto na chacina aos 41 anos; Maria de Jesus, mãe de Renayson Girão da Silva, 17; Suderli de Lima, mãe de Jardel Lima dos Santos, 17; Silvia Helena, que é irmã de Suderli e tia de Jardel, além de ser mãe de dois sobreviventes do caso; e Jane Meire, mãe de Jandson Alexandre de Souza, assassinado aos 19 anos.

Elas integram o Movimento Mães do Curió, que também luta pela memória de Antônio Alisson Inácio Cardoso, assassinado na chacina aos 17 anos; Francisco Enildo Pereira Chagas, 41; Marcelo da Silva Mendes, 17; Patrício João Pinho Leite, 16; Pedro Alcântara Barroso, 18; e Valmir Ferreira da Conceição, 37.

“Dez anos não são dez dias. Essa luta mostrou a verdadeira realidade do que passamos, a realidade que outras famílias também passam. Quero dizer para as famílias que não tiveram ainda esse resultado que nunca desistam. Não desistam. Os seus filhos merecem que vocês não desistam”, afirmou Suderli.


A irmã dela destacou que o julgamento encerrou um ciclo de luto: “Várias vezes foi falado, nesses longos dez anos, que nós poderíamos ter tido o luto se nossos filhos, sobrinhos e maridos tivessem tido uma morte natural. Nós não tivemos esse direito, mas, enfim, teremos. Só a justiça poderia concretizar esse luto. Finalmente, teremos um pouco de paz. Felicidade, jamais teremos”.

Maria de Jesus disse que a aproximação entre as famílias amenizou a dor nesse processo: “Eu só tenho que agradecer primeiramente a Deus, porque, para mim, foi muito difícil. Só eu lutei pelo meu filho, não tive família para me apoiar. E com as mães, eu me fortaleci. Cada uma delas me deu esperança”.

Ana também relatou a dificuldade em se manter firme até aqui. “Quando o grupo de mães se juntou para transformar o luto em luta, já estávamos dizendo para a sociedade que não iríamos parar. Não foi fácil para nenhuma de nós. Minha filha tinha 9 anos quando perdi meu esposo. Ela cresceu sem o pai dela. Fui mãe e pai da minha filha. Mas a sede de justiça no nosso coração era muito forte”, disse.

O que foi a Chacina do Curió

A chacina ocorreu entre a noite do dia 11 e a madrugada de 12 de novembro de 2015, em um intervalo de seis horas. Na ocasião, policiais militares mataram 11 pessoas indiscriminadamente ao promover uma série de ataques em bairros da Grande Messejana, incluindo o Curió, em Fortaleza, por vingança à morte do PM Valtermberg Chaves Serpa em um caso de latrocínio — um dia antes, ele foi morto ao tentar intervir em uma tentativa de assalto contra a esposa no bairro Lagoa Redonda, também na região.

Além das vítimas fatais, sem envolvimento com o latrocínio contra Valtermberg, a Chacina do Curió teve quatro sobreviventes de tortura e três pessoas que sofreram tentativa de homicídio. O Ministério Público do Ceará (MP-CE) denunciou 45 policiais, entre os quais 44 se tornaram réus. A Justiça cearense pronunciou 34 deles, para que fossem levados a júri popular, e impronunciou os demais. Entre os pronunciados, um deles morreu e outros três tiveram o caso remetido à Justiça Militar.


Já foram julgados agora 29 réus, entre os quais oito foram condenados pelo júri e os outros 21 foram absolvidos. Este júri mais recente também deveria ter julgado o soldado PM Eliézio Ferreira Maia Júnior. No entanto, a participação dele foi suspensa porque o agente foi considerado incapaz após alegar insanidade mental. Ele segue ativo no quadro da PM-CE, com salário mensal de R$ 6,1 mil bruto.

A rede de apoio formada em torno da Chacina do Curió foi um marco na história do Ceará na luta contra a violência de Estado. Conforme mostrou a Ponte, foi disso que surgiu o Fórum Popular de Segurança Pública cearense (FPSP-CE), um espaço de acolhimento e mobilização contra a letalidade policial.

A mobilização das mães também mexeu com a rotina de órgãos estatais: a partir dela, a Defensoria Pública do Estado do Ceará (DP-CE), que acompanha as famílias no processo, criou a Rede Acolhe. Trata-se de um núcleo de atuação multidisciplinar que conduz a assistência de acusação em casos de violência de Estado, além de prestar acolhimento psicológico e social às famílias.

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