Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Sobre as águas do dique

Terça, 15 de fevereiro de 2011
Por Ivan de Carvalho
Quando prefeito de Salvador pelo PFL, o hoje deputado Antonio Imbassahy, do PSDB, sabia que estava dando margem a uma polêmica quando enfeitou o Dique do Tororó com aquelas belas esculturas de orixás, numa homenagem à cultura e, inevitavelmente, às religiões baianas afrodescendentes.

    E polêmica houve, comemorações ao lado de insatisfações e reclamações, a mais radical destas partindo da Igreja Universal do Reino de Deus, que considerou o conjunto da obra artística de Tati Moreno no Tororó como “o Diabo”.

   Claro que para os monoteístas, aquela plêiade de orixás é uma coisa heterodoxa, mas talvez isso não seja tão desagradável aos olhos de Deus e perigoso para a causa do respeito aos direitos humanos quanto o bispo Macedo, líder máximo da IURD, declarando-se a favor do aborto e justificando essa posição em vídeo postado no Youtube.

    Mas o então prefeito Antonio Imbassahy talvez não haja antecipado do que a imaginação criadora dos políticos (e ele é um deles) é capaz. Recuperando na última eleição uma cadeira na Assembléia Legislativa, que perdera no pleito anterior, o deputado Sargento Isidório – aquele que discursava da tribuna sob o peso de um botijão de gás de isopor pintado de azul que lhe esmagava um ombro – reincidiu numa proposta que já fizera antes.

    O deputado Sargento Isidório é evangélico. E, como todo cristão que se preza, preza a Bíblia. Se os orixás mereceram aquele espetacular monumento, também merece tratamento no mínimo igual o livro que contém “a palavra de Deus” e é o principal fundamento escrito de várias religiões – a israelita, a anglicana, a mórmon, a copta, a católica e a evangélica, estas duas últimas em suas varias denominações.

    Vai daí, o deputado, alegando que a comunidade cristã se sente desprestigiada com a ausência de um símbolo que a represente na região do Dique do Tororó, uma vez que apenas estátuas de orixás são expostas no local, o deputado recomendou ao governador Jaques Wagner, por intermédio de Indicação apresentada na Assembléia Legislativa, a construção de um monumento à Bíblia Sagrada no dique.

    Argumenta que “a Bíblia Sagrada, livro universal e milenar que atende a maior parte dos segmentos religiosos, contempla ensinamentos que norteiam leis em diversos países, é guia de vida para milhares de pessoas, além de ser a literatura mais lida em todo o mundo”.

    O deputado Sargento Isidório afirma a liberdade religiosa assegurada pela Constituição e adverte que nenhuma crença pode ser discriminada, sob pena de contrariar a lei maior. Propõe ele, ainda, que o monumento à Bíblia no Dique do Tororó seja construído “em posição e tamanho destacado, para que todos os cristãos que passem pelo local sintam-se prestigiados e contemplados com o símbolo da palavra de Deus”.

    Revelando minha opinião pessoal favorável à concretização do que propõe o deputado Sargento Isidório sob argumentos irrefutáveis,  antecipo que, em acontecendo isto, dificilmente deixará de surgir alguma entidade representante legítima do islamismo que peça um outro monumento no dique para o Corão, bem como poderá chegar às autoridade baianas uma carta do Dalai Llama sugerindo, com a delicadeza que lhe é peculiar, que não se discrimine contra o budismo e que uma estátua de Buda seja erguida sobre as águas do dique, para que brilhe “a verdadeira luz”. E os índios brasileiros poderão reivindicar uma representação de Tupã... vai faltar espaço para os pedalinhos.
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Este artigo foi publicado originalmente na Tribuna da Bahia desta terça.
Ivan de Carvalho é jornalista baiano.
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                                                                            Foto: Taciano
Dique do Tororó e seus Orixás. Clique na foto para abri-la.